Encontrei com a Ir. Sandra, das Filhas do Puríssimo Coração e Maria, e perguntei-lhe por determinada criança que vive no orfanato pertencente ao instituto desta freira amada. Esta criança, órfã mas com irmãos, está passando por um processo de adoção muito traumático, no qual a juíza está priorizando a sua entrega a uma família de posses, mesmo ao preço de separá-la dos irmãos mais velhos, um dos quais é maior de idade e lhe quer adotar legalmente, mas é pessoa simples e de poucas posses. Enfim, uma situação extremamente dolorida.
A irmã me relatou a situação, inclusive a visão peculiar do judiciário local sobre a questão e como até o Ministério Público tende a acolher o pedido da família abastada, rompendo os laços familiares que a criança tem com os irmãos mais velhos, em prol de um presumível “bem-estar” que a família adotiva lhe pode proporcionar.
Em visita à criança, a irmã, perguntando-lhe se ela estava gostando do novo lar, ouviu a seguinte resposta:
- Irmã, eles são muito pobres. A única coisa que eles têm é dinheiro.
Puxa vida, fiquei maravilhado com essa resposta, não podia deixar de registrá-la. Que sensibilidade profunda tem essa criança. Deus a abençoe.
Leituras, opiniões e ideias de um católico. Contatos no email paulovjacobina@gmail.com
sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011
quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011
O pecado original e o fundamento do ordenamento jurídico
Para compreender o homem, precisamos de uma antropologia completa e correta. Quer dizer, dois movimentos experimentais são necessários: o primeiro é deduzir uma antropologia a partir da própria observação humana, e a outra, a partir dessa antropologia, deduzir-lhes as consequências, a fim de testar a sua consistência.
Por isso, uma antropologia que não dê conta da questão do sentido da vida humana é inaceitável. Sem admitir que a nossa vida tem um sentido, somos os mais infelizes dos animais, porque somos os únicos animais capazes de perquirir sobre o nosso próprio sentido de vida. Vale dizer, se temos a capacidade de questionar sobre o nosso sentido de vida, mas a nossa vida não tem nenhum sentido discernível, somos malditos. Essa me parece, aliás, ser uma das raízes da epidemia de “depressões” que vivemos. Não estou diagnosticando, nem sequer afirmando categoricamente, mas apenas especulando, com base, dentre outros, no pensamento do grande escritor Viktor Frankl, que aponta a necessidade de sentido como o fator mais importante para o equilíbrio psicológico do homem. Ora, uma antropologia que parte da falta de sentido, sem explicar, por outro lado, por que é que a busca do sentido é uma das características da própria identidade humana, condena o homem à depressão irremediável, e isso me parece incabível.
Neste aspecto, precisamos conhecer e aprofundar a antropologia cristã. Nela, partimos do chamado, feito por Deus ao homem, de participar da vida divina, chamado que foi denominado teologicamente de “justiça original”. Mas, por uma transgressão livre e pessoal do plano divino, o homem torna-se réu de culpa, perdendo por isso a graça da filiação.
Quero explicar que estou utilizando a expressão “justiça” com seu conteúdo teológico de amizade com Deus, de conformidade amorosa com os seus planos e confiança irrestrita no seu amor. Esta é a condição original do homem, da qual temos uma nostalgia indelével em nossos corações.
É bom ressaltar que o homem não é naturalmente filho de Deus. Vale dizer, a filiação divina é um dom, algo que está além e acima da natureza humana. Assim, como dom, pode ser perdido, por escolha livre, voluntária e responsável do homem. Bom, a doutrina do pecado original ensina-nos que foi exatamente isto que aconteceu. Uma escolha livre, voluntária e responsável fez que o primeiro homem, criado em plena justiça e agraciado com a filiação inefável, perdesse essa adoção. E essa condição despojada da justiça original é transmitida individualmente a cada um dos descendentes do primeiro homem. Isso é o que teologicamente se chama de “pecado original originante”.
Bom , desprovidos dessa justiça original, somos como um grande aparelho sem manual de instrução. Já não sabemos o que somos, nem qual o sentido da nossa vida de modo claro e estreme de dúvidas. Assim, a própria condição de portadores de uma natureza ferida por tal queda somente ser-nos-ia clara à luz da morte e ressurreição de Cristo. É preciso conhecer Cristo como fonte da graça, para conhecer Adão como fonte do pecado. Vale dizer, somente em Jesus Cristo nós contemplamos um homem que se conhece plenamente e se conforma integralmente à justiça, vale dizer, ao plano amoroso de Deus. Somente comparando quão distantes nós estamos do modelo de homem revelado em Jesus é que temos noção da profundidade do pecado original em nós. E essa comparação não é possível pelas simples forças de nossa natureza, mas apenas como dom da graça. A nossa natureza ferida é capaz de querer esse bem, quer dizer, de querer comparar-nos com a perfeição absoluta do homem, mas é incapaz de conhecer integralmente o modelo, de conhecer integralmente a si mesmo e de, apenas por suas próprias forças, adaptar sua conduta a esse modelo. É nesse sentido que São Paulo, na Epístola aos Romanos, expressa sua dor:
“15 Não entendo, absolutamente, o que faço, pois não faço o que quero; faço o que aborreço. 16 E, se faço o que não quero, reconheço que a lei é boa. 17 Mas, então, não sou eu que o faço, mas o pecado que em mim habita. 18 Eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita o bem, porque o querer o bem está em mim, mas não sou capaz de efetuá-lo. 19 Não faço o bem que quereria, mas o mal que não quero. 20 Ora, se faço o que não quero, já não sou eu que faço, mas sim o pecado que em mim habita. 21 Encontro, pois, em mim esta lei: quando quero fazer o bem, o que se me depara é o mal.”
