quinta-feira, 28 de outubro de 2010

A falácia da descriminalização do aborto

Ainda me espanta a posição de alguns que se dizem “contra o aborto”, mas a favor da descriminalização. Me espanta sempre o uso das palavras como meros rótulos, mera retórica, capazes de acomodar-se a qualquer situação.
O problema é principiológico, me parece, e não poético. Uma vez que, para discursar, precisamos partir de um princípio, e que todo princípio deve ser auto-evidente e não pode fundamentar-se em outro princípio ainda mais fundamental - ou já não seria um princípio - tudo (mesmo e principalmente o ateísmo, quando discursa) parte de um ato fundamental e principiológico de fé, que eu resumiria assim:
1. Ou você crê (porque não há como "provar" cientificamente) que no princípio há o caos, e o "cosmos" é linguagem, construto, e portanto todas as palavras são meras metáforas que se aplicam arbitrariamente ao que no fundo não existe de modo consistente;
2. ou você crê que no princípio há o logos, e que há uma verdade intrínseca às próprias coisas, e o cosmos é uma realidade ontológica. Assim, a linguagem não é um mero rótulo, mas a expressão simbólica de uma inteligibilidade constitutiva do cosmos.
Os que creem no item 01 acima normalmente não percebem que estão num caminho de estrita crença metacientífica, (porque não podem jamais provar seu ponto de partida) mas normalmente acreditam-se mais racionais e sutis, mais "críticos"; os que optam por ver o mundo na conformidade do item 02 às vezes não percebem a densidade filosófica da sua opção de fundo e resvalam para um discurso religioso e querem catequizar, ao invés de argumentar. É o que tentarei não fazer aqui. Nada de catequese, apenas argumentação.
Partir do item 01 leva a uma autocontradição: se todo discurso é arbitrário, não há sentido em produzir qualquer discurso, salvo se para dominar o outro. Assim, o próprio “discurso de libertação”, quando parte do pressuposto do caos, é apenas um discurso tendente a uma dominação ainda mais violenta.
E a vida do ser humano no útero, nessa linha, de fato não tem nenhum valor intrínseco, na verdade é apenas um "fato" (o "feto") que um "ato de fé" baseado nas forças prevalecentes em um determinado momento social transformou em objeto de proteção, e que um outro discurso com mais poder - ou com mais "vontade de poder" - não está impedido de transformar no monte de matéria orgânica sem sentido que, no fundo, ele é, como afinal, todos nós somos, segundo o raciocínio que os seguidores dessa linha filosófica levam às últimas consequências, e o aborto, como o homicídio, o infanticídio, o genocídio, ou qualquer outro "cídio" cujo perpetrador seja poderoso - poder que resulta autojustificado, portanto. Não haveria sentido, então, para eles, em lutar contra o poder que consegue se estabelecer, seja pela força bruta, seja pela hegemonia gramsciana, quando não se tem poder suficiente para derrotá-lo e impor, por pura força, o seu próprio "ato de fé", substituindo o "ato de fé" das forças derrotadas. O poder só se fundaria no poder, o que, no fim, é também um ato de fé. E o homem, apenas um amontoado ocasional de matéria orgânica que o acaso elevou da matéria fundamental. Nada tem significado. Mas essa última frase também é um ato de fé niilista, que só pode prevalecer se lastreada num ato de força.
No fundo, então, seria tudo igual, matar ou não matar, tudo uma questão de dominação, e toda diferenciação é hipócrita, então a conclusão parece ser: liberemos logo o aborto, porque, de todas as vítimas de "cídio", a
classe dos fetos não vai ter como protestar, mesmo.
Pessoalmente, como sei que sou louco de pedra, mas reconheço que, ainda assim, há uma ordem nas próprias coisas, creio no logos. Respeito quem crê no caos, há uma respeitável corrente filosófica, desde Heráclito, passando por Demócrito, Epicuro, Lucrécio, Guilherme de Occam, Kant, Nietszche, Sartre e tantos outros que pensam assim!
Sigo outra nobre corrente, arraigada na busca do Logos, com Sócrates, Platão, Aristóteles, Jesus, Justino, Agostinho, Tomás, Hegel, Gabriel Marcel, Karol Wojtilla, Etienne Gilson, dentre tantos nomes memoráveis, e com toda sinceridade, acho frágil o raciocínio que conduz da discriminalização à proteção do embrião, mas ainda não perdi a capacidade de espantar-me com a ideia de que as "bandeiras" daquilo que um outro colega “progressista”, numa troca de emails comigo, chamou de bandeiras da "esquerda cultural": o casamento homossexual, a liberação das drogas e o aborto, são simplesmente bandeiras autodestrutivas: os casamentos
homossexuais são estéreis, os casamentos heterossexuais resultarão em baixíssima fertilidade pelo uso cumulado de drogas e o aborto, e os que restarem estarão drogados demais para conduzir o mundo com alguma consequência, eis porque no fim restaremos nós, os antiquados e prolíficos seguidores do logos e os nossos filhos, para reconstruir as coisas. Mas a descriminalização transformará - como tem transformado nos países onde ocorreu - o útero feminino no lugar mais arriscado para um bebê estar, já que a maior taxa de óbito de bebês passa a ter como causa uma ação positiva e lícita  da mãe no sentido de eliminar o próprio filho.

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