quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Carta da Congregação para a Doutrina da Fé de 1966

CARTA SOBRE OPINIÕES ERRÔNEAS NA INTERPRETAÇÃO DOS DECRETOS DO CCONCÍLIO VATICANO II
Congregação para a Doutrina da Fé

Depois da promulgação do Concílio Ecumênico Vaticano II, concluído recentemente, sapientíssimos documentos, tanto sobre questões doutrinais, quanto disciplinares, para promover eficazmente a doutrina da Igreja, incumbem a todo o Povo de Deus a lutar com todo o empenho para que se realize tudo o que, com a inspiração do Espírito Santo, foi solenemente proposto ou decretado naquele sínodo de Bispos, presidido pelo Romano Pontífice.
Á hierarquia compete o direito e o dever de vigiar, dirigir e promover o movimento de renovação que o Concílio começou, de modo que os documentos e decretos do referido Concílio recebam uma reta interpretação e sejam levados a efeito com exatidão segundo a força e o sentido dos mesmos. Portanto, esta doutrina deve ser defendida pelos Bispos, já que, como tais, gozam do poder de ensinar com autoridade, unidos à cabeça de Pedro. É digno de elogio que muitos Pastores do Concílio já tomaram a iniciativa de explicá-la convenientemente.
Sentimos, contudo, que de diversas partes chegam notícias de como não somente pululam os abusos na interpretação da doutrina do Concílio, como também de como aqui e ali surgem opiniões estranhas e audazes, que perturbam não pouco a alma de muitos fiéis. Devemos louvar os trabalhos ou intentos que buscam penetrar mais profundamente na verdade, distinguindo retamente entre aquilo em que se deve acreditar e o que é opinião; porém, pelos documentos examinados nesta Sagrada Congregação, consta que existem não poucas sentenças que, passando por alto facilmente os limites da simples opinião, parecem afetar o mesmo dogma e os fundamentos da fé.
Convém que expressemos, como exemplo, algumas das sentenças e erros, tal como são conhecidos através da relação de doutores e das publicações escritas.
1) Primeiramente, referimo-nos à Sagrada Revelação: há quem recorra à Sagrada Escritura, deixando de lado intencionalmente a Tradição, porém restringem o âmbito e a força da inspiração e da inerrância, já que pensam equivocadamente sobre o valor dos textos históricos.
2) 2) No que se refere à doutrina da Fé, diz-se que as fórmulas dogmáticas devem ser submetidas à evolução histórica, de tal modo que o sentido objetivo das mesmas seja exposto a mudanças.
3) Esquece-se ou subestima-se o Magistério ordinário da Igreja, principalmente do Romano Pontífice, de tal maneira que se relega ao plano das coisas opináveis.
4) Alguns quase não reconhecem a verdade objetiva absoluta, firme e imutável, expondo tudo a um certo relativismo, alegando o falaz argumento de que qualquer verdade deve seguir necessariamente o ritmo da evolução da consciência e da história.
