Um colega, professor de direito e inteligentíssimo, enviou-se um link para uma "história em quadrinhos", na qual se apresenta, de maneira lúdica, aquilo que o autor acredita ser a doutrina de Hans Kelsen, o positivismo jurídico.O autor é Luíz Alberto Warat
O link para os quadrinhos é http://ruadosbragas223.blogspot.com/2009/03/kelsen-os-quadrinhos-puros-do-direito.html
Li os tais quadrinhos e fiz as seguintes observações para o meu amigo:
1. A primeira folha, que inicia com “existia uma grande confusão entre os juristas dogmáticos” é muito engraçada, e mostra uma visão em pastiche do pensamento de Kelsen sobre a realidade que lhe precedeu, além de apontar os nossos próprios preconceitos pós-contemporâneos como “pelo menos isso era o que pensava Kelsen”.
2. Para começar, não havia nenhuma “confusão entre os juristas dogmáticos”, nem Kelsen pensava isto. Os juristas sabiam exatamente de onde partiam e onde chegavam. Seria uma imbecilidade de Kelsen não reconhecer a solidez do pensamento kantiano, ou mesmo do pensamento hegeliano, sobre o direito, e colocar tudo numa "geleia geral". Quem escreveu isso nunca leu, por exemplo, Agostinho ou Tomás de Aquino, que, embora profundamente religiosos, sempre souberam exatamente a diferença entre Revelação, direito natural e direito positivo. Eu iria mais longe: todo pensamento jurídico de alto nível, mesmo antes de Kelsen, sempre esteve perfeitamente consciente de seus próprios pressupostos e de suas próprias consequências, bem como dos limites daquilo que chamava de “jurídico” e do que chamava de “moral” e de “religião”. Apenas, por não partir de uma asséptica “norma hipotética gnoseológica imaginária”, chegavam a conclusões diferentes do que o próprio Kelsen chegou.
3. Aponto mais duas pasteurizações: segundo tais quadrinhos, “Kelsen pensava que os juízes se sentiam imaculados e acreditavam que não matavam a justiça aplicando a lei como revelação divina”. Ora, eu diria: a) ser imaculado, segundo o texto dos quadrinhos, era exatamente o desejo de Kelsen, ou pelo menos criar uma “teoria imaculada do Direito”. A pergunta que não existe é: em que medida o Kelsen dos quadrinhos conseguiria evitar o erro que ele apontava nos juízes, e criar uma “teoria imaculada do direito”, se ele acreditava que o erro dos juízes era exatamente sentirem-se imaculados, mas no fundo renderem-se a uma instância “divina” na aplicação do direito? B) digo isto porque a pretensão de que Kelsen pudesse “criar”, na sua “imaginação”, uma “norma hipotética gnoseológica” que nos permitisse conhecer o direito (fazer “ciência do direito”) com a pureza de uma imaginação descontaminada pela humanidade, como se fosse um extraterrestre, é a pretensão de ser Deus. Isso me lembra Feuerbach, na sua “Essência do Cristianismo”: no fundo, parao autor dos quadrinhos, o erro de toda cultura anterior a este "novo Moisés" que é o Kelsen ali retratado seria a de projetar num Deus externo ao homem as perfeições que somente ao homem (figurado idealmente em Kelsen) cabem. O conhecimento do direito deveria vir, portanto, de uma “mente divina” como a de Kelsen, no sentido de uma mente que pudesse “imaginar”, (i.e., criar), livre de paixões e confusões, a baliza fundamental para todo o conhecimento (gnose) do direito posterior. Criaram, nestes quadrinhos, uma teoria pura do direito profundamente teológica: só que Kelsen, com sua infinita liberdade de “imaginar” a NFG, é Deus. Quem pensar o direito como pensa Kelsen, é puro. Quem pensar como pensam os “antigos”, é “impuro”. Isto é religião, da pior qualidade. Parece que Kelsen, aqui, encarna a figura do "deus-homem" de que trata Kant na sua obra "A Religião Dentro dos Limintes da Pura Razão". Ele dizia: "Na manifestação do deus-homem não é o que se apresenta aos nossos sentidos ou pode ser conhecido por experiência, senão o modelo santificante existente em nossa razão [de Kelsen, neste caso] o que constitui propriamente o objeto de fé santificante". Vale dizer, toda a pureza (descontaminação do "lodo" que nos faz juristas "impuros") estaria em render-se ao modelo santificante contido na Razão de Kelsen.
