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quinta-feira, 25 de outubro de 2012
Os crimes sexuais no projeto de código penal
Tratando da relação entre a estabilidade das leis e a democracia, Jean Jacques Rousseau alertava os habitantes da República de Genebra sobre a necessidade de que a legislação ficasse protegida dos sabores das modas, das “vanguardas de pensamento” que hoje defendem uma inovação, amanhã outra, e que têm a novidade como um fim em si mesma. Dizia Rousseau no seu “Discurso sobre a Origem da Desigualdade”, criticando os “novidadeiros legislativos”: “[...] é sobretudo a grande antiguidade das leis que as torna santas e veneráveis, pois que o povo logo despreza as que vê mudar todos os dias e, pelo hábito de negligenciar os antigos usos, sob o pretexto de fazer melhores, são introduzidos muitas vezes grandes males para corrigir menores.”
Num regime verdadeiramente democrático, portanto, as mudanças legislativas existem para corrigir aquelas situações em que as leis já não mais atendem aos valores e anseios do povo. Toda cultura é dinâmica, e é muito justo e legítimo que aquelas leis que já não acompanham tal dinamismo sofram a necessária revisão.
Temos que ter muito cuidado, no entanto, quando qualquer “vanguarda”, seja social, seja intelectual, seja mesmo comportamental (como é o caso de certos “vanguardismos sexuais” hoje em moda) resolvem inverter os conceitos democráticos, e pretendem usar a lei para instituir bandeiras. Já não se trata, neste caso, de mudar leis que já não refletem os valores sociais, mas de tentar mudar a sociedade, os próprios valores sociais através de mudanças legislativas que atendem ao anseio destas mesmas “vanguardas”, através da sua força de influência legislativa muitas vezes desproporcional à sua verdadeira significação. Adaptar a sociedade às suas próprias bandeiras, usando de uma conjunção política eventualmente favorável, não é democracia.
Refiro-me, como exemplo, ao quanto proposto no artigo 121, § 1º, do projeto de código penal atualmente em tramitação no senado Federal. Ali, o projeto equipara aos homicídios qualificados pelo motivo torpe aqueles praticados “em razão de preconceito […] de orientação sexual e identidade de gênero”.
Motivo torpe, para o Código Penal ora em vigor, é aquele vil, desprezível, absolutamente desproporcional com a conduta de matar alguém. O código penal exemplifica o homicídio cometido por motivo torpe como aquele cometido “mediante paga ou promessa de recompensa”, deixando claro que esta menção é exemplificativa, quando termina o texto dizendo “ou por outro motivo torpe”.
Claro que todo homicídio é lamentável, e nenhum deveria ser cometido. Mas há casos em que tais crimes, por sua motivação ou circunstâncias, violam gravemente o próprio núcleo de coesão social, banalizando a vida humana de uma forma que merece uma reprimenda muito mais grave da nossa sociedade. É o caso do “crime de mando”, cometido mediante paga.
A pergunta é, então, se o preconceito em razão de “orientação sexual ou de identidade de gênero” pode sempre ser visto como um motivo torpe, equiparado ao “crime de mando”, para o cometimento de um homicídio, mesmo dentro do sistema deste projeto de código penal que ora tramita no senado. E a resposta é negativa.
De fato, o próprio projeto de código penal traz todo um capítulo daquilo que chama de “crimes contra a dignidade sexual” (art. 180 e seguintes do projeto). Ora, existem, portanto, diversas categorias de “orientações sexuais” que são consideradas indignas pelo próprio código, como é o caso das orientações sadistas, vale dizer, daquelas pessoas que somente sentem prazer sexual mediante a submissão e a indução de sofrimento a outrem, pela prática do sexo contra a vontade do parceiro. Práticas assim são sempre ilícitas, para este projeto, mas não se pode negar que há diversas pessoas cuja “identidade sexual” é exatamente esta: o sadismo. Assim, o preconceito contra sádicos tem fundamento na própria lei que se quer aprovar, mas pode qualificar como “torpe” um homicídio. Claro que o exemplo é extremo, mas o código penal é feito exatamente para qualificar os extremos. Um estuprado mata um sádico estuprador. Quem é o torpe, para este projeto?
Estudemos outro exemplo. Um operário muito simples e de pouquíssima instrução, de origem rural, casado há muitos anos e frequentador de uma congregação religiosa muito conservadora, pagador de seus impostos e bom membro da comunidade, tem um filho de treze anos, que nunca praticou nem sequer demonstrou qualquer tendência ou prática homossexual. Ele educa cuidadosamente este filho, com muita firmeza, para a castidade e o pudor. Ora, este “projeto” de código penal considera que um jovem de treze anos já pode consentir validamente com qualquer ato sexual. Ora, um dia o referido operário chega em casa e, notando a ausência do filho, vai procurá-lo. Encontra-o na residência de uma pessoa do sexo masculino, de mais de cinquenta anos, cuja “identidade sexual” é a “efebofilia”, ou atração sexual por jovens adolescentes. Este mesmo senhor efebófilo atraiu o jovenzinho com um discurso aparentemente bem “moderninho” e liberado, de que experimentar é bom, de que ninguém deve escolher a própria “orientação sexual” sem experimentações, apenas por causa das “tradições” paternas, e está, neste mesmo momento, realizando uma penetração sexual no jovem, que oscila entre os conflitos interiores, a confusão adolescente e o fascínio pelo desconhecido. O pai operário irrompe pela porta mal fechada da casa do efebófilo e, ao ver o filho naquela posição, parte para arrancá-lo dali e levá-lo para casa. Mas o efebófilo acusa o pai em altos brados de “preconceituoso” e segura o menino, que, dividido entre a vergonha e o receio ao pai, hesita em acompanhá-lo. Na altercação que se segue, o pai acaba avançando contra o efebófilo e o mata. Quem é o torpe? Para o projeto, neste caso, é o pai.
É muito fácil, pois, em nome da “eliminação dos preconceitos”, eliminar-se a própria divergência social e impor a todos a uniformidade das “bandeiras vanguardistas”, eliminando o próprio pluralismo que supostamente se queria defender. Facilmente, numa sociedade verdadeiramente pluralista, o “preconceito” de um é apenas o “conceito” do outro – mesmo que o “preconceito” seja “avançadinho” e o conceito, conservador. Para determinados “vanguardistas sexuais”, um casal monogâmico heterossexual pode parecer uma aberração inaceitável, e vice-versa.
Não se discute que a nossa sociedade não admite a intolerância, e que crimes de intolerância devem ser mais gravemente reprimidos. A intolerância é o atentado direto contra a legítima pluralidade social, seja do avançado contra o conservador, seja o contrário. Mesmo quem tem “preconceito”, e julga reprovável a conduta do outro, deve tolerá-lo em nome da legítima pluralidade social. Mas quem é intolerante e alcança o poder político muitas vezes elimina, em nome da sua própria concepção de “vanguarda”, aquele de quem discorda. A intolerância, em nome da eliminação dos “preconceitos”, criminaliza a opinião do outro em nome da legitimidade de suas “causas sociais” ou “sexuais”; a tolerância, no entanto, admite o próprio preconceito como parte inevitável, e mesmo altamente desejável, do pluralismo social. Assim, criminalizar a intolerância contra uma legítima pluralidade social é democrático, mas criminalizar o simples preconceito é intolerância. E é exatamente isto que esta redação do projeto de código penal faz, neste particular.
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