Neste sentido, um homem plenamente conformado a Jesus é um homem que não precisa de um ordenamento jurídico para realizar o plano de perfeição e amor de Deus para a humanidade. É por isso que o próprio São Paulo afirma tanto que não é a lei que salva, mas a graça. Somente a graça permite que eu contemple a perfeição de Jesus, a minha própria imperfeição, e que eu deseje profundamente assemelhar-me a ele, reconhecendo que sou incapaz para tanto apenas pela força da natureza, e implore a ajuda de Deus para aperfeiçoar-me. Para o homem que vive em tal graça, a lei é útil, como são úteis os sinais de trânsito para os que têm um ponto de destino, mas não é salvífica, como uma sinalização de trânsito não pode lhe fornecer um objetivo, um ponto de chegada, um destino final.
É o Espírito Santo, enviado por Jesus Cristo Ressuscitado, aquele que nos permite conhecer o pecado em nós e a santidade em Jesus, bem como a culpabilidade do mundo a respeito do pecado (Jo 16,8), ao revelar-nos Jesus como redentor.
A lei, portanto, é necessária para uma humanidade que vive sem a graça, e importante para os que, embora vivendo na graça, sentem ainda em si os efeitos do pecado original. Mas não é suficiente para devolver-nos a perfeição perdida.
Neste sentido, o conhecimento da realidade do pecado original é o reverso da Boa Nova de que Jesus é o salvador de todos os homens. Todos têm necessidade de salvação, porque todos foram maculados por esta mesma condição humana, maculada e decaída, transmitida pelos nossos pais comuns. Por isso é que se pode falar de uma ”solidariedade” do ser humano no pecado, na medida em que essa condição é compartilhada por todos, indistintamente.
O relato da queda dos nossos pais comuns utiliza-se de uma linguagem imagética para afirmar um acontecimento primordial, um fato que ocorreu no interior da história humana, mais precisamente nos seus inícios, de modo a condicionar todos os acontecimentos posteriores. A revelação dá-nos certeza, pela fé, de que toda a história humana está marcada pelo pecado original cometido livremente por nossos pais.
Falando de fé, poderíamos falar dessa força sinistra que está por trás da desobediência dos nossos primeiros pais. Trata-se de uma inteligência agente, cujos efeitos tantas vezes vemos atuando na história humana de modo maléfico e sistemático. Aquilo que chamamos de “anjo destronado”, ou seja, uma pessoa, optou livremente por rejeitar, de modo completo, radical e irrevogável, a Deus e seu Reino. Mistério da iniquidade. Falar da árvore do bem e do mal e da opção irrevogável dos anjos – e dos homens após a morte – é importante, não por qualquer sedução maléfica, mas porque essas realidades são essenciais para se conhecer o tamanho do amor de Deus por nós. Somente uma liberdade que chega ao ponto de permitir uma irrevogável opção contra Deus pode ser considerada uma liberdade subsistente e real, na criatura. Sim, porque, se fôssemos livres para tudo, menos para optar pela rebeldia contra o Criador, tampouco seríamos livres para amá-lo por pura escolha. Constrangidos a amá-lo, jamais chegaríamos a amar de verdade, por um movimento nosso em direção a ele. Somente pode haver paraíso, para os seres livres, quando há uma árvore proibida, nesse paraíso. Senão, sem poder escolher contra Deus, eu jamais seria livre para escolher Deus. Sem poder escolher Rejeitar a Deus total e irrevogavelmente, tampouco se poderia amar a Deus total e irrevogavelmente. Somente a possibilidade de existir Satanás torna possível existir Maria.
Mas o mal não é um ser. Explico-me. Satanás é uma pessoa, poderoso porque é puro espírito, mas a sua maldade não é um ente. A maldade é a privação de um bem esperado. A privação não é uma coisa, mas a falta de algo.
Voltemos ao homem. Essa criatura de Deus tem duas características fundamentais: é a imagem de Deus e foi criado em amizade com Ele. Deus não é uma imagem antropomórfica idealizada: ao contrário, o homem é teomórfico.
Mas, no seu ser de criatura, o homem somente poderia viver essa amizade a Deus pela livre submissão ao seu criador. Senão o homem já não seria um amigo, mas um escravo, ou pior, um bichinho de estimação ou um robô. Assim, a imagem da árvore do conhecimento do bem e do mal evoca simultaneamente o limite intransponível que o homem deve respeitar, como criatura livre, bem como a confiança e a liberdade com que se aproxima de Deus, a fidelidade que toda amizade pressupõe, enfim. A existência de um limite para o homem, no centro do próprio paraíso, é o marco da abariedade, do respeito à lei da criação e do reconhecimento, por parte do ser humano das normas morais que regem a liberdade.
Tentado, no entanto, o homem deixou morrer em seu coração a confiança no seu criador e, abusando da liberdade, desobedeceu ao mandamento de Deus. Por isso, o primeiro pecado foi a desobediência. Todo pecado, daí por diante, será, no fundo, uma desobediência e falta de confiança na bondade divina. O ser humano, no pecado, tira Deus do centro e põe ali a si mesmo. Trata-se de rejeitar a deificação como dom, para elevar-se, sem Deus, à autodeificação, antepondo-se ao criador.