4. Ainda na primeira página, imputa-se aos “juízes antigos” três defeitos: sentiam-se imaculados, matavam a justiça aplicando a lei como revelação divina, eram super-heróis e confundiam esferas morais, políticos e jurídicos no mesmo “lodo”. Os legisladores, segundo os quadrinhos atribuem a Kelsen, erravam ao prestigiar o “espírito das leis”, este “velho fantasma do passado” que cuida das verdades por toda a eternidade. Na mesma página estão fundidas a teocracia, o leviatã hobbesiano, o romantismo jurídico do “espírito das leis” e o racionalismo iluminista. É o samba do crioulo doido: estes sistemas só ficaram confusos na cabeça dos maus juristas brasileiros. Lá na velha terra, onde eles foram criados, não somente eram absolutamente distintos, como eram incompatíveis entre si, e seus respectivos estudiosos e defensores tinham – e ainda têm - perfeita noção disso.
5. Na verdade, parece que o positivismo brasileiro (retratado nestes quadrinhos) colocou num mesmo caldeirão todos os filhos do iluminismo (excetuado, claro, o kelsenianismo, que também é filho do iluminismo, mas aqui é visto como uma nova religião) e os devorou antropofagicamente, apelando para a pureza da imaginação iluminada de Kelsen, este profeta possuidor da “pureza imaculada” que ele, segundo os quadrinhos, nega a quem não pense como ele (os juízes que se acreditavam “imaculados” são ridicularizados na primeira página, mas na página 6 o próprio Kelsen surge cercado da palavra “pureza” em vários formatos. Criou-se o verdadeiro “dogma da Imaculada Conceição de Kelsen”...
6. Dizer que Kelsen criou uma “teoria pura do saber” (gnose) e não uma “teoria do direito puro” é uma contradição com toda a crítica feita nas primeiras páginas, onde os juizes “antecessores” são ridicularizados exatamente porque, alegadamente, não conseguiam atinar com um “direito puro” e misturavam tudo no mesmo “lodo”. Ora, se não há um “direito puro”, mas apenas uma pura “gnose” do direito, então eles não podem jamais ser criticados por “misturarem” instâncias religiosas, sociológicas, morais, históricas ou qualquer outra em seus juízos jurídicos – porque eles estão produzindo “direito”, e não “ciência do direito”. Quem confundiu as instâncias foi o “quadrinheiro”...
7. Ora, se eu sou um extraterrestre e resolvo estudar as mulatas pelo mero deleite gnóstico, e então peço aos meus cientistas que imaginem uma “mulata ideal”, eu posso ter a absoluta certeza de que a minha “mulatologia” pode ser profundamente coerente do ponto de vista interno, mas que nenhum carioca jamais casaria com uma das “mulatas” que correspondesse a este modelo, porque os cientistas (todos os que eu conheço, pelo menos) têm um péssimo gosto para mulatas. Esta “norma mulatal hipotética” padeceria da “contradição tostines” (aqueles dos quais não se sabe se vendem mais porque são fresquinhos, ou se são fresquinhos porque vendem mais, lembra?). Vale dizer, para elaborar uma “norma fundamental mulatal” os cientistas teriam que estudar algumas mulatas antes de elaborar tal norma, mas eles não teriam como saber se alguém é mulata ou não antes da própria norma existir, portanto, eles nunca saberiam se as mulatas que permitiram a eles elaborar sua “norma de pureza” eram verdadeiras mulatas, senão depois de elaborar a “norma mulatal fundamental”. O nome deste vício de raciocínio é “petição de princípio”, que o autor dos quadrinhos não deve conhecer...
8. Vale dizer: como toda gnose, esta “teoria pura kelseniana” apresentada pelos quadrinhos é uma religião, aliás uma péssima religião, como toda gnose. Não preciso te ensinar, mas apenas te lembrar da estrutura básica de toda gnose: o “mundo” é ruim, é mau, mas guarda em si uma “fagulha” pura de bondade que os iluminados podem distinguir e anunciar para o mundo. Há religiões melhores. Embora Kelsen tenha sido um excelente lógico jurídico, insuperado neste campo muito estrito da ciência jurídica, ele cometeu uma falácia básica: a lógica é um excelente instrumento do pensamento, mas não é substrato ontológico, vale dizer: a realidade pode ser pensada logicamente, mas nunca pode ser substituída pela própria lógica. A lógica pode ser um grande instrumento para conversar sobre mulatas nos laboratórios, mas os lógicos jamais engendram lindas mulatas em laboratório, nem ao menos as conquistam.
9. Por fim, estes quadrinhos parecem muito mais uma apolgética religiosa do que divulgação científica. Transformar o velho Kelsen num ídolo religioso, no entanto, pode não ser uma boa ideia.
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