segunda-feira, 23 de abril de 2012

Faniquitos antieclesiais no STF

Ainda não tive tempo de ler todos os votos do julgamento sobre a anencefalia com cuidado, fiz a leitura superficial. O voto do relator está muito bem escrito, os argumentos são fortes, ele demonstra coragem e sensibilidade com o sofrimento feminino. Conhece a Bíblia e algumas fontes históricas do cristianismo. Faço mais uma vez ponderações longas a respeito das minhas impressões. Vou pinçar apenas um ponto que considero muito preocupante no voto do relator. A questão que ele levanta sobre uma suposta necessidade de "afastar as pré-compreensões confessionais", citando o Min. Celso de Mello. Ele diz: "nesta República laica, fundada em bases democráticas, o Direito não se submete à religião, e as autoridades incumbidas de aplicá-lo devem despojar-se de pré-compreensões em matéria confessional, em ordem a não fazer repercutir, sobre o processo de poder, quando no exercício de suas funções (qualquer que seja o domínio de sua incidência), as suas próprias convicções religiosas." Uma coisa é fazer repercutir no seu agir as suas convicções religiosas, o que é perfeitamente lícito numa democracia; outra é impor aos outros, pelo exercício do poder, tais convicções, o que é bem diferente. No entanto, o relator, citando Celso de Mello, parece excluir mesmo esta "repercussão" estritamente humana dos cidadãos religiosos, como se a liberdade religiosa somente pudesse ser exercida como opção secreta e recôndita, e qualquer coerência, no confessional, da sua fé com a sua prática, fosse ilícita. O que é assustador para os que, como a maioria da população, professam uma confissão que lhes convida exatamente a esta coerência. Neste particular, tive a grata surpresa de ler isto aqui, no voto do Min. Gilmar Mendes: "Essas entidades (cristãs) são quase que colocadas no banco dos réus como se estivessem fazendo algo de indevido, e não estão. É preciso ter muito cuidado com esse tipo de delírio desses faniquitos anticlericais (...) Recentemente, acompanhava o célebre caso dos crucifixos e ficava preocupado com esse tipo de desenvolvimento. Talvez daqui a pouco tenhamos a supressão do Natal do nosso calendário ou a revisão do calendário gregoriano. Ou alguma figura inspirada vai pedir a demolição do Cristo Redentor." (do voto do Min. Gilmar Mendes). Temos, portanto, que tomar o cuidado oposto quanto ao respeito à liberdade religiosa, e acho que este é o maior desafio para nós, cidadãos brasileiros, agora. O cuidado é que não ocorra o tal "despojamento das pré-compreensões confessionais" como pressuposto para qualquer exercício público de cidadania no âmbito das relações institucionais no estado brasileiro, como o voto do relator menciona, citando Celso de Melo. Isto é um conceito que deve ser olhado com cuidado, porque pode comprometer a própria democracia. Talvez seja a passagem que mais me incomodou, no voto, porque marca uma tendência que, levada ao extremo, exclui da possibilidade do exercício da cidadania qualquer cidadão que seja um religioso confessional. Na verdade, ninguém pode se despojar das próprias pré-compreensões sem deixar de ser uma pessoa humana livre, isto já nos demonstrou Heidegger, quando construiu o conceito de vorverständnis (os que sabem alemão me corrijam) na sua hermenêutica. O ser humano, explica Heidegger, é um dasein, quer dizer, é um "ser-aí", é alguém imerso numa cultura e num momento histórico. Não se deve, por um lado, numa democracia, impor ao outro as próprias pré-compreensões, confessionais ou não. Mas não há como se exigir, como quer o voto, a obrigação de despojar uma classe de pessoas de suas pré-compreensões, muito menos as confessionais, como condição para que seja admitido no debate público, ou mesmo para exercer funções públicas, sem estabelecer o totalitarismo. Portanto cada vez que alguém estabelece a necessidade de "despojar alguém de pré-compreensões", quaisquer que sejam, como pressuposto para o exercício da cidadania ou do diálogo democrático, eu estremeço. Trata-se de negar que o outro possa ser ouvido, ou, no limite, que possa sequer existir tal como ele é, no regime democrático. Não há ninguém sem pré-compreensões, salvo os psicopatas, aliás louvados por aquela canção bobinha do Raul Seixas ("eu prefiro ser esta metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo"). Ora, uma metamorfose ambulante é, por definição, um ser com o qual a convivência é impossível, e