As consequências do pecado original são graves, e são evidentes para todos. Perdida a graça de santidade original, surge o medo de Deus. Note-se que o temor de Deus é uma virtude, mas o medo de Deus, não. O medo de Deus faz com que as pessoas tornem-se adversários de Deus. Cria-se uma imagem falsa de um deus ciumento de suas prerrogativas, um adversário do ser humano, e contra essa imagem o homem passa a combater Deus.
A harmonia da graça original foi destruída. O domínio das faculdades espirituais da alma sobre o corpo é rompida. Surge algo como uma “sombra” na realidade espiritual do homem, que os psicanalistas chamarão de id, subconsciente, duplo, enfim, toda essa nomenclatura que se usa para descrever a vida espiritual que decorre sem controle nas camadas mais profundas da psique humana. A união entre homem e mulher sofre tensão, está submetida à cupidez e à dominação. A harmonia com a natureza fica lesada, e o homem passa a ser um estranho frente a uma natureza hostil e submetida à servidão da corrupção. Graças ao pecado, a morte entra na história humana.
O pecado de nossos primeiros pais inunda o mundo. Somos todos filhos desses mesmos pais humanos, somos “solidários em Adão”, ou seja, solidários no pecado. Mas essa, como sabemos, não é a última palavra. Pois somos capazes de Deus, ou seja, de receber a salvação universal em Jesus.
A imensa miséria que oprime os homens e sua inclinação para o mal são incompreensíveis sem esta noção do pecado original e de sua transmissão por propagação. Expliquemo-nos. O gênero humano inteiro é, em Adão, como que um só homem. Assim, independentemente de culpa pessoal, estamos todos implicados no pecado do primeiro casal; a boa notícia é que, independente de mérito, estamos também todos implicados na justiça de Cristo. A diferença é que, embora Cristo tenha proporcionado objetivamente a salvação para todos os homens, somos livres para rejeitá-la, porque, se o pecado original transmite-se por propagação, a salvação em Cristo depende de adesão. Ou, como dizia Santo Agostinho: Deus, que te criou sem ti, não quer te salvar sem ti. Em Cristo, portanto, abre-se para nós a vida, como em Adão abriu-se a morte pela desobediência.
A transmissão do pecado original é um mistério. Não entendemos plenamente esse processo. Tive um querido professor que costumava dizer: mistério não é aquilo que não se entende, mas aquilo que não se esgota. O fato é que o pecado original não tem caráter pessoal. Não é uma culpa. É uma condição: é como se o molde de uma fábrica de bonequinhos de plástico adquirisse um pequeno defeito, e todos os bonequinhos produzidos ali saíssem com esse mesmo de feito. O pecado original é, no campo da graça, a privação da santidade e da justiça originais. No campo da natureza é a natureza humana lesada, mas não completamente corrompida. Somos capazes do bem natural. Mas estamos submetidos à ignorância, ao sofrimento, à morte, e inclinados ao pecado. Mas essa inclinação não é total nem irreversível, porque senão seríamos irresponsáveis perante Deus e perante os outros.
Como breve parêntese, eu diria que o batismo apaga o pecado original, mas não suas consequências sobre a natureza humana enfraquecida. Continuamos com a natureza lesada, sujeita à dor e à doença, à ignorância e à morte, bem como à concupiscência, que é a inclinação para o pecado. A persistência dessas consequências nos incita ao combate espiritual.
É interessante lembrar a discussão sobre o pecado original ao longo da história da Igreja. Pelágio da Bretanha, escritor antigo (cerca de 360-435), sustentava que o homem podia, pela força de sua vontade livre, sem a ajuda da graça de Deus, levar uma vida moralmente boa. Para ele, Adão era só um mau exemplo. Pelágio teve suas posições fortemente refutadas por Santo Agostinho, em obras ainda hoje importantíssimas para a correta compreensão da doutrina da Igreja.
Os primeiros reformadores partiram para o extremo oposto, com relação ao pelagianismo. Defendiam que o pecado original teria pervertido completamente a natureza humana, e a liberdade teria ficado anulada por ele. O pecado herdado seria uma insuperável tendência para o mal: haveria uma identidade entre concupiscência e pecado. Isso comprometeria, também, qualquer doutrina jurídica: naturalmente incapazes para o bem, somos também absolutamente incapazes de legislar bem. É só pensar um pouco para perceber as consequências dessa doutrina para uma teoria do direito. Tanto se pode justificar, por ela, o totalitarismo teocrático, em nome da incapacidade natural humana de se governar, quanto a autonomia absoluta e a anarquia, em nome do mesmo princípio. Imagino que não seria difícil negar qualquer consistência aos direitos naturais e aos direitos humanos, à possibilidade de uma ética racional ou até mesmo a quaisquer reconhecimentos de valores estritamente naturais ou humanos. Uma visão da natureza humana como totalmente corrompida não parece ser o melhor fundamento antropológico para um ordenamento jurídico, do mesmo modo que a santidade natural pelagiana (ou rousseauniana) não é.
É necessário, portanto, um discernimento lúcido sobre a situação do homem no mundo. A partir do pecado original, há, de fato, uma certa dominação do homem pelo diabo, o que é ignorado em determinadas antropologias otimistas, como a rousseauniana, bem como superestimado nas pessimistas, como as predestinacionistas de origem calvinista, causando graves erros na educação, na política, na ação social e nos costumes.