5) Ataca-se a admirável pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo, quando, ao refletir sobre a Cristologia, utilizam-se tais conceitos de natureza e pessoa, que apenas podem se conciliar com as definições dogmáticas. Insinua-se certo humanismo pelo qual o Cristo é reduzido à condição de simples homem, que foi adquirindo pouco a pouco consciência de sua filiação divina, Sua concepção virginal, seus milagres e sua Ressurreição são concedidos de palavra, porém frequentemente reduzem-se à mera ordem natural.
6) Igualmente, ao tratar da teologia dos sacramentos, alguns elementos são ignorados ou não se lhes presta a suficiente atenção. Sobretudo no que se refere à Santíssima Eucaristia. Não falta quem discuta sobre a presença real de Cristo sob as espécies de pão e vinho, defendendo um exacerbado simbolismo, como se pão e vinho não se convertessem no Corpo e Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo pela transubstanciação, mas que simplesmente fossem empregados com certa significação. Há quem insista mais no conceito de ágape, com relação à missa, do que no de Sacrifício.
7) Alguns desejam explicar o Sacramento da Penitência como um meio de reconciliação com a Igreja, sem explicar suficientemente a reconciliação com Deus ofendido. Pretendem que, ao celebrar este Sacramento, não seja necessária a confissão pessoal dos pecados, mas somente se preocupem em expressar a função social da reconciliação com a Igreja.
8) 8) Não falta quem menospreze a doutrina do Concílio de Trento sobre o Pecado Original, ou quem a interprete obscurecendo a culpa original de Adão ou, ao menos, a transmissão do pecado.
9) Não são menores os erros que circulam no âmbito da teologia moral. Com efeito, não poucos se atrevem a refutar a razão objetiva da moralidade; outros não aceitam a lei natural e defendem, por outro lado, a legitimidade da chamada “moral de situação”. Propagam-se opiniões perniciosas sobre a moralidade e a responsabilidade em matéria sexual e matrimonial.
10) A todos estes temas, temos de acrescentar uma nota sobre o Ecumenismo. A Sé Apostólica, certamente, louva todos os que, no espírito do Decreto Conciliar sobre o ecumenismo, promovem iniciativas para fomentar a caridade com os irmãos separados e atraí-los à unidade da Igreja; porém lamenta que não falte quem, interpretando a seu modo o decreto Conciliar, exija uma ação ecumênica que vá contra a verdade, assim como contra a unidade da Fé e da Igreja, fomentando um perigoso irenismo e indiferentismo, que é totalmente alheio à mente do Concílio.
Espalhada esta classe de erros e perigos, apresentamo-los sumariamente, nesta Carta aos Ordinários do lugar, para que cada um, segundo seu cargo e ofício, cuide de refreá-los e preveni-los.
Este Sagrado Dicastério roga encarecidamente para que os Ordinários do lugar tratem disso nas reuniões de suas conferências episcopais e enviem relações à Santa Sé, aconselhando o que creem oportuno, antes da festa da Natividade de Nosso senhor Jesus Cristo do ano em curso.
Esta carta, que, por uma óbvia razão de prudência, nos impede de fazê-la de domínio público, deve ser guardada sob estrito segredo pelos Ordinários e por todos aqueles que com justa causa a ensinam. Roma, 24 de julho de 1966. A. Card. Ottaviani, Pró-prefeito.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

