segunda-feira, 29 de agosto de 2011

A Graça e a Tradição Católica

A graça é o oxigênio da teologia. A teologia inclui a graça em seu próprio conceito. É que o cristianismo não é um produto da razão humana, mas dom de Deus, revelação. Sem esta mensagem vinda do céu, sem a Revelação, a própria teologia cristã seria inconcebível. Apenas a Revelação nos mostra o que Deus é, o que quer ser para nós e o que quis que fôssemos para ele – Ele se dá a nós numa doação insuspeitada, que nos penetra até o íntimo da natureza humana e a eleva, fazendo-a participar da própria vida íntima da Trindade.
É preciso, nesta altura, questionar a própria antropologia cristã.
O homem foi constituído na justiça original, mas a perdeu pelo pecado. Importante guardar a noção da graça para entender esta antropologia e sua dialética natural/sobrenatural, natureza/Graça, bem como o pecado e a ruptura transcendental Deus/homem.
O Deus da Graça é o Deus Trindade, verdadeiro, pessoal e vivo. A graça define-se, em sua essência profunda, como a doação das três pessoas divinas, que penetram no homem e o transformam num templo.
Uma vez que a relação sobrenatural de amizade com Deus foi rompida pelo homem através do pecado, ele não poderia jamais restabelecê-la por suas próprias forças. Perdeu-a para si e para seus descendentes, pois não tinha direito a ela. Não se pode reclamar o amor como direito.
Por isso, desde o princípio, com a queda, delineia-se também a esperança de um Salvador, que é, como agora se sabe, o próprio Filho de Deus, que, pela sua morte e ressurreição, restabelece a intimidade entre o homem e Deus (Gl 4, 4-6).
Assim, a graça tem coloração cristológica, e a obra de Cristo é o superabundante restabelecimento da primitiva comunhão sobrenatural com Deus (Cf. Rm 5, 20 – Onde abundou o pecado, superabundou a graça).
A doação filial do Verbo é consumada como o primeiro de uma multidão de irmãos, a família dos filhos de Deus, que se chama Igreja. Ela é visível, como convém ao mundo material no qual se desenrola a vida humana, mas, ao mesmo tempo, instrumento eficaz da Graça divina que é, na verdade, a graça de Jesus Cristo. A Igreja tem caráter sacramental, capaz de alcançar o homem em cada instante de sua vida. Tais são os sacramentos.
Os santos, assim, são as pessoas dóceis ao dom de Deus. Eles mostram o que pode ser a vida humana que não interpõe obstáculos à graça. Santidade é o fruto pleno da graça, desenvolvimento harmônico que alicerça as grandes virtudes cristãs.
A consumação final da Graça dá-se nos planos pessoal, social e cósmico. Ela envolve a vida sem fim, a bem-aventurança eterna e a ressurreição da carne (dimensão corporal).
A graça envolve toda a história da salvação, que conhecemos pela Revelação.
A graça pressupõe a colaboração pelo homem, e aí surgem os problemas da delicada relação entre graça e liberdade, a discussão interminável sobre as obras e seu valor e a alegada possibilidade de chegar, sem a graça, aos fins sobrenaturais.
O primeiro ataque substancial ao dogma do pecado original veio do pelagianismo. Esta doutrina negava a ordem sobrenatural e, por consequência, negava a graça. Os pelagianos defendiam que Adão fora criado na mesma condição em que agora se acham todos os homens, ou seja, mortal, com todas as qualidades inerentes à natureza humana, sem nenhuma elevação natural à adoção divina ou à participação na vida do Criador.. Assim o pecado de Adão fez-lhe merecer o castigo, mas permaneceu restrito a ele. Ele seria apenas um mau exemplo.
São pilares do pelagianismo: um naturalismo que exclui a ordem sobrenatural, a independência da vontade humana com relação a Deus. Está aí uma raiz inadvertidamente ateísta numa doutrina que surgiu para incentivar o esforço humano, numa época de vida espiritual relaxada.
A graça, para os pelagianos, é um dom externo, consistente: 1. Na Revelação. 2. na Lei. 3. no exemplo de Cristo, 4. Na liberdade humana, que é a capacidade natural de fazer o bem, que Pelágio chama de “graça por excelência”.
Já em 418 o Concílio de Cartago condenava como anátema quem dissesse que a Graça de Deus, pela qual o homem recebe a justificação por meio de Nosso Senhor Jesus Cristo, só vale para a remissão dos pecados já cometidos, mas não como ajuda para não cometê-los. Anatematiza também os que afirmam que a graça só ajuda a não pecar porque revela o sentido dos preceitos (ciência), mas não porque concede a caridade, o desejo e a força para fazer o bem. O Concílio lembra que, segundo 1Cor 8, 2, a ciência incha, mas a caridade edifica. Não se deve, pois, crer que a graça daria a ciência que infla, mas não a caridade que edifica, porque “o amor vem de Deus” (1Jo 4,7).
