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terça-feira, 26 de junho de 2012
A autonomia entre Igreja e Estado no pensamento de São Paulo de Tarso
Em outra reflexão, tratei da intuição a respeito da autonomia das esferas religiosa e temporal como uma intuição propriamente cristã. Na verdade, esta intuição de Jesus, expressa no seu dito tantas vezes citado “a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mc 12, 17 e paralelo em Mt 22, 21) foi pela primeira vez sistematizada de modo profundo por São Paulo, com impecável correção jurídica.
Pode-se considerar a Carta aos Romanos (e, em menor escala, a Carta aos Gálatas) como os dois primeiros (e ainda não ultrapassados) tratados sistemáticos sobre a autonomia das esferas, a correta articulação entre o poder estatal e a vida religiosa. Ao reconhecer que judeus e gentios (ou seja, todas as formas de organização pública da época) têm a lei (ou seja, um ordenamento estatal legítimo), mas que em nenhuma hipótese a lei é capaz de salvar o homem, São Paulo está fazendo um desenvolvimento muito profundo e até certo ponto inesperado daquela afirmação de Jesus que transcrevemos acima. E mais inesperado ainda é quando o mesmo Paulo de Tarso afirma: “Então eliminamos a lei através da fé? De modo algum! Pelo contrário, a consolidamos!” (Rm 3, 31).
Assim, inaugura-se uma concepção de Estado que não coloca os fundamentos de sua legitimidade numa deidade (mesmo na forma de um onipotente “Poder Constituinte”, ou de uma impessoal e onisciente “norma fundamental hipotética”, ou de um invisível e onipresente “contrato social” esotérico), nem a submissão à legislação como caminho de redenção humana para qualquer afastamento com relação a um deus, seja na forma de uma sociedade corruptora que degenera o homem originalmente inocente de Rousseau, seja na forma de uma concessão pacificadora dos homens-lobo de Hobbes, ou de qualquer outro “mito de origem” iluminista ou marxista.
Ao separar o plano contingente da convivência social e da necessária regulamentação estatal da conduta humana, por um lado, do plano da salvação e da Graça, por outro, São Paulo nos deu a base filosófica para uma teoria consistente da separação entre Estado e religião, ou melhor, entre Estado e redenção salvífica. Neste sentido, ele foi o primeiro a teorizar sobre a correta relação entre o ordenamento estatal e a vivência da fé religiosa e da busca de redenção.
O estado é necessário, e sua obediência é dever de todos. Mas nessa obediência encontra-se somente o fundamento para a boa convivência humana (sem dúvida necessária para a salvação, mas não suficiente) e não uma relação direta com a ordem divina ou um caminho redentor. E é assim que se pode compreender a ordem de submissão à autoridade estatal que Paulo nos dá no capítulo 13 da sua Epístola aos Romanos: é claro, ali. que a autoridade humana é consentida por Deus, mas a ordem que ela estabelece não necessariamente é querida por Deus e pode sempre ser aperfeiçoada e debatida.
Assim, o fundamento da coercitividade do ordenamento jurídico, não é, para São Paulo, a promessa de uma redenção pela lei, mas a constatação de fato de que há necessidade de uma ordem estatal, como realidade permitida por Deus para possibilitar a organização econômica e a convivência humana.
Ocorre que essa estrutura estatal histórica não se confunde com o Reino de Deus (ou com um reino de deuses), e se lastreia na contingência, tendo, no entanto, um enorme potencial para transformar-se num ídolo. Assim, diz Paulo, submeto-me ao ordenamento jurídico porque Deus espera que eu seja obediente, mas não porque eu veja no direito uma redenção, ou no governante uma figura divina, nem sequer seu mandatário direto. Embora, é claro, o exercício do poder seja, sem dúvida, permitido por Deus em determinada configuração histórica.
A relação entre o cidadão e o Estado é lastreada na necessidade de convivência, não de salvação. A salvação está no plano da graça, e somente lá. A obediência ao Estado é consequência, e pode representar (como de fato muitas vezes representa) a cruz necessária para chegar à redenção, mas não o caminho, nem a verdade, nem a vida.
Quando, porém, os poderosos de determinado estado se esquecem de que a pessoa humana tem uma raiz transcendente e autotranscendente, ou porque imaginam que a ordem jurídica possa salvar-nos dando-nos uma “liberdade” que envolve a possibilidade de autodestruição e de destruição do outro, ou porque se tem uma visão de que a pessoa humana não precisa nem pode alcançar qualquer redenção, passam a ver os que creem, os que defendem que o fim da pessoa está além de si mesma, como adversários a serem derrotados ou, no mínimo, calados.
Os cristãos são, então, o último obstáculo, para eles, na sua luta injusta para construir um ordenamento jurídico que possa invadir o plano do fim último da pessoa humana e tornar-se um “deus” totalitário. Estes poderosos, então, buscam calar os que não confiam nem nas suas promessas sempre reeditadas de “redenção” temporal, nem no seu niilismo desesperançado.
Nós, cristãos, elegemos, para nossos governantes, muitas vezes grupos ou pessoas que não compartilham a nossa fé religiosa. Mas são eleitos apenas para cuidar das realidades temporais. Os votos que eles recebem não os legitimam para nos impor seus projetos salvíficos ou sua visão religiosa (ou antirreligiosa). São livres para tê-las, e mesmo para trazê-las à discussão pública ou viver em harmonia com elas tanto quanto quaisquer outros cidadãos. Mas os votos que receberam não os legitima a acreditar que, além de líderes políticos, passaram a ser também líderes religiosos – ou antirreligiosos.
O perigo, portanto, é que os poderosos do mundo contemporâneo esqueçam-se de tais ensinamentos cristãos (preciosos mesmo para aqueles que nada sabem ou querem saber de Deus) e, em nome de uma “separação” entre estado e religião, que na verdade só “separa” as religiões que eles não podem controlar, voltem a exigir que se queime incenso ao César do momento, seja esse César o “proletário”, o evolucionista cientificista, o libertário sexual, o cientista ou o “porta-voz” do “povo” personificado. E que este incenso seja exatamente o cadáver de nossas crianças abortadas, o nosso amor próprio e pudor, a sanidade dos nossos filhos entorpecidos ou a nossa voz política.
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