O pecado original, os pecados pessoais e suas consequências conferem ao mundo em seu conjunto uma condição pecadora (Jo 1, 29), que a Bíblia chama de “o pecado do mundo”. Com essa expressão, se bem compreendida, exprime-se também a influência negativa que as situações comunitárias e as estruturas sociais, frutos dos pecados pessoais do homem, exercem sobre os outros homens, induzindo-os ao sofrimento e ao próprio pecado.
A luta incansável contra o poder das trevas é, portanto, parte da realidade da humanidade decaída. Neste espaço é que se encontra a necessidade, premente para o cristão, de influir nos ordenamentos jurídicos positivos. É que, embora não sendo salvíficos em si, eles podem servir de instrumentos para a implementação das estruturas sociais de pecado (imaginemos uma rede de clínicas abortistas, por exemplo). O homem, e em especial o cristão, deve lutar sempre para aderir ao bem, e não o consegue sem grandes esforços e principalmente a graça de Deus, condições necessárias e suficientes para recobrar a unidade interior (e social) perdidas pelo pecado original. Quando essa unidade estiver refeita, tampouco o ordenamento jurídico positivo terá mais qualquer significado ou importância. Estaremos sob a lei do amor.
Por isso, uma antropologia que não dê conta da questão do sentido da vida humana é inaceitável. Sem admitir que a nossa vida tem um sentido, somos os mais infelizes dos animais, porque somos os únicos animais capazes de perquirir sobre o nosso próprio sentido de vida. Vale dizer, se temos a capacidade de questionar sobre o nosso sentido de vida, mas a nossa vida não tem nenhum sentido discernível, somos malditos. Essa me parece, aliás, ser uma das raízes da epidemia de “depressões” que vivemos. Não estou diagnosticando, nem sequer afirmando categoricamente, mas apenas especulando, com base, dentre outros, no pensamento do grande escritor Viktor Frankl, que aponta a necessidade de sentido como o fator mais importante para o equilíbrio psicológico do homem. Ora, uma antropologia que parte da falta de sentido, sem explicar, por outro lado, por que é que a busca do sentido é uma das características da própria identidade humana, condena o homem à depressão irremediável, e isso me parece incabível.
Neste aspecto, precisamos conhecer e aprofundar a antropologia cristã. Nela, partimos do chamado, feito por Deus ao homem, de participar da vida divina, chamado que foi denominado teologicamente de “justiça original”. Mas, por uma transgressão livre e pessoal do plano divino, o homem torna-se réu de culpa, perdendo por isso a graça da filiação.
Quero explicar que estou utilizando a expressão “justiça” com seu conteúdo teológico de amizade com Deus, de conformidade amorosa com os seus planos e confiança irrestrita no seu amor. Esta é a condição original do homem, da qual temos uma nostalgia indelével em nossos corações.
É bom ressaltar que o homem não é naturalmente filho de Deus. Vale dizer, a filiação divina é um dom, algo que está além e acima da natureza humana. Assim, como dom, pode ser perdido, por escolha livre, voluntária e responsável do homem. Bom, a doutrina do pecado original ensina-nos que foi exatamente isto que aconteceu. Uma escolha livre, voluntária e responsável fez que o primeiro homem, criado em plena justiça e agraciado com a filiação inefável, perdesse essa adoção. E essa condição despojada da justiça original é transmitida individualmente a cada um dos descendentes do primeiro homem. Isso é o que teologicamente se chama de “pecado original originante”.
Bom , desprovidos dessa justiça original, somos como um grande aparelho sem manual de instrução. Já não sabemos o que somos, nem qual o sentido da nossa vida de modo claro e estreme de dúvidas. Assim, a própria condição de portadores de uma natureza ferida por tal queda somente ser-nos-ia clara à luz da morte e ressurreição de Cristo. É preciso conhecer Cristo como fonte da graça, para conhecer Adão como fonte do pecado. Vale dizer, somente em Jesus Cristo nós contemplamos um homem que se conhece plenamente e se conforma integralmente à justiça, vale dizer, ao plano amoroso de Deus. Somente comparando quão distantes nós estamos do modelo de homem revelado em Jesus é que temos noção da profundidade do pecado original em nós. E essa comparação não é possível pelas simples forças de nossa natureza, mas apenas como dom da graça. A nossa natureza ferida é capaz de querer esse bem, quer dizer, de querer comparar-nos com a perfeição absoluta do homem, mas é incapaz de conhecer integralmente o modelo, de conhecer integralmente a si mesmo e de, apenas por suas próprias forças, adaptar sua conduta a esse modelo. É nesse sentido que São Paulo, na Epístola aos Romanos, expressa sua dor:
“15 Não entendo, absolutamente, o que faço, pois não faço o que quero; faço o que aborreço. 16 E, se faço o que não quero, reconheço que a lei é boa. 17 Mas, então, não sou eu que o faço, mas o pecado que em mim habita. 18 Eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita o bem, porque o querer o bem está em mim, mas não sou capaz de efetuá-lo. 19 Não faço o bem que quereria, mas o mal que não quero. 20 Ora, se faço o que não quero, já não sou eu que faço, mas sim o pecado que em mim habita. 21 Encontro, pois, em mim esta lei: quando quero fazer o bem, o que se me depara é o mal.”
