terça-feira, 25 de janeiro de 2011

A dor e o respeito pela liturgia

Durante o natal, resolvi passar algum tempo com a minha família numa pequena cidade, onde passei parte da minha infância, e de onde tenho tão belas memórias. Fiquei ali por cerca de dez dias, no tempo de Natal, tendo participado diariamente da missa, como é o meu hábito.
Alguns aspectos das celebrações eucarísticas, porém, deixaram-me angustiado. Não faço reparos ao esforço dos sacerdotes, em especial dos regulares, para manter a vida sacramental nesse local tão humilde. Mas fiquei assustado, confesso, que numa cidade tão tradicionalmente católica uma grande parte – diria a maior parte – da minha família e amigos agora se declare espírita ou “evangélico”.
Sei que este não é um problema especificamente local, mas vi ocorrerem algumas coisas na Liturgia que, imagino, não colaboram com a reversão do quadro. Narrarei com muita objetividade.
A primeira missa de que participei deu-se no sábado logo após o natal, tão logo eu cheguei de viagem. Ocorreu na igrejinha da Conceição, antiga e linda, muito mariana. O salmo responsorial da missa foi substituído pelo Ofício de Nossa Senhora. Digo de passagem que o ofício é um ato de piedade maravilhoso e antigo, do qual se costuma dizer que Ela própria se ajoelha no céu quando é rezado. Pareceu-me, no entanto, muito inadequado que esse ato de piedade substituísse o salmo responsorial, ato estritamente litúrgico. Eu aprendi outrora que o sacerdote é servidor da Sagrada Liturgia, e que não lhe é permitido, por própria conta, acrescentar, tirar, ou mesmo mudar qualquer coisa na celebração da missa, como determina a Instrução Geral sobre o Missal Romano, item 24. Ora, o salmo responsorial é parte integrante da Liturgia da Palavra, portanto parte do alimento eucarístico que é dado ao povo. Sua alteração por um ato de piedade, além de ofender ao item 61 da Instrução Geral, fomenta a distorção da piedade popular, ao invés da sua “purificação”, recomendação do Documento de Aparecida, item 262. A confusão entre o ato litúrgico e a piedade popular torna simplesmente humana a Liturgia Divina, ao submetê-la ao alvedrio da subjetividade do celebrante.
No sábado seguinte, outro celebrante, também regular da mesma ordem, introduziu o Ofício de Nossa Senhora após o ato penitencial, antes da oração de coleta. De fato, não houve a retirada do salmo, mas a introdução de um rito não previsto no missal romano também me incomodou. Estou certo de que o Ofício pode ser rezado com grande fervor, mas o zelo pastoral indicará o momento mais pertinente, antes ou depois, mas sempre fora da celebração eucarística.
Mas o que de fato incomodou-me, e levou-me a escrever este desabafo, foi a celebração dominical, na Matriz, nos domingos logo após o natal. Ao entrar no templo um pouco antes da celebração, como costumo fazer, notei logo a existência, no átrio, de uma fotografia gigante do pároco, como que sobrepairando a cidade, com o Ostensório nas mãos. Incomodou-me porque estou certo de que aqueles que não conhecem, como eu não conheço, os motivos que moveram o pároco a criar tal ícone, são tentados a interpretá-lo mal.
O repertório musical executado durante a celebração era de baixíssima qualidade, mas isso não é um problema local, mas fato que verifico em todas as minhas andanças. Da mesma natureza é o volume muito alto do som, problema disseminado em muitas dioceses.
Também está muito disseminado o hábito de aplaudir a proclamação do Evangelho. Aquilo que, muitas vezes, é entendido como uma “aclamação” à Palavra de Deus torna-se, a meu ver, uma resposta de plateia a um ato de entretenimento. A proclamação da Palavra de Deus parece não dirigir-se a uma comunidade orante, mas a uma plateia, a espectadores mais do que a fiéis. Não foi outra a preocupação de D. Malcolm Ranjith, Secretário da Congregação do Culto Divino e da Disciplina dos Sacramentos, em entrevista à Agência Católica Zenit, na qual ele afirmou: “Sou contra danças e aplausos no decorrer das missas, que não são um circo nem um estádio”.
A minha impressão angustiada foi reforçada pela saudação inicial do celebrante. A acolhida foi precedida por um longo discurso que ressaltava que aquela missa estava sendo transmitida ao vivo por uma rádio comercial e por um site ou blog. Não discuto o valor da missa transmitida pelos meios de comunicação, de resto já colocado pela Sacrossantum Concilium, item 20: “Façam-se com discrição e dignidade, e sob a direção de pessoa competente, para tal designada pelos Bispos, as transmissões radiofônicas ou televisivas das ações sagradas, especialmente da Missa.” Afligiu-me, no entanto, que a função de comentarista radiofônico fosse exercida pelo próprio celebrante, que irradiava os atos litúrgicos enquanto os celebrava, interrompendo, inclusive, os momentos de silêncio sagrado e, por algumas vezes, a Oração Eucarística. As orientações da CNBB quanto às transmissões radiofônicas levam em consideração a necessidade de que não hajam silêncios prolongados na estação, mas aconselham que haja um terceiro para fazer os comentários em “off”, para não prejudicar a oração dos presentes nem deformar a liturgia. Para mim, foi mais difícil permanecer em atitude de oração, durante a missa, enquanto o celebrante alternava-se na postura de sacerdote e de locutor.
Mas o que de fato me feriu mais profundamente foi a inclusão, no começo e no final da celebração, de chamadas comerciais dos “patrocinadores” da missa, dos quais me recordo bem de uma grande indústria local e de uma boutique. Essa chamada comercial também foi feita pelo sacerdote, como celebrante, no interior do ato litúrgico. Não preciso ressaltar o quanto me angustiou participar de uma missa com intervalo comercial.
