Conversei algumas vezes aqui sobre os meus pontos de vista a respeito de Queiruga, sobre opções doutrinárias em cursos de teologia dirigidos a leigos e sobre distorções políticas marxistas em determinadas teologias muito adotadas no Brasil, sob o fundamento de que somente o marxismo seria capaz de fazer discernir a questão social brasileira e somente o pensamento marxista seria capaz de conceder uma visão social correta aos teólogos. Tenho impressão de que essa é uma ideia bastante difundida, ainda hoje, em meios eclesiais e teológicos brasileiros – quem não admite a avaliação social de cunho marxista é um individualista, um “cristão alienado”.
Por outro lado, também tenho a sensação de que, nos meios eclesiais, vige a ideia de que o magistério é apenas a ideologia do grupo que está hoje no poder, na Igreja, e que, tendo acesso à estrutura eclesial, vale-se do papado para impor sua própria mundividência ao restante dos cristãos. Assim, o Papa, no fundo, fala a ideologia do grupo que está no poder, e as teologias não hegemônicas seriam a expressão dos grupos oprimidos dentro da Igreja, e, portanto, mais cristãs do que o próprio Magistério (já que este último reflete apenas a teologia do grupo hegemônico, contaminada por sua própria ideologia). Neste sentido, o Papa, sendo apenas um bispo com mania de grandeza, exerce seu poder repressor de modo ilegítimo, suprimindo vozes mais afinadas com o povo de Deus, e portanto, mais legítimas. Ele, sob o falso pretexto de ser assistido pelo espírito Santo, apenas abafa esse mesmo Espírito quando Ele “sopra onde quer”, e atualmente ele parece só ser reconhecido por aqui quando alguém defende que Ele “sopra” heterodoxamente.
Assim, o fato, por exemplo, de que o teólogo e escritor adotado em tantos dos nossos seminários e faculdades de teologia, Andrés torres-Queiruga, tenha uma doutrina tão profundamente gnóstica e anti-católica não importa – importa que ele está em harmonia com as posições dissonantes, e portanto teologicamente legítimas – que valorizam o social por cima de uma “espiritualidade individualista” burguesa, representada pelo papismo.
Quaisquer cristãos que resistam a essa interpretação teológica “social” legitimada pela “preocupação popular” e pela “resistência à ideologia teológica dominante” talvez estejam sendo movidos por “interesses conservadores”, e logo não devem ser ouvidos ou levados em conta. De certa forma, há um galicanismo remanescente que faz taxar de ultramontanista toda crítica a um teólogo com base no correto magistério da Igreja. Desautoriza-se o crítico, o que torna desnecessário responder à crítica em si. Uma vez que o Magistério, para alguns, é apenas a ideologia dominante num dado momento, a estratégia é ir minando, gramscianamente, as estruturas eclesiais de poder papista, para que o grupo “mais legítimo” possa um dia apossar-se do Vaticano e usar legitimamente das estruturas eclesiais para atender às questões sociais, únicas eclesialmente legítimas, tornando-se a verdadeira Igreja dos Oprimidos.
Nessa estratégia gramsciana, a desinformação é um expediente usado amiúde. Por exemplo, usar o livro do Queiruga para ensinar a mesma teologia que já foi reiteradamente condenada em outros autores, uma vez que o Queiruga nunca foi explicitamente condenado pela Congregação para a Doutrina da Fé do Vaticano. E ele é obscuramente erudito e pedante o suficiente para falar absurdos de um modo que parece quase imperceptível à média dos leitores, despreparados teológica e filosoficamente, como são nossos seminaristas e leigos que o lerão por força de recomendação docente. Mas os erros vão entrando. Ele mina sutilmente. Normalmente as críticas a ele só poderão vir de quem tivesse erudição suficientemente desenvolvida e conhecimento magisterial agudo para fazê-lo, mas esses são logo identificados como conservadores e desqualificados. Quem mais, no Brasil, além dos expoentes da teologia da libertação e dos remanescentes da “tradição, família e propriedade” teria condição de perceber as verdadeiras implicações do pensamento do Queiruga? Certamente, se o percebem (concluem os defensores da teologia “liberal”), devem, portanto, pertencer a um desses grupos... Com o primeiro, não se discute, são a expressão da autenticidade popular. Quem não pertence a esses primeiros e discute Queiruga, então, fica suspeito de pertencer aos segundos, e nem sequer tem direito a voz. Bom, não pertenço nem aos primeiros, nem aos segundos, acredito que quero pertencer somente à Igreja, a Santa, Católica e Apostólica Mãe e Mestra.
O fato é que quando um padre se irrita, com toda a justeza, com a pouca atenção dos fiéis leigos para com a Igreja (atrasos à missa, infidelidade com o dízimo, pouco respeito para com a liturgia, defecção para “igrejas” evangélicas e seitas) pode levar em conta que os leigos apenas espelham a desatenção que alguns padres (e não poucos bispos) têm, eles mesmos, para com essa mesmíssima Igreja. Como querer das ovelhas mais fidelidade para com os pastores do que aquela que muitos pastores parecem ter para com o dono do rebanho?