Neste sentido, um homem plenamente conformado a Jesus é um homem que não precisa de um ordenamento jurídico para realizar o plano de perfeição e amor de Deus para a humanidade. É por isso que o próprio São Paulo afirma tanto que não é a lei que salva, mas a graça. Somente a graça permite que eu contemple a perfeição de Jesus, a minha própria imperfeição, e que eu deseje profundamente assemelhar-me a ele, reconhecendo que sou incapaz para tanto apenas pela força da natureza, e implore a ajuda de Deus para aperfeiçoar-me. Para o homem que vive em tal graça, a lei é útil, como são úteis os sinais de trânsito para os que têm um ponto de destino, mas não é salvífica, como uma sinalização de trânsito não pode lhe fornecer um objetivo, um ponto de chegada, um destino final.
É o Espírito Santo, enviado por Jesus Cristo Ressuscitado, aquele que nos permite conhecer o pecado em nós e a santidade em Jesus, bem como a culpabilidade do mundo a respeito do pecado (Jo 16,8), ao revelar-nos Jesus como redentor.
A lei, portanto, é necessária para uma humanidade que vive sem a graça, e importante para os que, embora vivendo na graça, sentem ainda em si os efeitos do pecado original. Mas não é suficiente para devolver-nos a perfeição perdida.
Neste sentido, o conhecimento da realidade do pecado original é o reverso da Boa Nova de que Jesus é o salvador de todos os homens. Todos têm necessidade de salvação, porque todos foram maculados por esta mesma condição humana, maculada e decaída, transmitida pelos nossos pais comuns. Por isso é que se pode falar de uma ”solidariedade” do ser humano no pecado, na medida em que essa condição é compartilhada por todos, indistintamente.
O relato da queda dos nossos pais comuns utiliza-se de uma linguagem imagética para afirmar um acontecimento primordial, um fato que ocorreu no interior da história humana, mais precisamente nos seus inícios, de modo a condicionar todos os acontecimentos posteriores. A revelação dá-nos certeza, pela fé, de que toda a história humana está marcada pelo pecado original cometido livremente por nossos pais.
Falando de fé, poderíamos falar dessa força sinistra que está por trás da desobediência dos nossos primeiros pais. Trata-se de uma inteligência agente, cujos efeitos tantas vezes vemos atuando na história humana de modo maléfico e sistemático. Aquilo que chamamos de “anjo destronado”, ou seja, uma pessoa, optou livremente por rejeitar, de modo completo, radical e irrevogável, a Deus e seu Reino. Mistério da iniquidade. Falar da árvore do bem e do mal e da opção irrevogável dos anjos – e dos homens após a morte – é importante, não por qualquer sedução maléfica, mas porque essas realidades são essenciais para se conhecer o tamanho do amor de Deus por nós. Somente uma liberdade que chega ao ponto de permitir uma irrevogável opção contra Deus pode ser considerada uma liberdade subsistente e real, na criatura. Sim, porque, se fôssemos livres para tudo, menos para optar pela rebeldia contra o Criador, tampouco seríamos livres para amá-lo por pura escolha. Constrangidos a amá-lo, jamais chegaríamos a amar de verdade, por um movimento nosso em direção a ele. Somente pode haver paraíso, para os seres livres, quando há uma árvore proibida, nesse paraíso. Senão, sem poder escolher contra Deus, eu jamais seria livre para escolher Deus. Sem poder escolher Rejeitar a Deus total e irrevogavelmente, tampouco se poderia amar a Deus total e irrevogavelmente. Somente a possibilidade de existir Satanás torna possível existir Maria.
Mas o mal não é um ser. Explico-me. Satanás é uma pessoa, poderoso porque é puro espírito, mas a sua maldade não é um ente. A maldade é a privação de um bem esperado. A privação não é uma coisa, mas a falta de algo.
Voltemos ao homem. Essa criatura de Deus tem duas características fundamentais: é a imagem de Deus e foi criado em amizade com Ele. Deus não é uma imagem antropomórfica idealizada: ao contrário, o homem é teomórfico.
Mas, no seu ser de criatura, o homem somente poderia viver essa amizade a Deus pela livre submissão ao seu criador. Senão o homem já não seria um amigo, mas um escravo, ou pior, um bichinho de estimação ou um robô. Assim, a imagem da árvore do conhecimento do bem e do mal evoca simultaneamente o limite intransponível que o homem deve respeitar, como criatura livre, bem como a confiança e a liberdade com que se aproxima de Deus, a fidelidade que toda amizade pressupõe, enfim. A existência de um limite para o homem, no centro do próprio paraíso, é o marco da abariedade, do respeito à lei da criação e do reconhecimento, por parte do ser humano das normas morais que regem a liberdade.
Tentado, no entanto, o homem deixou morrer em seu coração a confiança no seu criador e, abusando da liberdade, desobedeceu ao mandamento de Deus. Por isso, o primeiro pecado foi a desobediência. Todo pecado, daí por diante, será, no fundo, uma desobediência e falta de confiança na bondade divina. O ser humano, no pecado, tira Deus do centro e põe ali a si mesmo. Trata-se de rejeitar a deificação como dom, para elevar-se, sem Deus, à autodeificação, antepondo-se ao criador.
As consequências do pecado original são graves, e são evidentes para todos. Perdida a graça de santidade original, surge o medo de Deus. Note-se que o temor de Deus é uma virtude, mas o medo de Deus, não. O medo de Deus faz com que as pessoas tornem-se adversários de Deus. Cria-se uma imagem falsa de um deus ciumento de suas prerrogativas, um adversário do ser humano, e contra essa imagem o homem passa a combater Deus.