Lamentei, também, a substituição da oração do Glória, tão importante liturgicamente, pelo canto “Vinde, Cristãos, vinde à porfia”, inadequado, creio, para o momento litúrgico. Quero ressaltar que, apesar da orientação clara da Instrução Geral ao Missal Romano (que diz, no item 53, que “o Glória é um antiquíssimo e venerável hino com que a Igreja, congregada no Espírito Santo, glorifica e suplica a Deus e ao Cordeiro. Não é permitido substituir o texto deste hino por outro”), em diversas celebrações que acompanhei pelo Brasil afora permanece o hábito de trocar a insuperável oração litúrgica do Glória por um canto que às vezes é chamado de “glorinha”, uma oração trinitária empobrecedora e também inadequada, mas bastante difundida. Muitas comunidades já não sabem recitar o Glória. Mas a substituição do Glória pelo “vinde, Cristãos”, como foi feito nesta missa da qual participei, parece mostrar que a direção litúrgica da celebração não está atenta ao sentido dessa oração, e que a comunidade se está empobrecendo espiritualmente. Ressalto que há uma adaptação metrificada desta oração litúrgica, própria para o canto, feita pela CNBB, muito adequada e bela, que torna qualquer justificação estética para os “glorinhas” trinitários ultrapassada, além de inadequada. Mas o “Vinde, Cristãos”, apenas porque menciona a palavra “glória”, se me permite, não tem pertinência com esse momento da celebração eucarística.
Ainda com relação à Liturgia da Palavra, notei que foram suprimidas tanto a segunda leitura quanto o “credo”. Espantado, consultei outros fiéis, para saber se eu me distraíra ou se de fato os atos não ocorreram. Os fiéis que abordei confirmaram que essa é uma prática frequente na liturgia dominical daquela cidade.
A oração eucarística, privativa do celebrante, culmina com a consagração. Ao ajoelhar-se perante Jesus Sacramentado, na oração eucarística, o próprio celebrante, no entanto, “puxou um canto” com a comunidade, a que a comunidade respondeu prontamente. Este, portanto, parece ser um hábito arraigado ali (e na verdade em outros lugares também), mais uma vez demonstrando a falta de clareza entre o ato litúrgico sacramental da consagração in persona Christi, a irritante locução radiofônica do celebrante e o ato de piedade consistente no canto de louvor e adoração ao Santíssimo, impertinente, me parece, nesse momento, que é o ápice da missa.
Confesso que o conteúdo das homilias também me deixou confuso. Em pleno domingo da Sagrada Família, o celebrante pareceu fazer uma longa apologia à separação conjugal: afirmou que “ninguém é obrigado a sofrer” na vida conjugal, que ninguém pode ser obrigado a tolerar maus humores, alcoolismo, maus tratos, e que cada um deve buscar sua própria felicidade. É certo que a minha impressão decorreu mais do contexto do que de alguma palavra mais específica do sacerdote, e que, a essa altura, que Deus me perdoe, meu coração já estava mais do que sobrecarregado com toda o acúmulo de problemas que já narrei.
Por fim, a chamada “Bênção do Santíssimo”, com a procissão do Sagrado Corpo no Ostensório, por toda a igreja, é algo também bastante difundido a partir de exemplos televisivos. A procissão atravessa o povo, que se acotovela para tocar no Ostensório, impor-lhe chaves e carteiras de trabalho, fotos de parentes e outros objetos, enquanto o sacerdote, majestoso, cruza toda a nave, banhado por uma chuva de pétalas. A julgar pelo grande cartaz fotográfico, essa prática ocorre todos os domingos, como se todo domingo fosse uma espécie de “Corpus Christi” misturado com Pentecostes, um espetáculo que, à minha sensibilidade, pareceu exagerado, facilmente descambando para a crendice e desrespeito ao tesouro eucarístico da Igreja, e não posso deixar de reparar quão fácil será, para pastores evangélicos e “pregadores” espíritas ridicularizarem-nos diante de tal espetáculo. Sem dúvida, fornecemo-lhes bastante material. Pessoalmente, não foi fácil defender a Igreja perante os amigos e parentes locais que a abandonaram pelo espiritismo e pelo protestantismo, diante da dificuldade de justificar espetáculos assim. Posso estar julgando mal, mas não posso omitir-me, inclusive perante o cânon 212, §§ 2º e 3º, do Código Canônico.
No domingo seguinte, havia um frei mais jovem celebrando a missa - creio que deva tratar-se do vigário. Houve muito mais sobriedade, inclusive quanto à transmissão radiofônica. Comento, apenas, que na homilia, a vida sacramental da Igreja pareceu desvalorizada, assim como a piedade dos fiéis, em prol de uma “busca de contato com o divino em nós”, num discurso que me soou gnóstico. Não pude deixar de comentar com alguns fiéis sobre estes fatos, e ouvi deles que, algumas vezes, o pároco refere-se às fiéis mais idosas como “beatas” apegadas à sua “santaiada”, cujas orações devem ser substituídas por ações mais efetivas para a “mudança social”. Não quero acreditar que tais falas sejam proferidas assim, tão secas de caridade para com as nossas idosas mais devotas. Mas estranhei o fato de que, no livreto da paróquia haja uma parte dedicada a certos “dez mandamentos do prefeito”, o que é, no mínimo, inusitada intervenção do sagrado no temporal, senão expressão de um clericalismo político que, julgávamos, já estava extinto no nosso país.
Creio que a situação repete-se em vários outros lugares do país.

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