A Graça e a Tradição Católica

A graça é o oxigênio da teologia. A teologia inclui a graça em seu próprio conceito. É que o cristianismo não é um produto da razão humana, mas dom de Deus, revelação. Sem esta mensagem vinda do céu, sem a Revelação, a própria teologia cristã seria inconcebível. Apenas a Revelação nos mostra o que Deus é, o que quer ser para nós e o que quis que fôssemos para ele – Ele se dá a nós numa doação insuspeitada, que nos penetra até o íntimo da natureza humana e a eleva, fazendo-a participar da própria vida íntima da Trindade.
É preciso, nesta altura, questionar a própria antropologia cristã.
O homem foi constituído na justiça original, mas a perdeu pelo pecado. Importante guardar a noção da graça para entender esta antropologia e sua dialética natural/sobrenatural, natureza/Graça, bem como o pecado e a ruptura transcendental Deus/homem.
O Deus da Graça é o Deus Trindade, verdadeiro, pessoal e vivo. A graça define-se, em sua essência profunda, como a doação das três pessoas divinas, que penetram no homem e o transformam num templo.
Uma vez que a relação sobrenatural de amizade com Deus foi rompida pelo homem através do pecado, ele não poderia jamais restabelecê-la por suas próprias forças. Perdeu-a para si e para seus descendentes, pois não tinha direito a ela. Não se pode reclamar o amor como direito.
Por isso, desde o princípio, com a queda, delineia-se também a esperança de um Salvador, que é, como agora se sabe, o próprio Filho de Deus, que, pela sua morte e ressurreição, restabelece a intimidade entre o homem e Deus (Gl 4, 4-6).
Assim, a graça tem coloração cristológica, e a obra de Cristo é o superabundante restabelecimento da primitiva comunhão sobrenatural com Deus (Cf. Rm 5, 20 – Onde abundou o pecado, superabundou a graça).
A doação filial do Verbo é consumada como o primeiro de uma multidão de irmãos, a família dos filhos de Deus, que se chama Igreja. Ela é visível, como convém ao mundo material no qual se desenrola a vida humana, mas, ao mesmo tempo, instrumento eficaz da Graça divina que é, na verdade, a graça de Jesus Cristo. A Igreja tem caráter sacramental, capaz de alcançar o homem em cada instante de sua vida. Tais são os sacramentos.
Os santos, assim, são as pessoas dóceis ao dom de Deus. Eles mostram o que pode ser a vida humana que não interpõe obstáculos à graça. Santidade é o fruto pleno da graça, desenvolvimento harmônico que alicerça as grandes virtudes cristãs.
A consumação final da Graça dá-se nos planos pessoal, social e cósmico. Ela envolve a vida sem fim, a bem-aventurança eterna e a ressurreição da carne (dimensão corporal).
A graça envolve toda a história da salvação, que conhecemos pela Revelação.
A graça pressupõe a colaboração pelo homem, e aí surgem os problemas da delicada relação entre graça e liberdade, a discussão interminável sobre as obras e seu valor e a alegada possibilidade de chegar, sem a graça, aos fins sobrenaturais.
O primeiro ataque substancial ao dogma do pecado original veio do pelagianismo. Esta doutrina negava a ordem sobrenatural e, por consequência, negava a graça. Os pelagianos defendiam que Adão fora criado na mesma condição em que agora se acham todos os homens, ou seja, mortal, com todas as qualidades inerentes à natureza humana, sem nenhuma elevação natural à adoção divina ou à participação na vida do Criador.. Assim o pecado de Adão fez-lhe merecer o castigo, mas permaneceu restrito a ele. Ele seria apenas um mau exemplo.
São pilares do pelagianismo: um naturalismo que exclui a ordem sobrenatural, a independência da vontade humana com relação a Deus. Está aí uma raiz inadvertidamente ateísta numa doutrina que surgiu para incentivar o esforço humano, numa época de vida espiritual relaxada.
A graça, para os pelagianos, é um dom externo, consistente: 1. Na Revelação. 2. na Lei. 3. no exemplo de Cristo, 4. Na liberdade humana, que é a capacidade natural de fazer o bem, que Pelágio chama de “graça por excelência”.
Já em 418 o Concílio de Cartago condenava como anátema quem dissesse que a Graça de Deus, pela qual o homem recebe a justificação por meio de Nosso Senhor Jesus Cristo, só vale para a remissão dos pecados já cometidos, mas não como ajuda para não cometê-los. Anatematiza também os que afirmam que a graça só ajuda a não pecar porque revela o sentido dos preceitos (ciência), mas não porque concede a caridade, o desejo e a força para fazer o bem. O Concílio lembra que, segundo 1Cor 8, 2, a ciência incha, mas a caridade edifica. Não se deve, pois, crer que a graça daria a ciência que infla, mas não a caridade que edifica, porque “o amor vem de Deus” (1Jo 4,7).
