A discussão foi ampla, e envolveu diversos interlocutores com as mais diferentes convicções religiosas e filosóficas. Começou quando eu coloquei em discussão uma notícia, que eu recebi, a respeito da reabertura da discussão sobre os crucifixos em salas de aula e em tribunais. A União Europeia está rediscutindo, em recurso, a polêmica decisão que determinou à Itália a retirada dos crucifixos das salas de aula e dos espaços públicos, por queixa de uma cidadã dinamarquesa que alegou sentir-se ofendida com esse símbolo.
A Europa deu-se conta de que a questão é muito mais intrincada do que pensavam os laicistas, e que a saudável laicidade não pode ser confundida com o laicismo radical. A “caça aos símbolos religiosos” que a decisão desencadearia seria assombrosa: a começar pelo hino inglês que proclama “God Save the Queen”!
Eu, pessoalmente, não consigo entender esse sistema europeu. Como é que um parlamento internacional, sem nenhuma legitimação democrática direta, pode condenar um Estado democrático a não fazer aquilo que a sua população quer que ele faça? Enfim, deve ser a minha sensibilidade jurídica que é subdesenvolvida, mas eu lembro que a Europa tem precedentes nessa história de banir, por meios aparentemente democráticos, a própria democracia. Lembro, guardadas as devidas proporções, a ascensão de Hitler ao poder.
No Brasil, a questão já foi levada ao Conselho Nacional de Justiça. A maioria dos membros entendeu que o uso de símbolos religiosos em órgãos da Justiça não fere o princípio de laicidade do Estado. O entendimento ficou expresso no julgamento de quatro Pedidos de Providência que questionavam a presença de crucifixos em dependências de órgãos do Judiciário.
Na conversa que se seguiu, um colega, meio ironicamente, e tentando forçar uma conclusão ad absurdum, me disse:
- Nessa linha, coloquemos os símbolos de todas as religiões que compõem a cultura nacional. inté vai ficar bonito!
- Uai - respondi eu - e já não é assim? Já é bonito. Viva a pluriculturalidade e plurirreligiosidade da sociedade brasileira! O Redentor no Corcovado, os orixás no Abaeté, o flamengo no maracanã, a Gisele Bünchen em Nova York, o Pelé em Três Corações, o Tupã da floresta e se eu esqueci alguma, me lembre. Há até quem não aceite religião, porque acha que é deus e não admite outro culto além do da própria personalidade!
- Há sociedades, prossegui, que baniram todos os símbolos das religiões que compunham as respectivas culturas nacionais, impondo a suástica ou a "foice e martelo", explodindo estátuas milenares do Buda, só para lembrar alguns exemplos, e isso nunca terminou bem. Parece mais democrática a alternativa inclusiva. E cada um que busque crer e cultuar o que quiser e puder, a partir do próprio discernimento. O importante é nunca se fechar para a verdade, e estar disposto a segui-la até onde ela o levar, quando a encontrar. Sabe-se, historicamente, que muitos governantes são incapazes de vê-la, mesmo quando deparam-se com ela face a face!
Nessa altura, um terceiro amigo trouxe à discussão um texto, que circula na internet, onde um fradre estaria defendendo que os crucifixos devem mesmo ser retirados desses espaços públicos. O autor seria um certo Frade Demetrius dos Santos Silva. O texto que ele me enviou tem o seguinte conteúdo:
"Sou Padre católico e concordo plenamente com o Ministério Público de São Paulo, por querer retirar os símbolos religiosos das repartições públicas…
Nosso Estado é laico e não deve favorecer esta ou aquela religião.
A Cruz deve ser retirada!
Aliás, nunca gostei de ver a Cruz em Tribunais, onde os pobres têm menos direitos que os ricos e onde sentenças são barganhadas, vendidas e compradas.
Não quero mais ver a Cruz nas Câmaras legislativas, onde a corrupção é a moeda mais forte.
Não quero ver, também, a Cruz em delegacias, cadeias e quarteis, onde os pequenos são constrangidos e torturados.
Não quero ver, muito menos, a Cruz em prontos-socorros e hospitais, onde pessoas pobres morrem sem atendimento.
É preciso retirar a Cruz das repartições públicas, porque Cristo não abençoa a sórdida política brasileira, causa das desgraças; das misérias e sofrimentos dos pequenos; dos pobres e dos menos favorecidos".
Frade Demetrius dos Santos Silva * São Paulo/SP, fonte: FOLHA de SÃO PAULO, de 09/08/2009.”
Eu nem discuti com os amigos, nessa oportunidade, a pobreza teológica do texto, no qual um sociologismo raso e barato fundamenta um discurso demagógico com laivos de uma piedade jansenista. Na verdade, o jansenismo foi imediatamente detectado por Oswaldo, um ateu cultíssimo que estava participando da discussão. Ele falou:
- "Atire a primeira pedra"... Não deveria nem estar nos altares, diante de tanta coisa ruim que a Igreja fez durante séculos...
Ele estava coberto de razão, salvo pela confusão eclesiológica, quer dizer, confundiu a pessoa da Igreja, que é santa, com as pessoas na Igreja, os seus filhos, que valem muito pouca coisa. E foi somente por causa dessa pequena mas relevantíssima confusão que resolvi entrar na discussão:
- Oswaldo, prezado amigo, Envergonho-me junto com você dos tremendos pecados que nós, filhos da Igreja, cometemos diante do crucifixo durante todos estes séculos. Nós, cristãos, bem poucas vezes fomos dignos deste nome, as poucas exceções são aqueles que, movidos pela Graça, converteram-se e puderam dar o impressionante testemunho da santidade ao mundo, como São Francisco, Madre Teresa ou Irmã Dulce. Pessoalmente, estou entre os filhos da Igreja que fizeram "tanta coisa ruim" em todos estes séculos, e por cujo testemunho paupérrimo tanta gente se afastou de Deus. No entanto – ressaltei - a Igreja é santa, quando mais não fosse, por ter sobrevivido a tanta gente imprestável como eu, quanto os que estiveram, em dois milênios, em suas hostes.