A harmonia da graça original foi destruída. O domínio das faculdades espirituais da alma sobre o corpo é rompida. Surge algo como uma “sombra” na realidade espiritual do homem, que os psicanalistas chamarão de id, subconsciente, duplo, enfim, toda essa nomenclatura que se usa para descrever a vida espiritual que decorre sem controle nas camadas mais profundas da psique humana. A união entre homem e mulher sofre tensão, está submetida à cupidez e à dominação. A harmonia com a natureza fica lesada, e o homem passa a ser um estranho frente a uma natureza hostil e submetida à servidão da corrupção. Graças ao pecado, a morte entra na história humana.
O pecado de nossos primeiros pais inunda o mundo. Somos todos filhos desses mesmos pais humanos, somos “solidários em Adão”, ou seja, solidários no pecado. Mas essa, como sabemos, não é a última palavra. Pois somos capazes de Deus, ou seja, de receber a salvação universal em Jesus.
A imensa miséria que oprime os homens e sua inclinação para o mal são incompreensíveis sem esta noção do pecado original e de sua transmissão por propagação. Expliquemo-nos. O gênero humano inteiro é, em Adão, como que um só homem. Assim, independentemente de culpa pessoal, estamos todos implicados no pecado do primeiro casal; a boa notícia é que, independente de mérito, estamos também todos implicados na justiça de Cristo. A diferença é que, embora Cristo tenha proporcionado objetivamente a salvação para todos os homens, somos livres para rejeitá-la, porque, se o pecado original transmite-se por propagação, a salvação em Cristo depende de adesão. Ou, como dizia Santo Agostinho: Deus, que te criou sem ti, não quer te salvar sem ti. Em Cristo, portanto, abre-se para nós a vida, como em Adão abriu-se a morte pela desobediência.
A transmissão do pecado original é um mistério. Não entendemos plenamente esse processo. Tive um querido professor que costumava dizer: mistério não é aquilo que não se entende, mas aquilo que não se esgota. O fato é que o pecado original não tem caráter pessoal. Não é uma culpa. É uma condição: é como se o molde de uma fábrica de bonequinhos de plástico adquirisse um pequeno defeito, e todos os bonequinhos produzidos ali saíssem com esse mesmo de feito. O pecado original é, no campo da graça, a privação da santidade e da justiça originais. No campo da natureza é a natureza humana lesada, mas não completamente corrompida. Somos capazes do bem natural. Mas estamos submetidos à ignorância, ao sofrimento, à morte, e inclinados ao pecado. Mas essa inclinação não é total nem irreversível, porque senão seríamos irresponsáveis perante Deus e perante os outros.
Como breve parêntese, eu diria que o batismo apaga o pecado original, mas não suas consequências sobre a natureza humana enfraquecida. Continuamos com a natureza lesada, sujeita à dor e à doença, à ignorância e à morte, bem como à concupiscência, que é a inclinação para o pecado. A persistência dessas consequências nos incita ao combate espiritual.
É interessante lembrar a discussão sobre o pecado original ao longo da história da Igreja. Pelágio da Bretanha, escritor antigo (cerca de 360-435), sustentava que o homem podia, pela força de sua vontade livre, sem a ajuda da graça de Deus, levar uma vida moralmente boa. Para ele, Adão era só um mau exemplo. Pelágio teve suas posições fortemente refutadas por Santo Agostinho, em obras ainda hoje importantíssimas para a correta compreensão da doutrina da Igreja.
Os primeiros reformadores partiram para o extremo oposto, com relação ao pelagianismo. Defendiam que o pecado original teria pervertido completamente a natureza humana, e a liberdade teria ficado anulada por ele. O pecado herdado seria uma insuperável tendência para o mal: haveria uma identidade entre concupiscência e pecado. Isso comprometeria, também, qualquer doutrina jurídica: naturalmente incapazes para o bem, somos também absolutamente incapazes de legislar bem. É só pensar um pouco para perceber as consequências dessa doutrina para uma teoria do direito. Tanto se pode justificar, por ela, o totalitarismo teocrático, em nome da incapacidade natural humana de se governar, quanto a autonomia absoluta e a anarquia, em nome do mesmo princípio. Imagino que não seria difícil negar qualquer consistência aos direitos naturais e aos direitos humanos, à possibilidade de uma ética racional ou até mesmo a quaisquer reconhecimentos de valores estritamente naturais ou humanos. Uma visão da natureza humana como totalmente corrompida não parece ser o melhor fundamento antropológico para um ordenamento jurídico, do mesmo modo que a santidade natural pelagiana (ou rousseauniana) não é.
É necessário, portanto, um discernimento lúcido sobre a situação do homem no mundo. A partir do pecado original, há, de fato, uma certa dominação do homem pelo diabo, o que é ignorado em determinadas antropologias otimistas, como a rousseauniana, bem como superestimado nas pessimistas, como as predestinacionistas de origem calvinista, causando graves erros na educação, na política, na ação social e nos costumes.
O pecado original, os pecados pessoais e suas consequências conferem ao mundo em seu conjunto uma condição pecadora (Jo 1, 29), que a Bíblia chama de “o pecado do mundo”. Com essa expressão, se bem compreendida, exprime-se também a influência negativa que as situações comunitárias e as estruturas sociais, frutos dos pecados pessoais do homem, exercem sobre os outros homens, induzindo-os ao sofrimento e ao próprio pecado.
