segunda-feira, 15 de agosto de 2011

A Justificação pela Graça (2)

É bom ouvir, neste ponto, uma interessante discussão colocada por Servais Pinckaers sobre a chamada “liberdade de indiferença” e a “liberdade de excelência”. Para Pinckaers, neste conflito da noção de liberdade de indiferença com a liberdade de excelência estaria toda a raiz do conflito do homem moderno com Deus, e o início da falta de compreensão da natureza da Graça que a transformou numa adversária da liberdade humana. De fato, a graça é adversária de uma liberdade concebida como “liberdade de indiferença”, quer dizer, a liberdade humana entendida como a possibilidade de escolher indiferentemente entre quaisquer dois contrários. Tudo isso começou para compreensão equivocada sobre o que é a onipotência de Deus, na idade média – influência, segundo alguns estudiosos, do muçulmanismo e seu Deus implacavelmente onipotente. Explicando a chamada “liberdade de indiferença” e seu surgimento histórico, diz Pinckaers:
“Quando consideramos a liberdade de indiferença, descobrimos que estamos em um novo universo moral. Ele está instalado entre duas liberdades que se confrontam: a liberdade da pessoa humana e a liberdade de Deus. Não há vínculos naturais entre as duas, porque a natureza está agora subordinada à liberdade. A natureza estabelece apenas um relacionamento exterior caracterizado por suas diferenças: a onipotência do Criador dá a ele total poder sobre a pessoa humana, que ele exerce especialmente por meio da lei moral. A lei moral expressa a vontade divina, que é perfeitamente livre e soberana, enquanto limita a vontade humana, comandando ou proibindo certos atos, com a força da obrigação. A lei é a fonte da moralidade. De fato, o ato humano, uma vez que é nascido de uma escolha entre contrários, é por natureza indiferente; ele se torna moralmente bom ou mal na medida que se conforme a uma obrigação legal. A própria lei depende inteiramente de deus. Deus poderia, em princípio, por um mero exercício de vontade, modificar quaisquer dos preceitos legais. Ockham levou essa visão até o seu extremo lógico. Sem hesitar, ele afirmou que, se Deus ordenasse alguém a odiá-lo, neste caso o próprio ódio tornar-se-ia bom, por ser um ato de obediência à vontade do Criador. Seria impossível expressar mais claramente a visão de que a obediência à lei tem prioridade sobre o amor.
Tratando, no entanto, da chamada “liberdade de excelência”, ou seja, aquela liberdade que consiste em estar livre de amarras na busca da verdadeira felicidade, ou bem-aventurança, como nós cristãos chamamos, Pinckaers escreve:
“Podemos comparar a liberdade de excelência com uma habilidade adquirida numa arte ou profissão; ela é a capacidade de realizar seus atos quando e como se quer, como trabalhos de alta qualidade que são perfeitos em seus domínios. Desde o nascimento, recebemos a liberdade moral como um talento a ser desenvolvido, como uma semente contendo o conhecimento da verdade e a inclinação para o bem e a felicidade, uma inclinação diversificada em função do que os antigos chamavam de semina virtutum, as sementes das virtudes. No início de nossas vidas, essas capacidades são fracas, como é o caso de uma criança ou de um aprendiz. Como as nossas personalidades, devemos formar a nossa liberdade através de uma educação compatível com o nosso nível de desenvolvimento. Esse processo educacional parece atravessar três estágios, análogos aos estágios de uma vida humana. Correspondendo à infância, há o aprendizado das regras e normas do agir, durante o qual aprendemos com o auxílio dos parentes e professores como viver uma vida disciplinada. Depois há a adolescência na vida moral, caracterizada pela independência progressiva e iniciativa pessoal crescente, guiada pelo próprio gosto pela verdade e pelo bem e reforçada pela experiência pessoal. Aparece então a idade da maturidade, quando as virtudes florescem como um talento nas artes: é uma força ousada, inteligente e generosa, a capacidade de realizar plenamente trabalhos de longa duração que trazem frutos a muitos; assegura facilidade e prazer na ação.” (Pinckaers, Servais, La Morale Catholic, (c) 2001 by St. Augustine's Press, ed. 2003, South Bend, Indiana, 141, tradução minha).
Não há. Portanto, nenhuma possibilidade de oposição entre a graça e a liberdade humana, entendida corretamente como liberdade de excelência. E, é claro, o homem pode sempre escolher não buscar a bem-aventurança, ou seja, o seu livre arbítrio o permite resistir e rejeitar a graça. Mas, ao rejeitar a graça, o homem já não é livre: qualquer caminho que faça está desprovido do bem e, portanto, é incapaz de levá-lo ao seu fim último. Neste sentido, pode-se dizer que o homem é livre para rejeitar a própria liberdade, mas não é livre para, tendo-a rejeitado, desfrutar ainda dela. O Concílio de Trento coloca assim:
“Quando Deus toca o coração do o homem pela iluminação do Espírito Santo, o homem não é insensível a tal inspiração, que pode, aliás, rejeitar; e, no entanto, ele não pode tampouco, sem a graça divina, chegar pela vontade livre à justiça diante dele.” (Concílio de Trento, DS 1525)
A justificação é a obra mais excelente do amor de Deus, manifestado em Jesus Cristo e concedido pelo Espírito Santo. Santo Agostinho pensa que “a justificação do ímpio é uma obra maior que a criação dos céus e da terra”, pois “os céus e a terra passarão, ao passo que a salvação e a justificação dos eleitos permanecerão para sempre”. (Comentários ao Evangelho de João 72, 3). Pensa até que a justificação dos pecadores é uma obra maior do que a criação dos anjos na justiça, pelo fato de testemunhar uma misericórdia maior.
O Espírito Santo é o mestre interior. Gerando “o homem interior”, a justificação implica a santificação de todo o ser:
“Como outrora entregastes os vossos membros à escravidão da impureza e da desordem, entregai agora os vossos membros ao serviço da justiça, para a santificação. (…) Mas agora, libertos do pecado e postos a serviço de Deus, tendes, como fruto, a santificação, e o fim é a vida eterna (Rm 6, 19-22).”

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