Jesus é nosso sábado. Foi a frase bonita que Ratzinger colocou em seu livro “Jesus de Nazaré”, sobre a seguinte perícope bíblica(Mt 12, 1-8):
“Por esse tempo, Jesus passou, num sábado, pelas plantações. Os seus discípulos, que estavam com fome, puseram-se a arrancar espigas e comê-las. Os fariseus, vendo isso, disseram: 'Olha só! Os teus discípulos a fazerem o que não é lícito fazer num sábado!' Mas ele respondeu-lhes: 'não lestes o que fez Davi e seus companheiros quando tiveram fome? Como entrou na Casa de Deus e como eles comeram os pães da proposição, que não era lícito comer, nem a ele, nem aos que estavam com ele, mas exclusivamente aos sacerdotes? Ou não lestes na Lei que com os seus deveres sabáticos os sacerdotes no templo violam o sábado e ficam sem culpa? Digo-vos que aqui está algo maior do que o templo. Se soubesses o que significa 'misericórdia é o que eu quero e não sacrifício', não condenaríeis os que não têm culpa. Pois o Filho do Homem é senhor do sábado”.
Como toda perícope, esta também é repleta de sentidos, e qualquer abordagem pode levar a uma digressão interminável. Tomaremos, como rumo, a discussão sobre a divindade de Jesus, como proposta por Bento XVI no seu livro “Jesus de Nazaré”, pág. 104 e seguintes.
Introduzindo essa discussão, Bento XVI nos apresenta o livro do estudioso judeu Jacob Neusner, entitulado “ A Rabbi talks with Jesus. An intermillenial interfaith exchange”, e passa a participar desse “diálogo” com o rabino Neusner, em especial a partir da relação de Jesus com o sábado - ponto central da perícope escolhida.
O Papa anota que a observação do sábado “é para Israel expressão central da sua existência como vida em aliança com Deus”. Ora, diz o Papa, a “crítica liberal” reduz o conflito de Jesus com as autoridades judaicas a respeito do sábado ao simples confronto entre um rabi liberal, generoso e livre que teve a coragem de romper com uma mesquinha prática legalista do judaísmo do seu tempo. Assim, diz ele, dessa “interpretação liberal da Bíblia” surgem duas consequências inevitáveis - uma para o judaísmo, visto como um “ramo estéril”, mesquinho, representando um “legalismo ossificado”, e outra para a fé da Igreja, ao representar Jesus reduzido à condição de um “rabino liberal”, precursor do liberalismo cristão. Assim, o Cristo da fé, e portanto, toda a fé da Igreja, não passariam de um enorme erro. Vale dizer, errados estariam todo o judaísmo e todo o catolicismo, para tais intérpretes.
O Papa Bento XVI mostra, então, como o Rabino contemporâneo Neusner vai ao ponto fulcral, nessa discussão, que não é meramente disciplinar, mas profundamente religiosa; Deus descansara no sábado, e portanto o sábado não é uma questão de “piedade pessoal”, mas o núcleo de uma ordem social: “'este dia faz do eterno Israel o que ele é, o povo repousa tal como Deus depois da criação no sétimo dia de sua criação' (pág. 77)”.
Então, diz o Papa, os judeus de então, assim como o rabino Neusner, compreenderam exatamente do que é que Jesus tratava, na perícope em questão. Deus repousara no sábado, Deus instituíra o sábado como descanso de Israel, marca da pertença a Si como povo escolhido. Mas Jesus vem e se oferece como o verdadeiro repouso (Mt. 11, 28-30), fazendo-se, assim, igual a Deus. Para Neusner, diz o Papa, o inaceitável não é a quebra do legalismo formal, mas a presunção de Jesus de apresentar-se como o “novo sábado” e agir como Deus! Ao contrário do que pretende a corrente “desmitologizante” contemporânea, o escândalo não é jurídico, mas estritamente religioso - Jesus apresenta-se como a “nova Torah”, a Palavra de Deus em pessoa. E conclui o Papa, na avaliação dessa perícope:
“Assim, o núcleo autêntico do debate torna-se manifesto. Jesus compreende-se a si mesmo como a Torah - como a Palavra de Deus em pessoa. O prólogo imponente do Evangelho de São João - “No princípio era a Palavra e a Palavra estava junto de Deus e a Palavra era Deus” - não diz outra coisa senão o que o Jesus do sermão da Montanha e o Jesus dos Evangelhos Sinópticos diz. O Jesus dos quatro Evangelhos é um e o mesmo: o verdadeiro Jesus “histórico”.
Além disso, acrescento, apenas Jesus, dentre todos os homens, repousou perfeitamente no sábado, enquanto esteve na tumba: no preciso dia entre a sexta da paixão e o domingo de páscoa. Ele cumpriu plenamente as Escrituras, também neste aspecto: “e no sétimo dia, Deus descansou” (Gênesis 2, 2). Também nisso resgatou-nos, tornando-nos livres dessa “escravidão do homem ao sábado”. Isso permitiria a São Paulo dizer, mais tarde (Colossenses 2, 16): ninguém vos julgue por questões de sábados!
Uma vez que o sábado se consumou em Jesus, temos agora o domingo, dia da ressurreição, como o dia cristão por excelência. Desenvolverei mais o tema em outra oportunidade.
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