A luta incansável contra o poder das trevas é, portanto, parte da realidade da humanidade decaída. Neste espaço é que se encontra a necessidade, premente para o cristão, de influir nos ordenamentos jurídicos positivos. É que, embora não sendo salvíficos em si, eles podem servir de instrumentos para a implementação das estruturas sociais de pecado (imaginemos uma rede de clínicas abortistas, por exemplo). O homem, e em especial o cristão, deve lutar sempre para aderir ao bem, e não o consegue sem grandes esforços e principalmente a graça de Deus, condições necessárias e suficientes para recobrar a unidade interior (e social) perdidas pelo pecado original. Quando essa unidade estiver refeita, tampouco o ordenamento jurídico positivo terá mais qualquer significado ou importância. Estaremos sob a lei do amor.
terça-feira, 15 de fevereiro de 2011
Os "novos livros católicos"
Há duas passagens da Bíblia que me angustiam, porque são categóricas e estabelecem molduras para pensar a vida da igreja e pensar Jesus na história. São elas: “as portas do inferno não prevalecerão sobre ela [a Igreja]” e “Jesus é o mesmo, ontem, hoje e sempre”. Refiro-me, no primeiro caso, a Mateus 16, 18 e, no segundo, a Hebreus 13, 8.
Cito essas passagens para comentar o pensamento de alguns teólogos cuja leitura me incomoda, não posso negar. Talvez eles sejam bem mais argutos do que eu, certamente são incomparavelmente mais cultos. Mas o que me angustia não é a argúcia nem a cultura deles, mas determinadas afirmações que eu leio, releio e não consigo entender corretamente, sei lá. É como esse bendito manifesto de mais de cento e quarenta teólogos alemães, pedindo o fim do celibato sacerdotal, a ordenação de mulheres, o reconhecimento do divórcio e do casamento homossexual, a escolha popular dos bispos e a liberdade irrestrita de opinião frente ao magistério. É daquelas coisas que o Tio Cristino, quase analfabeto, responderia assim:
Uai, mas os protestantes não têm isso tudo lá na religião deles? Então não precisa mudar a Igreja Católica, é só o insatisfeito virar protestante...
De fato, os protestantes liberais não estão promovendo nenhuma espécie de surto de crescimento da fé, no mundo, para que se defenda que de repente a Igreja Católica vire um tipo de igrejona protestante liberal. Muito ao contrário, as igrejas liberais estão sofrendo uma crise muito mais profunda do que nós, acossadas pelo neopentecostalismo americano, que é um misto de fundamentalismo literalista, magia e mentalidade empresarial.
Por outro lado, não vejo nenhum fundamento, nem na Bíblia, nem na Tradição, para essas mudanças. Só o suicídio eclesial, porque nos levaria a ser infiéis a Jesus. E uma Igreja infiel a Jesus já não é Igreja, é clube ou maçonaria. E se a igreja é merecedora dessas críticas, das duas uma: ou Jesus mudou muito nos últimos dois mil anos, e a carta aos Hebreus está errada, ou as portas do inferno prevaleceram sobre a Igreja, e a promessa de Jesus registrada no Evangelho de Mateus é uma balela.
Mas não foi isso que me causou essa angústia, mas um livro que eu comecei a ler ontem à noite, um comentário sobre o Cântico dos Cânticos escrito por um padre biblista brasileiro e publicado por uma grande editora católica.
Esse padre, que se apresenta como um sacerdote de 58 anos, tem uma cultura admirável, e anota intuições realmente muito belas sobre o Cântico dos Cânticos, que é, sem dúvida, um dos mais belos e provocantes livros da Bíblia. Mas o faz emoldurado por uma espécie de neblina indefinível de apologia do amor livre, moldura que se insinua mas nunca se deixa explícita, mas que me deixou a sensação de que o Cântico dos Cânticos, como ali descrito, fosse, em algum grau, uma ata de reunião de hippies velhos, ou a Igreja, uma espécie de seita gnóstica ou cátara desprezadora da matéria.
Cito a seguinte passagem:
“O amor não suporta leis ou normas que o determinem, porque ele é soberano e, na sua criatividade, seu maior prazer é criar a novidade, sem jamais repetir uma forma sequer. Teríamos nós o direito de dizer: 'esta é a única forma correta de amar?' De jeito nenhum. Todavia, caso em nossa teimosia pretendamos classificar, ou aprovar ou desaprovar este ou aquele amor, cedo ou tarde, o amor genuíno acabará pondo abaixo todas as nossas regras, normas e fórmulas. Simplesmente porque o amor é invencível e, em todo e qualquer embate, sairá sempre vitorioso.”
O autor passa a citar São João para colocar, por meio de perguntas retóricas, a ideia de que “o amor leva sempre a Deus”, ou questionar: será que “a maior e mais misteriosa revelação de Deus, e a maior e mais intensa experiência de Deus que podemos fazer acontece justamente no amor?”
O seu texto causou em mim uma intensa impressão de glorificação do amor como relacionamento sexual dito “livre”, sempre com uma sutileza que nos impede simplesmente de apontar o limite entre viver misticamente o amor de Deus no amor aos irmãos, inclusive no amor erótico ordenado à doação e à responsabilidade, por um lado, e a pura e simples experiência do prazer sexual, por outro. Já citei o parágrafo acima, que me soou (sem que se possa irrefutavelmente determinar que seja em si mesmo, com todas as letras) uma apologia ao sexo livre como caminho para a experiência mística.
