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quinta-feira, 13 de setembro de 2018
O ser em Parmênides (Eleatas) e o pensar em Descartes (Cartesianos). Tese e antítese de uma relação.
A filosofia caracteriza-se, falando muito sumariamente, por esta relação entre o ser (ou to on) e o espírito (nous), e esta tensão entre o que é e o que pensa marca toda a trajetória filosófica. A busca por compreender o todo, a partir da razão, sem outro objetivo além da própria compreensão, pode descrever toda esta epopeia riquíssima que é a contemplação, o pensar e mesmo o fazer filosófico.
Esta tensão dialética pode ser acompanhada sob vários aspectos, mas discutiremos aqui a relação antitética, dialética mesmo, entre: 1) A filosofia que parte do ser, e procura conhecê-lo e refletir sobre ele – cujo autor emblemático é Parmênides de Eleia e seus discípulos, e 2) Aquela filosofia que tem como ponto de partida o pensar, ou seja, optar pelo espírito humano como ponto de partida para a própria reflexão. O autor emblemático aqui é Descartes.
O ser das coisas representam, em Parmênides, a primeira interpelação ao espírito humano. Os fenômenos que se apresentam a ele parecem provir de coisas que existem. No entanto, obviamente, o próprio fato de algo existir é algo que não pode ser diretamente conhecido pelos sentidos, mas apenas deduzido pela razão a partir dos fenômenos sensíveis.
De fato, os eleatas iniciam sua reflexão pelas coisas. Elas antecedem, de certa forma, ao filósofo e seu espírito, e ele se depara com elas. É neste sentido que a filosofia antiga pode se descrever como uma reflexão iniciada pelo espanto, de perceber-se no mundo, de ser interpelado pelas coisas que precedem ao filósofo e na busca do sentido (logos) destas próprias coisas.
Mas não havia como estabelecer esta existência concreta e real das coisas a partir de uma abordagem estritamente empírica. A existência concreta de uma coisa é um dado que antecede a ciência. Assim, Parmênides dissociou o ser do aparecer. E remeteu todo o aparecer, todo o mundo dos fenômenos, ao reino do não-ser, guardando sua capacidade contemplativa para o reino do ser, que lhe parecia muito mais real do que o reino dos fenômenos. O ser, então, embora não se dê aos sentidos, é para ele, de certo modo, mais real, mais concreto, do que todo o mundo fenomenológico que nos aparece. E na busca daquilo que é fundamento, arché, do cosmos, da physis, Parmênides descreve o ser como estático, imóvel, igual a si mesmo, uniforme e como que esférico. Iniciando-se radicalmente na busca do ser, Parmênides e seus discípulos, na busca desta objetividade que reificou o espírito, geraram aporias que impediram a continuidade do caminho filosófico no sentido que apontaram – a aporia clássica deste sistema, que continua desafiando os filósofos até hoje, é a célebre corrida entre Aquiles e a tartaruga, em que Zenão, discípulo de Parmênides, tenta reduzir ao absurdo a tentativa de harmonizar os fenômenos que se dão empiricamente ao espírito humano com a razão que busca o puro ser como fundamento do real.
Paralisado o caminho filosófico neste desvão que enrijece o ser no seu confronto com o espírito, avaliemos agora um outro filósofo que tem um ponto de partida diametralmente oposto – uma verdadeira antítese ao velho Parmênides. Refiro-me a René Descartes e o seu célebre “cogito ergo sum” (penso, logo existo).
Descartes luta para vencer o ceticismo com a chamada intuição cartesiana: “penso, logo existo”. O problema da existência, portanto, que tinha, em Parmênides, sua raiz na interpelação que as coisas faziam ao espírito humano, fica ancorada agora no pensamento humano. Notemos que o “cogito” de Descartes não tem o significado da constatação de um sinal, algo como “se penso, logo não posso não existir”. Trata-se de uma declaração muito mais radical: declarar que o pensamento, e na dimensão individual é o único fundamento válido para a afirmação do próprio existir. E de que do meu pensamento, e só dele, posso deduzir todas as outras coisas, inclusive a existência de Deus, e em consequência, do mundo. Aqui, o espírito tem precedência total sobre o ser.
Esta posição traz suas próprias aporias, entre elas a impossibilidade de explicar a relação entre este ser que pensa, e que se descreve como puro espírito desprovido de extensão, e um mundo que se apresenta como pura geometria, pura extensão dominável. Paradoxalmente, as aporias de um racionalismo radical do ser, como o de Parmênides, que se buscava eliminar, ressurgem aqui como aporias de um racionalismo radical do espírito, em Descartes. Talvez a síntese aristotélica entre Parmênides e Heráclito, que Aristóteles empreendeu na antiguidade pela introdução das noções de ato e potência, seja um paradigma interessante para a nova síntese que se faz necessária hoje. Esta nova síntese, que não vai poder descurar também do empirismo e da fenomenologia, pode trazer tantos frutos, hoje, para a humanidade, quanto o aristotelismo trouxe, naqueles tempos.
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