O Concílio condena quem disser que a graça da justificação nos é dada para que mais facilmente possamos cumprir, pela graça, o que com o livre-arbítrio nos é mandado fazer, como se, ainda sem a graça, pudéssemos fazê-lo, embora não facilmente. Jesus, lembra o Concílio, nunca disse que sem ele”mais dificilmente se pode fazer. Ele disse simplesmente “sem mim nada podeis fazer (Jo 15, 5).
O Concílio lembra a passagem de 1Jo 1,8, em que o apóstolo diz que “se dissermos que não temos pecado enganamo-nos, e a verdade não está em nós”, aponta ainda que é falso dizer que o que a Bíblia quis dizer, neste trecho, foi apenas que “por humildade dizemos que não temos pecado, mas não porque verdadeiramente assim o seja”. Isto não dizemos, diz o Concílio, só por humildade, mas porque verdadeiramente assim é. Tanto que o apóstolo não diz, neste trecho, que ao falarmos assim, “a humildade não está em nós”, mas “a verdade não está em nós”.
O Concílio prossegue afirmando que quem disser que os santos pedem a Deus que “perdoe os seus pecados” apenas intercedendo pelos outros, pois não têm mais necessidade deste pedido para si mesmo deve ser anatematizado. Pois “cometemos todos muitos pecados”, diz TG 3,2. Cita outras passagens bíblicas, como o Sl 42,2, 1Rs 8,46, Jo 37,7 e Dn 9, 5.15. Destaca em especial Dn 9, 20, onde o profeta ora e se confessa por seus próprios pecados e pelos pecados do povo, mostrando profeticamente que previu que os hereges entenderiam mal a Palavra de Deus. Assim, não se pode dizer que os santos dizem “perdoai os nossos pecados” apenas por humildade, e não para confessar uma realidade. Se isto for assim, admitir-se-ia que os santos fariam oração mentindo, não aos homens, mas a Deus, dizendo com os lábios que querem ser perdoados, enquanto afirmam com o coração que não têm faltas a serem perdoadas. Anátema a quem defender tal proposição.
O pelagianismo, com sua tendência para negar o mundo sobrenatural e a graça, sobrevive ainda hoje em muitos corações.
Mas, como problema dogmático, liquidou-se nos concílios africanos do século V, aprovados pela Igreja Universal, de modo que o pelagianismo propriamente dito acabou no século V.
O semipelagianismo é relativamente moderno; poder-se-ia falar melhor, talvez, em “antiagostinismo”. Na prática, foi uma reação exagerada contra algumas frases de Santo Agostinho sobre a economia da graça e sobre a relação entre a livre vontade do homem e a ação de Deus na ordem da salvação.
A supremacia da graça em Santo Agostinho foi sustentada em quatro teses: 1. Todos os atos que conduzem à salvação são praticados com a ajuda da graça. 2. A salvação é dom gratuito de Deus. 3. Deus quer a salvação de todos. 4. A liberdade humana permanece intacta, mesmo sob o influxo da graça.
Já em vida de Santo Agostinho esses quatro enunciados pareciam difíceis de reconciliar entre si. Houve uma resistência, em especial, dos monges do sul da França, ainda no século V. João Cassiano e São Vicente de Lérins, este último com o Communitorium, provavelmente dirigido, em polêmica, contra o Santo Doutor. Assim, quando Santo Agostinho levantava uma tese que parecia ser a de que “Deus predestina gratuitamente quem Ele quiser”, a objeção dos adversários era que para a graça inicial se exigem e bastam os próprios méritos, porque Deus concede a graça santificante àqueles que, no exercício da própria liberdade, dela se tornaram merecedores. Isto, segundo eles, garantiria a igualdade de condições e o respeito, por parte de Deus, da liberdade humana.
O Papa São celestino, avisado da polêmica, posicionou-se em favor de Santo Agostinho, mas sem tomar posição em favor de todas as suas afirmações. Esta tem sido a posição da Igreja desde então: reconhecer Santo Agostinho como autoridade indiscutível, sem canonizar incondicionalmente suas afirmações – o que de resto nem o próprio Santo Agostinho fez (Santo Agostinho, Retractationes, prólogo). Os jansenistas proporão isso depois, mas serão refutados.
A carta de São Celestino aos bispos gauleses é acompanhada com um indiculus, inicialmente a ele atribuído, mas cuja autoria hoje tende-se a atribuir a São Próspero de Aquitânia. Mas o indiculus expressa a fé tradicional da Igreja, e foi expressamente reconhecido pelo Papa São Horsmisdas, em sua recomendação ao Bispo africano Possessor como testemunho da fé da Igreja.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