- Meu único consolo – prossegui - é que não há, no mundo, outra instituição formalmente organizada com a mesma antiguidade que a Igreja, e mesmo aquelas que, não tendo a idade dela, apresentam-se hoje, não têm um testemunho melhor do que o nosso para dar ao mundo. É corretíssimo imputar ruindade aos filhos da Igreja, mas só se pode falar em ruindade quando há um padrão de bondade para se comparar. E não há outra instituição em que o padrão de santidade possa evidenciar de modo tão pleno e direto a distância entre a perfeição proposta indefectivelmente e o desempenho apenas medíocre da grande maioria dos seus membros. Lembro de uma anedota interessante: dizem que Napoleão, tendo prendido Pio VII, ameaçou:
- Vou destruir a Igreja.
O papa retrucou;
_Você não vai conseguir!
Napoleão esbravejou:
-Como não? E sou o imperador, tenho a Europa ao meus pés, prendi o Papa! Por que não conseguiria destruir a Igreja?
O Papa respondeu:
- Meu filho, tem mil e oitocentos anos que nós, filhos da Igreja, estamos tentando destruí-la por dentro e não conseguimos, você acha que vai conseguir destruí-la de fora?
- No mais – continuei eu - a Igreja é coluna e sustentáculo da verdade (1 Tim 3, 15), e seu centro não é o crucifixo, mas a Eucaristia (Jo 6, 58, 1Cor 11, 29); as razões colocadas pelo padre, no artigo que o Osório citou, são ponderáveis, mas ele não fala pela Igreja, onde não vige o individualismo, mas a hierarquia. Quem fala pela Igreja é o Bispo, em comunhão com o Papa, e somente este último tem infalibilidade, mesmo assim apenas quando fala de cátedra, e em matéria de fé e moral. Fora isto, a questão dos crucifixos é estritamente cultural e está no campo do opinável, pelo que a palavra do padre, neste caso concreto, não empenha a Igreja. É apenas a opinião dele.
- Aproveito, meu caro Oswaldo, e peço-lhe perdão pelo nosso péssimo testemunho de filhos da Igreja, com as exceções como as que citei. Mas também tenho direito à minha opinião, e defendo, na minha humilde condição de cidadão e membro do contexto cultural brasileiro, que há ponderáveis razões na manutenção deste e de outros símbolos religiosos na vida do Estado (como a praça dos Orixás, aqui em Brasília, ou a Praça da Bíblia, com um monumento ao Santo Livro, criado pelos irmãos evangélicos, lá na minha cidade natal), em respeito a nossa história e pluralismo.
O Oswaldo, após argumentar que acredita que a questão envolve o respeito às preferências pessoais, colocou:
não sou contra a utilização de símbolos religiosos em locais públicos, à critério de quem exerça, eventualmente, sua titularidade, uma vez que sendo eventual essa titularidade esses símbolos podem, inclusive, variar. O que é inconstitucional é o Estado impor a utilização dos símbolos, seja de qualquer religião. Pessoalmente, sou ateu, não tenho nada em meu local de trabalho que represente uma fé que não tenho...
às vezes eu gostaria que todos os cristãos fossem assim, cultos e sensatos como o querido amigo Oswaldo, que se declara ateu. Nossas divergências eventuais são bem próprias do diálogo democrático.
Toda essa conversa me lembrou um trechinho de um texto do Jean Guitton, chamado "Como Blaise Pascal veio ao meu leito interrogar-me sobre minhas razões para crer em Deus", que eu citei para os outros participantes daquela conversa. A uma certa altura, Guitton, que era um grande cristão, na sua conversa imaginária com Pascal, outro grande cristão, discute a questão do absoluto e diz o seguinte:
"- Eu também sou ateu, e você também é ateu, Pascal. Você é ateu do Deus dos estóicos, do Deus de Giordano Bruno e do Deus de Pomponazzi, como eu mesmo sou ateu do Deus de Spinoza, do Deus de Hegel, do Deus de Taine e de Renan.
— Temos que nos resignar, responde Pascal. - Somos sempre ateus de algum Deus.
— E também o incréu de alguém. Mas somos sempre demasiadamente crédulos; daí, não nos damos conta. Aquilo que mais falta a nossos cristãos, Pascal, é ser ateus. De minha parte, sou ateu do Deus de Nietzsche, do Deus de Marx, do Deus de Freud. Um ateu jubilante, um ateu ímpio.
— O Vir-a-ser, a História, o Inconsciente — esses são também Absolutos.
— E até mesmo o Nada é também Absoluto. Tal qual você me vê, Pascal, sou arqui-ateu do Nada. E Bergson era como eu."
Como Guitton, também sou ateu de muitos deuses. Posso citar, pessoalmente, que sou ateu do deus de Kardec, bem como do deus de Dawkins, aquele “genezinho egoísta” invisível que dirigiria dolosa e onipotentemente as nossas ações. Nisso, não posso deixar de sentir, como eu já disse ao Oswaldo em algumas ocasiões, profunda simpatia por ele. Tenho uma repugnância visceral contra a credulidade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário