sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Eros e depressão

Ocorreu-me que, exatamente na época do cultivo ao corpo, da alegada sexualidade sem moralismos ou “repressões”, dos “avanços” no campo do controle de natalidade e do aborto, dos casamentos homossexuais e quejandos, vivemos também a era da depressão. Essa doença insidiosa, desconhecida na minha infância, que está se tornando uma verdadeira epidemia hoje. Tenho impressão de que poucos de nós têm a felicidade de dizer que não conhecem alguém severamente atingido por esse mal, seja em suas relações pessoais, seja no trabalho.
Eu estive relendo a belíssima encíclica papal “Deus Caritas Est”, e, ao estudar os trechos em que o Papa menciona a importância (embora não a suficiência) da dimensão erótica do amor para a integridade da psique humana, ocorreu-me um pensamento: como seria um ser humano desprovido de eros?
A encíclica ensina que o eros é essa força que impele o homem para fora de si mesmo, lança-o à procura de Deus e do mundo e, principalmente, da sua companhia sexual. "Ao amor entre homem e mulher, que não nasce da inteligência e da vontade mas de certa forma impõe-se ao ser humano, a Grécia antiga deu o nome de eros. Diga-se desde já que o Antigo Testamento grego usa só duas vezes a palavra eros, enquanto o Novo Testamento nunca a usa: das três palavras gregas relacionadas com o amor — eros, philia (amor de amizade) e agape — os escritos neo- testamentários privilegiam a última, que, na linguagem grega, era quase posta de lado. Quanto ao amor de amizade (philia), este é retomado com um significado mais profundo no Evangelho de João para exprimir a relação entre Jesus e os seus discípulos. " (Deus Caritas Est, n.º 3).
Não se trata, ensina-nos o Papa, de uma dimensão que esteja fora do campo semântico do amor, embora a expressão “amor” esteja bem desgastada hoje em dia. “O termo « amor » tornou-se hoje uma das palavras mais usadas e mesmo abusadas, à qual associamos significados completamente diferentes. Embora o tema desta Encíclica se concentre sobre a questão da compreensão e da prática do amor na Sagrada Escritura e na Tradição da Igreja, não podemos prescindir pura e simplesmente do significado que esta palavra tem nas várias culturas e na linguagem atual.”(Deus Caritas Est, n.º 2). E prossegue: “Em primeiro lugar, recordemos o vasto campo semântico da palavra « amor »: fala-se de amor da pátria, amor à profissão, amor entre amigos, amor ao trabalho, amor entre pais e filhos, entre irmãos e familiares, amor ao próximo e amor a Deus. Em toda esta gama de significados, porém, o amor entre o homem e a mulher, no qual concorrem indivisivelmente corpo e alma e se abre ao ser humano uma promessa de felicidade que parece irresistível, sobressai como arquétipo de amor por excelência, de tal modo que, comparados com ele, à primeira vista todos os demais tipos de amor se ofuscam. Surge então a questão: todas estas formas de amor no fim de contas unificam-se sendo o amor, apesar de toda a diversidade das suas manifestações, em última instância um só, ou, ao contrário, utilizamos uma mesma palavra para indicar realidades totalmente diferentes?” (idem, ibidem). A própria encíclica nos ensina que não – não se pode fragmentar o amor, ou ele perde totalmente o próprio sentido.
Ver, portanto, uma pessoa prostrada, incapaz de realizar o ato de sair de si em busca do outro, de maravilhar-se (ou ao menos, admirar) com o mundo, de buscar razões para continuar vivendo, em suma, capaz de romper a casca do si mesmo e, de alguma forma, encantar-se com o outro, é ver alguém sem eros.
Não se pode confundir, como se tem feito, o eros com a pornografia. Não se trata disso. Nós é que, muitas vezes, somos eufêmicos para falar daquilo que não se quer nomear devidamente, e acabamos por distorcer completamente o sentido das palavras. Assim, usamos a palavra “erotismo” quando deveríamos dizer “pornografia”, usamos a expressão “planejamento familiar” para ocultar a contracepção, chamamos o aborto de “interrupção provocada da gravidez” e a iniciativa de matar um ser humano no útero nós chamamos de “pró-escolha”. Assim, chamamos, muitas vezes, a pornografia de erotismo, com graves prejuízos para a compreensão do que é erotismo.
A esse respeito, a encíclica ensina que “O eros degradado a puro « sexo » torna-se mercadoria, torna-se simplesmente uma « coisa » que se pode comprar e vender; antes, o próprio homem torna-se mercadoria. Na realidade, para o homem, isto não constitui propriamente uma grande afirmação do seu corpo. Pelo contrário, agora considera o corpo e a sexualidade como a parte meramente material de si mesmo a usar e explorar com proveito. Uma parte, aliás, que ele não vê como um âmbito da sua liberdade, mas antes como algo que, a seu modo, procura tornar simultaneamente agradável e inócuo. Na verdade, encontramo-nos diante duma degradação do corpo humano, que deixa de estar integrado no conjunto da liberdade da nossa existência, deixa de ser expressão viva da totalidade do nosso ser, acabando como que relegado para o campo puramente biológico. A aparente exaltação do corpo pode bem depressa converter-se em ódio à corporeidade. Ao contrário, a fé cristã sempre considerou o homem como um ser uni-dual, em que espírito e matéria se compenetram mutuamente, experimentando ambos precisamente desta forma uma nova nobreza. Sim, o eros quer-nos elevar « em êxtase » para o Divino, conduzir-nos para além de nós próprios, mas por isso mesmo requer um caminho de ascese, renúncias, purificações e saneamentos.”
Assim, do mesmo modo que a ressaca se impõe ao homem como resultado da bebedeira, o vazio se impõe como resultado do eros degradado.
Lamentavelmente, vivemos numa era de dissociação: queremos dissociar a ressaca da bebedeira, queremos dissociar a reprodução do sexo, queremos dissociar a angústia do sexo barato. Ocorre que todas estas dimensões estão associadas, como respirar está associado a viver, e deixar de respirar, à morte.
Então, se acordo com uma bruta ressaca, depois de abusar da bebida ou de outra droga, a contemporaneidade me impede de associar a minha ressaca ao meu excesso, ao meu abuso: associo a ressaca a um remedinho que me cure dos seus sintomas.
Penso, aqui, no cônjuge apaixonado, casado, dedicado, seja homem ou mulher, que de repente se vê abandonado pelo outro, sem mais. Não é natural que ele mergulhe na tristeza? Imagino uma criança que vê o seu pai separado da sua mãe, ou vice-versa, e um terceiro (ou terceira) a exibir intimidades eróticas com esse genitor em público. A cultura atual considera inadequado que essa criança ou jovem fique constrangido, magoado ou irritado com essa situação: isso seria um moralismo ultrapassado, que impõe negar como anacronismo.
Assim, as dores que sentimos no nosso cotidiano não podem ser associadas às respectivas causas: devem ser combatidas quimicamente. Por que controlar a bebida, se posso tomar um engov? Como sentir raiva da minha mãe em apalpos com o seu novo namorado, se ela tem “direito de ser feliz”? Como sentir remorso pelo aborto praticado, se eu estava no exercício da minha “liberdade de escolha”? É claro, pois, que a dor que essas situações provocam já não pode ser associada às respectivas causas, por causa do patrulhamento contemporâneo. Não me permito sequer verbalizar que me sinto um crápula em fumar maconha, porque estou decepcionando o meu pai, homem humilde e trabalhador, que queria um filho sóbrio e limpo. Não, tudo isso é normal na nossa sociedade, e não posso me permitir sentir nenhuma dor causada por elas. Mas a dor existe. Logo, deve ter outra causa – não devo associá-las a esses “moralismos” ultrapassados.
Uma vez que a dor existe e que não posso sequer me permitir associá-las a aquilo que, há alguns anos atrás, seria claramente apontado como a sua causa, então só me resta imaginar que é uma dor existencial, genérica, inexplicável, que me corta a vontade de viver. Tira-me o eros.
Por outro lado, a ciência possui, no seu arsenal químico, maneiras de tratar dos sintomas dessa dor: mais e mais “pílulas de felicidade” vêm sendo desenvolvidas. Ora, então para que se preocupar com ética, com o reto e saudável viver, se podemos lidar com a sua dor sem correr o risco de associá-la com “sentimentos ultrapassados” ou “fora de moda”?
Não se trata, porém, de mais pornografia para superar a depressão. Não é isso. Como a própria encíclica ensina, “no fundo, o « amor » é uma única realidade, embora com distintas dimensões; caso a caso, pode uma ou outra dimensão sobressair mais. Mas, quando as duas dimensões se separam completamente uma da outra, surge uma caricatura ou, de qualquer modo, uma forma redutiva do amor. E vimos sinteticamente também que a fé bíblica não constrói um mundo paralelo ou um mundo contraposto àquele fenómeno humano originário que é o amor, mas aceita o homem por inteiro intervindo na sua busca de amor para purificá-la, desvendando-lhe ao mesmo tempo novas dimensões. Esta novidade da fé bíblica manifesta-se sobretudo em dois pontos que merecem ser sublinhados: a imagem de Deus e a imagem do homem.” (idem, n.º 8). Precisamos resgatar o agape, purificando o eros, e não degradando-o ainda mais. Entupir-nos de químicos nem sempre nos ajuda nesse caminho, mormente quando o problema não é estrita ou prevalentemente orgânico.
Triste sociedade, esta, em que um filho não pode chorar pela promiscuidade de sua própria mãe, ou que uma mãe não pode chorar por ter assassinado seu filho no ventre, ou que um drogado não pode chorar por ser a decepção do seu pai.

Nenhum comentário:

Postar um comentário