A Justificação pela Graça (2)

É bom ouvir, neste ponto, uma interessante discussão colocada por Servais Pinckaers sobre a chamada “liberdade de indiferença” e a “liberdade de excelência”. Para Pinckaers, neste conflito da noção de liberdade de indiferença com a liberdade de excelência estaria toda a raiz do conflito do homem moderno com Deus, e o início da falta de compreensão da natureza da Graça que a transformou numa adversária da liberdade humana. De fato, a graça é adversária de uma liberdade concebida como “liberdade de indiferença”, quer dizer, a liberdade humana entendida como a possibilidade de escolher indiferentemente entre quaisquer dois contrários. Tudo isso começou para compreensão equivocada sobre o que é a onipotência de Deus, na idade média – influência, segundo alguns estudiosos, do muçulmanismo e seu Deus implacavelmente onipotente. Explicando a chamada “liberdade de indiferença” e seu surgimento histórico, diz Pinckaers:
“Quando consideramos a liberdade de indiferença, descobrimos que estamos em um novo universo moral. Ele está instalado entre duas liberdades que se confrontam: a liberdade da pessoa humana e a liberdade de Deus. Não há vínculos naturais entre as duas, porque a natureza está agora subordinada à liberdade. A natureza estabelece apenas um relacionamento exterior caracterizado por suas diferenças: a onipotência do Criador dá a ele total poder sobre a pessoa humana, que ele exerce especialmente por meio da lei moral. A lei moral expressa a vontade divina, que é perfeitamente livre e soberana, enquanto limita a vontade humana, comandando ou proibindo certos atos, com a força da obrigação. A lei é a fonte da moralidade. De fato, o ato humano, uma vez que é nascido de uma escolha entre contrários, é por natureza indiferente; ele se torna moralmente bom ou mal na medida que se conforme a uma obrigação legal. A própria lei depende inteiramente de deus. Deus poderia, em princípio, por um mero exercício de vontade, modificar quaisquer dos preceitos legais. Ockham levou essa visão até o seu extremo lógico. Sem hesitar, ele afirmou que, se Deus ordenasse alguém a odiá-lo, neste caso o próprio ódio tornar-se-ia bom, por ser um ato de obediência à vontade do Criador. Seria impossível expressar mais claramente a visão de que a obediência à lei tem prioridade sobre o amor.
Tratando, no entanto, da chamada “liberdade de excelência”, ou seja, aquela liberdade que consiste em estar livre de amarras na busca da verdadeira felicidade, ou bem-aventurança, como nós cristãos chamamos, Pinckaers escreve:
“Podemos comparar a liberdade de excelência com uma habilidade adquirida numa arte ou profissão; ela é a capacidade de realizar seus atos quando e como se quer, como trabalhos de alta qualidade que são perfeitos em seus domínios. Desde o nascimento, recebemos a liberdade moral como um talento a ser desenvolvido, como uma semente contendo o conhecimento da verdade e a inclinação para o bem e a felicidade, uma inclinação diversificada em função do que os antigos chamavam de semina virtutum, as sementes das virtudes. No início de nossas vidas, essas capacidades são fracas, como é o caso de uma criança ou de um aprendiz. Como as nossas personalidades, devemos formar a nossa liberdade através de uma educação compatível com o nosso nível de desenvolvimento. Esse processo educacional parece atravessar três estágios, análogos aos estágios de uma vida humana. Correspondendo à infância, há o aprendizado das regras e normas do agir, durante o qual aprendemos com o auxílio dos parentes e professores como viver uma vida disciplinada. Depois há a adolescência na vida moral, caracterizada pela independência progressiva e iniciativa pessoal crescente, guiada pelo próprio gosto pela verdade e pelo bem e reforçada pela experiência pessoal. Aparece então a idade da maturidade, quando as virtudes florescem como um talento nas artes: é uma força ousada, inteligente e generosa, a capacidade de realizar plenamente trabalhos de longa duração que trazem frutos a muitos; assegura facilidade e prazer na ação.” (Pinckaers, Servais, La Morale Catholic, (c) 2001 by St. Augustine's Press, ed. 2003, South Bend, Indiana, 141, tradução minha).
Não há. Portanto, nenhuma possibilidade de oposição entre a graça e a liberdade humana, entendida corretamente como liberdade de excelência. E, é claro, o homem pode sempre escolher não buscar a bem-aventurança, ou seja, o seu livre arbítrio o permite resistir e rejeitar a graça. Mas, ao rejeitar a graça, o homem já não é livre: qualquer caminho que faça está desprovido do bem e, portanto, é incapaz de levá-lo ao seu fim último. Neste sentido, pode-se dizer que o homem é livre para rejeitar a própria liberdade, mas não é livre para, tendo-a rejeitado, desfrutar ainda dela. O Concílio de Trento coloca assim:
“Quando Deus toca o coração do o homem pela iluminação do Espírito Santo, o homem não é insensível a tal inspiração, que pode, aliás, rejeitar; e, no entanto, ele não pode tampouco, sem a graça divina, chegar pela vontade livre à justiça diante dele.” (Concílio de Trento, DS 1525)
A justificação é a obra mais excelente do amor de Deus, manifestado em Jesus Cristo e concedido pelo Espírito Santo. Santo Agostinho pensa que “a justificação do ímpio é uma obra maior que a criação dos céus e da terra”, pois “os céus e a terra passarão, ao passo que a salvação e a justificação dos eleitos permanecerão para sempre”. (Comentários ao Evangelho de João 72, 3). Pensa até que a justificação dos pecadores é uma obra maior do que a criação dos anjos na justiça, pelo fato de testemunhar uma misericórdia maior.
O Espírito Santo é o mestre interior. Gerando “o homem interior”, a justificação implica a santificação de todo o ser:
“Como outrora entregastes os vossos membros à escravidão da impureza e da desordem, entregai agora os vossos membros ao serviço da justiça, para a santificação. (…) Mas agora, libertos do pecado e postos a serviço de Deus, tendes, como fruto, a santificação, e o fim é a vida eterna (Rm 6, 19-22).”

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

A Justificação pela graça (1)

A graça do Espírito Santo tem o poder de nos justificar, isto é, purificar-nos de nossos pecados e comunicar-nos a justiça de Deus pela fé em Jesus Cristo (Paulo diz em Romanos 3, 22: “Justiça de Deus que opera pela fé em Jesus Cristo, em favor dos que creem” e pelo batismo.
A graça do espírito Santo nos justifica. Isso significa:
1. Purificar-nos dos nossos pecados.
2. Comunicar-nos a justiça de Deus, pela fé.
Como será dito abaixo, a expressão “justiça de Deus” significa “a retidão do amor divino”, que perdemos pelo pecado original. A amizade inicial com Deus, que nos foi concedida por graça, é retomada, também por graça, pelos méritos da paixão, morte e ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo, que nos são aplicados com duas condições: a fé e o batismo. Eles nos devolvem a vida sobrenatural, pela qual voltamos à amizade com Deus, e que nos foi perdida pelo Pecado Original.
É neste tom que o catecismo passa a citar Rm 6, 8-11: “Mas, se morremos com Cristo, temos fé de que também viveremos com Ele, sabendo que Cristo, uma vez ressuscitado dentre os mortos, já não morre, a morte já não tem mais domínio sobre Ele. Porque, morrendo, Ele morreu para o pecado de uma vez por todas; vivendo, Ele vive para Deus. Assim também vós considerai-vos mortos para o pecado e vivos para Deus em Cristo Jesus (Rm 6,8-11).”
Pelo poder do Espírito Santo, participamos da Paixão de Cristo, morrendo para o pecado, e da ressurreição, nascendo para uma vida nova; somos os membros do seu Corpo, que é a Igreja, os sarmentos enxertados na Videira, que é Ele mesmo. (A imagem da videira está em João 15, 1-4). Neste sentido, temos a vida sobrenatural, mas não como uma propriedade, mas como uma relação: a relação com Nosso Senhor Jesus Cristo, na Igreja. Eis a diferença fundamental entre os gnósticos e os cristãos. Para aqueles, somos divinos por natureza, apenas não sabemos disso porque estamos presos na matéria má e entorpecidos pelos falsos conhecimentos. Para nós cristãos, somos divinizados apenas por graça, enquanto permanecermos no amor de Deus, que é amor trinitário em si mesmo.
Sobre isso, Santo Atanásio diz: “Pelo Espírito, temos parte com Deus. (…) Pela participação do Espírito, nós nos tornamos participantes da natureza divina. (…) Por isso, aqueles em quem o Espírito habita são divinizados.” (Ep. Serapião).
A primeira obra da graça do Espírito Santo é a conversão que opera a justificação segundo o anúncio de Jesus Cristo no princípio do Evangelho: “Arrependei-vos (convertei-vos), porque está próximo o Reino dos Céus.” (Mt 4, 17). Sob a moção da graça, o homem se volta para Deus e se aparta do pecado, acolhendo, assim, o perdão e a justiça do alto. “A justificação comporta a remissão dos pecados, a santificação e a renovação do homem interior”. É o que diz o Concílio de Trento, DS 1528. Vale dizer, Deus Nosso Senhor, no seu amor trinitário, transborda a graça em nosso favor, tem a primazia do amor, toma a iniciativa de nos buscar. Envia a graça que nos faz querer a conversão, e a graça que também nos aparta do pecado e nos faz acolher o perdão e a justiça do alto. Sem a graça, não nos convertemos. Sem a graça, não somos justificados. E não somos nós os que tomam a iniciativa de convertermo-nos, mas Deus nos manda a graça para que queiramos a nossa conversão. A justificação, então, comporta:
1. A remissão dos pecados;
2. a santificação.
3. A renovação interior do homem.
A justificação não é, portanto, uma “capa” que é colocada por cima de uma suposta “podridão” humana irremediável, como creem alguns. A justificação importa uma real remissão dos pecados, um processo real de santificação e uma renovação interior do homem, que completa, por mera bondade e por mera liberalidade divina, a deficiência que existe em nossa natureza ferida pelo pecado original. Tudo isso se aperfeiçoa no sacramento do batismo. É certo, no entanto, que a santificação é um processo, e que o homem pode resistir à graça e escolher ficar longe de Deus. A iniciativa para o mal é sempre do homem, e é sempre possível, mesmo naqueles já justificados – por isso, São Paulo dirá: “quem está de pé, veja que não caia” (1Cor 10, 12). Por isso, a justificação é como uma florzinha suave, que precisa ser cuidada e regada todo dia, e que precisa, em alguns casos, de uma intervenção drástica para não morrer – consistente no sacramento da confissão (Jo 20, 22-23). Mas nos faz santos de verdade, àqueles que não resistem à graça.
A justificação aparta o homem do pecado, que contradiz o amor de Deus, e lhe purifica o coração. A justificação ocorre graças à iniciativa da misericórdia de Deus, que oferece o perdão. A justificação reconcilia o homem com Deus; liberta-o da servidão do pecado e o cura.
São três efeitos, portanto, da justificação:
1. Reconcilia o homem com Deus.
2. Liberta-o da servidão do pecado.
3. Cura-o.
A justificação é, ao mesmo tempo, o acolhimento da justiça de Deus pela fé em Jesus Cristo. A justiça designa aqui a retidão do amor divino. Com a justificação, a fé, a esperança e a caridade se derramam em nosso corações é é-nos concedida a obediência à palavra divina.
São as chamadas virtudes infusas, que não são concedidas como efeito do batismo, e que tantos nem sabem que possuem, que eu muitas vezes desprezei em muinha vida (quase sempre!) que são verdadeiros depósitos à disposição de todos nós, justificados pelo batismo e tornados filhos de Deus (e nós o somos!, 1Jo 3,1)
A justificação nos foi merecida pela paixão de Cristo, que se ofereceu na cruz como hóstia viva, santa e agradável a Deus, e cujo sangue se tornou instrumento de propiciação pelos pecados de toda a humanidade. A justificação é concedida pelo Batismo, sacramento da fé. Torna-nos conformes à justiça de Deus, que nos faz interiormente justos pelo poder de sua misericórdia. Tem como alvo a glória de Deus e do Cristo, e o dom da vida eterna (Trento, DS 1529). Ninguém pode merecer a graça, mas a morte, nós merecemos: o salário do pecado é a morte (Rom 6, 23), mas a Vida Eterna nos vem por dom, para a glória de Deus e do Cristo.
“Agora, porém, independentemente da lei, se manifestou a justiça de Deus, testemunhada pela lei e pelos profetas, justiça de Deus que opera pela fé em Jesus Cristo, em favor de todos os que creem – pois não há diferença, visto que todos pecaram e todos estão privados da glória de Deus – e são justificados gratuitamente, por sua graça, em virtude da redenção realizada em Cristo Jesus. Deus o expôs como instrumento de propiciação, por seu próprio sangue, mediante a fé. Ele queria assim manifestar sua justiça, pelo fato de ter deixado sem punição os pecados de outrora, no tempo da paciência de Deus; ele queria manifestar sua justiça no tempo presente, para mostrar-se justo e para justificar aquele que tem fé em Jesus (Rom 3, 21-26).
A justificação estabelece a colaboração entre a graça de Deus e a liberdade do homem. Do lado humano, ela se exprime no assentimento da fé à palavra de Deus, que convida o homem à conversão, e na cooperação da caridade, no impulso do Espírito Santo, que o previne e guarda. A graça pressupõe a natureza, nunca a violenta. A liberdade é elevada pela Graça; não há oposição entre liberdade e graça, ao contrário, somente há verdadeira liberdade na graça.
O texto ficou muito longo, continuarei depois.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Ainda a discussão com o colega ateu