O Concílio condena quem disser que a graça da justificação nos é dada para que mais facilmente possamos cumprir, pela graça, o que com o livre-arbítrio nos é mandado fazer, como se, ainda sem a graça, pudéssemos fazê-lo, embora não facilmente. Jesus, lembra o Concílio, nunca disse que sem ele”mais dificilmente se pode fazer. Ele disse simplesmente “sem mim nada podeis fazer (Jo 15, 5).
O Concílio lembra a passagem de 1Jo 1,8, em que o apóstolo diz que “se dissermos que não temos pecado enganamo-nos, e a verdade não está em nós”, aponta ainda que é falso dizer que o que a Bíblia quis dizer, neste trecho, foi apenas que “por humildade dizemos que não temos pecado, mas não porque verdadeiramente assim o seja”. Isto não dizemos, diz o Concílio, só por humildade, mas porque verdadeiramente assim é. Tanto que o apóstolo não diz, neste trecho, que ao falarmos assim, “a humildade não está em nós”, mas “a verdade não está em nós”.
O Concílio prossegue afirmando que quem disser que os santos pedem a Deus que “perdoe os seus pecados” apenas intercedendo pelos outros, pois não têm mais necessidade deste pedido para si mesmo deve ser anatematizado. Pois “cometemos todos muitos pecados”, diz TG 3,2. Cita outras passagens bíblicas, como o Sl 42,2, 1Rs 8,46, Jo 37,7 e Dn 9, 5.15. Destaca em especial Dn 9, 20, onde o profeta ora e se confessa por seus próprios pecados e pelos pecados do povo, mostrando profeticamente que previu que os hereges entenderiam mal a Palavra de Deus. Assim, não se pode dizer que os santos dizem “perdoai os nossos pecados” apenas por humildade, e não para confessar uma realidade. Se isto for assim, admitir-se-ia que os santos fariam oração mentindo, não aos homens, mas a Deus, dizendo com os lábios que querem ser perdoados, enquanto afirmam com o coração que não têm faltas a serem perdoadas. Anátema a quem defender tal proposição.
O pelagianismo, com sua tendência para negar o mundo sobrenatural e a graça, sobrevive ainda hoje em muitos corações.
Mas, como problema dogmático, liquidou-se nos concílios africanos do século V, aprovados pela Igreja Universal, de modo que o pelagianismo propriamente dito acabou no século V.
O semipelagianismo é relativamente moderno; poder-se-ia falar melhor, talvez, em “antiagostinismo”. Na prática, foi uma reação exagerada contra algumas frases de Santo Agostinho sobre a economia da graça e sobre a relação entre a livre vontade do homem e a ação de Deus na ordem da salvação.
A supremacia da graça em Santo Agostinho foi sustentada em quatro teses: 1. Todos os atos que conduzem à salvação são praticados com a ajuda da graça. 2. A salvação é dom gratuito de Deus. 3. Deus quer a salvação de todos. 4. A liberdade humana permanece intacta, mesmo sob o influxo da graça.
Já em vida de Santo Agostinho esses quatro enunciados pareciam difíceis de reconciliar entre si. Houve uma resistência, em especial, dos monges do sul da França, ainda no século V. João Cassiano e São Vicente de Lérins, este último com o Communitorium, provavelmente dirigido, em polêmica, contra o Santo Doutor. Assim, quando Santo Agostinho levantava uma tese que parecia ser a de que “Deus predestina gratuitamente quem Ele quiser”, a objeção dos adversários era que para a graça inicial se exigem e bastam os próprios méritos, porque Deus concede a graça santificante àqueles que, no exercício da própria liberdade, dela se tornaram merecedores. Isto, segundo eles, garantiria a igualdade de condições e o respeito, por parte de Deus, da liberdade humana.
O Papa São celestino, avisado da polêmica, posicionou-se em favor de Santo Agostinho, mas sem tomar posição em favor de todas as suas afirmações. Esta tem sido a posição da Igreja desde então: reconhecer Santo Agostinho como autoridade indiscutível, sem canonizar incondicionalmente suas afirmações – o que de resto nem o próprio Santo Agostinho fez (Santo Agostinho, Retractationes, prólogo). Os jansenistas proporão isso depois, mas serão refutados.
A carta de São Celestino aos bispos gauleses é acompanhada com um indiculus, inicialmente a ele atribuído, mas cuja autoria hoje tende-se a atribuir a São Próspero de Aquitânia. Mas o indiculus expressa a fé tradicional da Igreja, e foi expressamente reconhecido pelo Papa São Horsmisdas, em sua recomendação ao Bispo africano Possessor como testemunho da fé da Igreja.

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