quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Igreja, aborto e eleições presidenciais

Uma matéria publicada no jornal francês Le Monde, logo depois do resultado do primeiro turno das eleições de 2010, trouxe o seguinte comentário sobre a posição da Igreja Católica: “Nessa questão, a Igreja Católica tem mostrado uma certa hipocrisia. A Conferência Nacional dos Bispos repete que ela é politicamente “neutra” e nunca deu nenhuma instrução de voto. Mas ela bem que se absteve, até agora, de condenar os autores dos ataques, às vezes violentos, contra Rousseff.”.

Um colega trouxe esse artigo a uma lista de discussão da qual eu participo, e eu respondi:

“ Não posso falar pelos evangélicos, mas apenas pelos católicos. Nem quero me manifestar sobre política, mas redarguir a uma acusação direta de hipocrisia dirigida no artigo contra a minha mãe e mestra, a Igreja, coluna e sustentáculo da Verdade (1Tim 3, 15). Assim, me alongarei um pouco. Quem não quiser acompanhar, pode deletar logo.

A Igreja Católica não é "politicamente neutra",nem nunca se declarou assim, mas tem suas próprias posições sobre os temas em debate na eleição - e é claro que eles vão "muito além da questão do aborto". As posições da Igreja Católica estão em dois documentos: a Bíblia e o Catecismo da Igreja Católica. Não se trata, portanto, de uma pauta subreptícia. Por isso, acusar de hipocrisia é muito grave e leviano, hipócrita é quem tem uma posição pública e uma outra oculta sobre o mesmo tema. Todas as nossas são perfeitamente públicas, e conhecidas há dois mil anos... Veja, por exemplo, o documento Didaquê (ou Doutrina dos Apóstolos), do ano 96 D.C. (séc. I), em que a Igreja Católica já dizia:

"2 Não cometerás adultério; não matarás; não prestarás falso testemunho; não violarás a criança; não fornicarás; não praticarás a magia; não fabricarás poções; não matarás a criança mediante aborto, nem matarás o recém-nascido; não cobiçarás nada do teu próximo. 3 Não proferirás perjúrios; não falarás mal, nem recordarás das más-ações. 4 Não darás mal conselho, nem teu linguajar terá duplo sentido, pois a língua é uma armadilha para a morte. 5 Tua palavra não será vã, nem enganosa. 6 Não serás ambicioso, nem avarento, nem voraz, nem adulador, nem parcial, nem de maus costumes; não admitirás que se crie uma armadilha para o teu próximo. 7 Não odiarás a qualquer homem, mas o amareis mais que a tua própria vida. "

Neste sentido a Igreja é conservadora: vem conservando fielmente, há dois mil anos, o depósito da fé, ou seja, a Tradição Apostólica e sua expressão mais cristalizada, a Palavra de Deus, bem como a correta interpretação da Palavra, pelo seu Magistério. Daí a nos apontar institucionalmente como socialmente conservadores vai uma distância muito grande, nesse espaço de pluralidade na unidade que é a Igreja.
No entanto, a Igreja, institucionalmente, não aponta candidatos – o que, aliás, vista apenas como ONG, poderia legitimamente fazer - mas critérios positivos para escolher, que são orientação apenas e tão-somente para seus próprios fiéis. E ser fiel católico é uma livre escolha, e não-vinculante, já que se pode deixar de ser a qualquer momento.

Mesmo para os fiéis, no âmbito da economia interna da nossa ONG, trata-se de questão opinável e, de acordo com o cânon 227 do Código de Direito Canônico de 1983, de livre exercício pelos fiéis, sendo as indicações eclesiais apenas isso, exortativas. Mas isso é um problema de economia interna da Igreja, e não parece que caiba ao Le Monde julgar nossas consciências, mas apenas a Deus, para os que nele acreditam, ou a ninguém, para os que se declaram ateus ou anticristãos - porque não reconhecem nenhuma instância transcendente que possa fazê-lo. Estes têm tanto direito de julgar nossas consciências quanto eles admitam o direito recíproco para nós de julgar as deles.

No jogo democrático, qualquer ONG tem esse mesmo direito, de influir na política. Apenas à Igreja ele é negado? Que democracia é esta, que permite a qualquer ONG influir na agenda política, menos aos membros maior e mais antiga ONG do país? O mal da Igreja, parece, é que todo mundo se sente meio dono do catolicismo, meio Deus, e autorizado a julgar o Papa, os bispos, a doutrina da Igreja, como se a medida da Igreja não fosse a sua fidelidade ao que acredita e professa, mas fosse o ego do opinante, ou do jornalista, corajoso o suficiente para chamar os coletivamente os católicos de hipócritas, mas não para expor claramente o padrão que está usando para nos julgar e permitir-nos, em contrapartida, julgá-lo com o mesmo padrão que nos aplica. No que me toca, e aos muitos cristãos, católicos ou não, com quem convivo, temosmuitos defeitos, mas a hipocrisia não é nem de longe o principal deles. Já alguns jornalistas que tive o desprazer de conhecer...

Portanto, não se trata de "impor agenda", mas de influir nos rumos do país a partir da nossa própria agenda, e isso é próprio da democracia. A menos que você entenda que a democracia permite a manifestação e a participação de qualquer grupo social, menos dos que discordam do Le Monde.

Ressalto que ainda não escolhi em qual candidato vou votar no segundo turno. Mas acho que o Le Monde poderia chamar validamente de hipócritas tanto a quem, como a Dilma, defendia publicamente o aborto e de repente mudou de opinião no final da campanha, quanto ao Serra, que agora posa de pró-vida e católico, mas normatizou o aborto na rede pública, quando era ministro da saúde (Norma Técnica de 9 de novembro de 1998), posição, à época, plenamente repudiada pela CNBB, em sua 45ª Reunião Ordinária.

Enfim, não se trata de eleger alguém ao cargo de santo, mas de presidente, pelo que vou ter que escolher um dos dois, ouvindo sempre a minha mater et magistra.

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