O colega ateu, com quem venho discutindo há alguns dias, ficou surpreso com a minha colocação de que o que mais prejudica o mundo hoje é a credulidade, não o ateísmo. E me perguntou: Será que você agora é laico? ou seu deus também é peculiar? Eis a minha resposta:

caro amigo,

Minha resposta será um pouco longa, mas você merece a minha atenção detida.

Sempre fui laico, ou melhor, leigo, de laos, laikós, vale dizer, homem indistinto da massa do povo. Sempre fui, e continuo sendo, pela manutenção e ampliação da saudável laicidade nos assuntos estatais.

Lamento, no entanto, a enorme confusão terminológica que existe no particular, especialmente entre laicidade e laicismo; explico que entendo este último como a exclusão, a priori, da legitimidade dos argumentos de ordem religiosa nas discussões do interesse público. Isso, creio, é intolerância.

É saudável e democrático que as discussões, na esfera pública, admitam os argumentos teístas, deístas, agnósticos e ateístas, uma vez que o povo está composto por pessoas que professam todas estas posições.

Defender, portanto, em nome de um "laicismo" mal compreendido, que os teístas e os deístas não têm o direito de participar das discussões públicas como são, ou seja, como teístas e deístas, não é defender a laicidade estatal, mas restringir a própria democracia, o que não está de acordo com o nosso sistema constitucional.

Sobre isto, há um excelente artigo, que reflete um debate de Christopher Tollefsen sobre as posições de John Rawls e de Habermas (este último me surpreendeu...), exatamente sobre a discussão de interesses públicos e a legitimidade da participação dos cidadãos que professam princípios religiosos. Foi um excelente professor quem me passou este artigo, talvez o melhor professor de direito constitucional do país, hoje. Sei que você lê bem em inglês, se quiser eu disponho desse artigo para te emprestar.

Quanto à laicidade, assim entendida como a desvinculação recíproca entre a autoridade política e a autoridade religiosa, não vejo como poderia ser de outra forma. A César o que é de César. A Deus o que é de Deus.

E, por fim, quanto ao que creio, começo por uma ressalva: dizer "creio em Deus" é não dizer nada, como a recente campanha publicitária da tua associação ATEA mostrou (no cartaz que aponta Hitler como um pretenso "Crente em Deus" e Charles Chaplin como ateu). Acertaram na mosca.

Só erraram na conclusão do raciocínio: não se pode, desse cartaz, concluir: "não creia em Deus", senão apenas "não creia no deus de Hitler, antes prefira o exemplo de Chaplin, no modo como conduziu a sua vida". Não vejo como nenhum cidadão de bem poderia discordar disso, crente ou não, se fosse colocado assim.

Mas isso não é novidade, a Bíblia já fazia uma consideração semelhante: até os demônios crêem em Deus, diz a Bíblia. E estremecem (Tg 2, 19).

Por isso, não se trata de "crer em Deus", pois o diabo, a seu modo, crê com muito mais certeza do que eu. Mas não se ajoelha.

Trata-se, portanto, de viver, de conduzir sua própria vida, no inefável amor da Trindade Santa, como revelada historicamente por Jesus Cristo. Em suma, as melhores palavras para expressar o conteúdo da minha fé (fides quae) estão no credo apostólico, como preservado e ensinado pela Igreja, e o que ela significa para a minha vida (fides qua) está em ser absolutamente viciado no amor de Jesus Cristo, que me foi dado, por graça, experimentar.

Espero ter respondido.

Abraços.