Enfim, perdoem-me o alongar, é só um desabafo de leigo que se angustia, talvez crise de quarentão: a Igreja me ensina a castidade, a fidelidade à minha família, ao meu trabalho, ao meu país, aos pobres, aos pastores, a pontualidade, o respeito, a continência, a doação, quer meu dinheiro para manter a paróquia, para construir templos, para projetos sociais, para a Campanha da Fraternidade, para comprar um carro último modelo para o padre, mas por outro lado a igreja brasileira não parece dirigir-se pelo mesmo rigor que cobra do leigo: tudo que é teológico é discutível, tudo o que vem de Roma é imposição, já não se obedece ao Código Canônico nem quanto à decência de vestir para um sacerdote ou um religioso, nem quanto ao que se ensina nos seminários ou cursos de teologia, enfim, a sensação que eu tenho é que, em termos de igreja brasileira, de padres ou de bispos, o pobre do fiel só tem deveres, nenhuma possibilidade de ser ouvido nem quando clama que aquilo que a Igreja lhe ensina durante os séculos está sendo contraditado por teólogos heterodoxos que viraram moda em meios teológicos, editoras católicas e livrarias nem tanto. Ou seja, por que eu preciso, na minha vida familiar e paroquial, manter fidelidade aos ensinamentos da CNBB ou do meu padre, se na maioria das vezes os membros da CNBB ou o meu padre parecem estar bem pouco preocupados com a fidelidade ao Magistério eclesial como um todo? Quer dizer, eu, como fiel, devo ser fiel aos mandamentos da Igreja, mas as editoras católicas estão dispensadas de sê-lo também? O professor do Seminário está dispensado do seu juramento de fidelidade, mas eu, como aluno, tenho que ser fiel a ele a ponto de ser obrigado a estudar por um livro abertamente anti-católico? O padre e o religioso estão dispensado até do artigo do Código Canônico que exige uma vestimenta adequada, mas eu tenho que usar aliança de casado no dedo? Meus sábados de catequistas num bairro pobre são assistencialistas, mas a utilização das CEB's como escada política para que o PT defenda publicamente o aborto não é?
A mim parece, algumas vezes, que a teologia da libertação, hoje travestida numa teologia liberal socialóide, visa, de fato, no fundo, uma teocracia socialista cujos expoentes mais visíveis são quase caricaturalmente expressados por Betto e Lugo, por Chávez, Evo e as Farc, Boff, Fidel, Che Guevara e afins. Que têm, todos, o seu valor. Mas que parecem, em alguns momentos, constituir “lugares teológicos” (talvez os mais válidos) para interpretar Jesus, a Bíblia e o Magistério. Sei que, graças a Deus, a maior parte dos clérigos não pensa assim, mas alguns outros parecem simplesmente não estar nem aí. Ou estão fazendo “missas de cura” na televisão ou estão vivendo a vida confortável de solteirão intelectual, abonado e descompromissado, malhando em academias, navegando na pornografia internética e viajando pelo mundo. Padres de meia idade não têm que suportar filhos adolescentes ou esposas de meia idade, sogras adoentadas e viúvas, empregadas e patrões. Nem, muitas vezes, a vida pastoral, que delegam para os leigos e estão livres. O celibato, vivido assim, é muito mais uma vantagem do que um voto. É o celibato-descompromisso.
Desculpem o desabafo. Já tratei em outras oportunidades a respeito de Andrés Torres-Queiruga, teólogo que está sendo adotado em cursos de teologia e seminários com o beneplácito de todos os que deveriam zelar pelo Magistério. Por certo, para os “liberais”, as críticas a ele devem provir de meios ultrapassados, conservadores e dominados pela ideologia opressora atualmente no poder em Roma. Nem valeria a pena lê-las (pensam os “progressistas”), mesmo quando surgem da própria Conferência Episcopal espanhola, decerto dominada pelo “retrógrado” Opus Dei, tanto que a CEE já teve sua “condenação” pública proferida pela Asociación de Teologos Juán XXIII, essa sim composta de arautos da “boa” teologia como Hans Küng, Leonardo Boff, Andrés Torres-Queiruga, ou Schillebeeckx (escrevi certo?), todos, esses sim, dignos de serem ouvidos e considerados, porque insuspeitos de compromisso com conservadorismos.
Bom, não sou nem de longe um sedevacante destrambelhado, nem um adepto do antivaticano II, nem sequer um leigo consagrado de algum instituto mais conservador, apenas um fiel em crise pessoal, que escreve demais. Procurarei a confissão e rezarei mais. Louvo a Deus que a Igreja ainda conte com sacerdotes com o seu valor e preparo. Noto, por exemplo, quantos fiéis ficam profundamente felizes apenas com o pequeno gesto sacerdotal de descer paramentado ao fim da missa para ouvi-los: é uma das poucas, talvez única, oportunidade que eles têm para ter contato, num mundo laicizado, com alguém que tem a coragem de se apresentar publicamente como sacerdote de Jesus, e não sai correndo para vestir-se indistinguivelmente como leigo, para camuflar-se no meio do mundo secularizado.
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