portanto, uma sociedade de "metamorfos ambulantes" seria uma sociedade profundamente despótica, nunca democrática - quem tem filhos sabe exatamente o que é conviver em casa com uma "metamorfosezinha ambulante" de nove ou dez anos de idade. Então a pergunta - por que somente os que têm pré-compreensões confessionais" têm que se despojar delas para ser admitido ao exercício da cidadania? Um "metamorfo ambulante", um ser absolutamente sem pré-compreensões, torna despiciendo o direito, torna impossível a comunicação, por fim, implode a própria noção de sociedade. Não se constrói a sociedade democrática com a convivência de crianças mimadas. Portanto, é preciso que tenhamos todos pré-compreensões estáveis e reciprocamente leais, e, ao contrário do que diz o voto, (citando celso de Melo), não se pode exigir de nenhum homem que afaste as suas pré-compreensões para que o embate político democrático seja possível. Na verdade, apenas explicitando claramente as nossas pré-compreensões recíprocas é que o debate se torna leal. Quais serão as pré-compreensões confessionais do Ministro relator? Se ninguém sabe, fica impossível, inclusive, verificar se ele está obedecendo à sua própria orientação e despindo-se delas antes de votar. Estou absolutamente convencido de que não há nenhum ser humano sem pré-compreensões religiosas, confessionais ou não. Homens não são anjos, são filhos dos seus tempos, das suas histórias e das suas culturas. São seres-aí, dasein, diz Heidegger. E devem sempre trazê-las, de modo íntegro e expresso, para a sua vida e para o exercício da sua cidadania. Note-se que eu estou afirmando categoricamente que não há seres humanos sem pré-compreensão religiosa, mas não estou de forma nenhuma dizendo que não há pessoas sem confissão religiosa: estes são legião, e são parceiros inestimáveis na convivência democrática. Precisamos dos sem-confissão, e do seu respeito recíproco. Mas ser sem-confissão é, segundo Heidegger, ter também uma determinada pré-compreensão religiosa, livre e inafastável de igual modo. Mesmo o ateu confesso está na mesma situação. Ele tem uma pré-compreensão religiosa, ainda que seja a de que um Deus pessoal e amoroso não existe, embora possam existir, para os ateus, forças absolutas impessoais, como a economia dialética do trabalho (marxistas), um gene egoísta (Dawkins) ou a pulsão sexual (Freudianos). Os agnósticos igualmente têm pré-compreensões religiosas, ainda que sejam não-confessionais, como uma das duas seguintes: ou todas as religiões são igualmente perniciosas, e as devemos eliminá-las indiscriminadamente, ou todas são igualmente importantes, e devemos garanti-las indiscriminadamente. Ambas as pré-compreensões religiosas do homem não confessional são também incompletas e unilaterais no jogo democrático como um todo, porque há outras posições possíveis no campo das pré-compreensões religiosas que devem igualmente ser levadas em conta no debate público com o mesmo grau de seriedade. Ser confessional, numa sociedade democrática, e agir em coerência com isto, sem imposições, mas com integridade, não pode jamais ser um minus, um capitis diminutio, sem que a liberdade religiosa fique ferida. Não se pode exigir, a contrário senso, que meu interlocutor, digamos, ateu ou agnóstico, abandone tais pré-compreensões não-confessionais, com as quais eventualmente não concordo, para que ele esteja apto a iniciar ou participar de um debate público: para abandonar uma de suas pré-compreensões religiosas não confessionais, um ateu ou um agnóstico deveria estar obrigado a adotar uma religião, e isto violaria sua dignidade humana. Ora, o que não pode ser imposto ao não-confessional não pode ser imposto ao confessional! Devemos todos, confessionais ou não, nos esforçar para ouvir e respeitar o outro como ele é. Extrair, dos debates com todas as posições, aquelas fundamentações históricas, científicas, culturais e sapienciais que nos permitam construir a sociedade mais democrática e digna possível num determnado momento histórico, e não se faz isso tolhendo os direitos civis de uma parcela da população - especificamente a parcela majoritária, a confessional. Fazer isto é violar a dignidade do cidadão confessional, a própria liberdade religiosa e transformar o Estado num ídolo, ou seja, trata-se de César exigindo de nós o que em nós é de Deus - a nossa consciência religiosa livremente formada. (Paulo Jacobina)

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