Passo a citar outros parágrafos, que para mim pareceram alguma coisa escrita “à chave”, que insinua dizer mais do que o que diz, e que eu só não entendo porque não domino o tipo de erudição que parece ser pressuposta, pelo autor, para reconhecer no leitor um católico afinado com os tempos.
Em outra passagem do texto, por exemplo, o sacerdote autor do livro diz que “uma sua amiga”, que ele descreve como culta, formada em colégio religioso, socióloga e teóloga, questiona sua experiência para comentar o “Cântico dos Cânticos”, alegando que, ele, sacerdote, “não tem experiência nisso”, porque nunca viveu o matrimônio e o amor”. Ele responde no texto, não para negar que a concepção do amor presente no Cântico dos Cânticos supere em muito a dimensão sexual ou matrimonial, sem, porém, negar toda a sua riqueza existencial e santa (mesmo no plano literal) mas para afirmar que o Cântico foi usado, tanto pelos judeus como pelos cristãos para falar do amor no matrimônio, porque “esta foi considerada por eles como a única forma legítima e aceitável para a vivência do amor”. Isso soou para mim como uma crítica direta e duríssima à Igreja, bem como ao judaísmo, acusados, pareceu-me, de não terem entendido nada da Bíblia até agora.
O autor continua: “Todavia, o mais belo cântico, em sua literalidade, não chega até aí. Ao contrário, é apenas celebração, comemoração, festa alegre por causa do amor. Como se isso fosse pouco e não tivesse a menor importância!”. É claro que tem importância, mas também envolve responsabilidade e inserção num determinado e específico contexto cultural, que é exatamente o contexto que o autor me causou a sensação de rejeitar, o contexto judaico-cristão, como hipócrita e redutor.
Noto que o sacerdote autor comete pelo menos duas impropriedades textuais, duas críticas “liberais” ao cristianismo. A primeira é afirmar que os judeus e cristãos consideraram “o amor no matrimônio como única forma legítima e aceitável para a vivência do amor”. Isso é pura e simplesmente, com todo o respeito da minha ignorância, falso. O matrimônio foi considerado, tão somente, como a única forma legítima e aceitável de viver a sexualidade genital, conjugal, mas não o amor tout court. Amor é bem mais que genitalidade, em, se a genitalidade pode ser vivida sem amor (como fazem os sapos, os cães e os que vivem, como consumidor ou fornecedor, a prostituição), certamente o amor pleno pode ser vivido sem expressão ativa de genitalidade, como Jesus o fez. Trata-se de um texto que, para o meu grau limitado de erudição, traz uma escassa clareza de conceitos, o que me pareceu inaceitável num livro que se propõe a ensinar-nos a ser melhores cristãos, mormente quando o autor se apresenta como sacerdote, biblista e teólogo. Senti-me indefeso e confuso.
Em seguida, ainda mantendo, para meu grau tosco de erudição, essa confusão entre o amor divino, o amor humano e a sexualidade, e, à maneira de “resposta” à objeção daquela sua amiga que o “acusara” de desconhecer o sexo e, portanto, ser incompetente para comentar o Cântico, ele afirma, num parágrafo que me soou obscuro e um tanto poético:
“Em todo caso, quer dizer que, como sacerdote e representante de uma religião, eu não posso ou não devo ou ainda não me convém experimentar aquilo que é o elemento constitutivo mais básico, não só da vida humana, mas também da própria vida divina? O que significa tudo isso? Na verdade, na reação dessa amiga, não vejo nada de pessoal. Porém, estarrecido, constato séculos e séculos de uma dicotomia, de um corte entre a divindade e a humanidade, e é justamente isso que me deixa muitíssimo preocupado”.
Bom, eu não sou culto o suficiente para entender sem ambiguidades um parágrafo assim. Será que o sacerdote está equiparando sexo e amor, e, mais ainda, levando a sexualidade ao nível de “elemento constitutivo mais básico, não só da vida humana, mas também da própria vida divina?” Seremos todos nós freudianos, daqueles que acham que a pulsão sexual é um deus, ou o fundamento básico da vida humana? Será que o autor do texto está insinuando que reconhece que, sem o amor sexual, o homem não pode comentar o Cântico, mas veladamente gaba-se da sua própria experiência nesse campo? Certamente não é isso, mas a forma com que este texto está redigido permitiu-me, na minha simploriedade, chegar a essa conclusão.
Creio que não é difícil para outros, tão simplórios quanto eu, evitar adotar a mesma conclusão confusa, e sentir-se, como eu, apenas um ultrapassado e inculto seguidor de uma Igreja moralista, dicotomista e ultrapassada, e o autor, com toda a sua erudição e vanguarda, como um destemido profeta de uma nova era de sexualidade plena e mística. Tudo isso, é claro, é somente a minha própria visão distorcida, mero leigo despreparado frente a um sacerdote biblista renomado publicado por uma das maiores casas editoras católicas do mundo.
O Cântico é maravilhoso. Ele tem imensas dificuldades exegéticas, e deve, é claro, ser lido de um modo não-moralista. Refiro-me, é claro, à melhor conotação da expressão “moralista”, vale dizer, moralismo como farisaísmo de quem vê as regras morais como exterioridades. Porque creio que temos uma moral, a moral cristã, e ter e viver uma moral não significa ser moralista, muito ao contrário. Portanto, toda vez que imagino que um exegeta está insinuando que somente posso entender determinado texto bíblico se renunciar ao meu próprio cristianismo católico, fico com uma tremenda pulga atrás da orelha.
Mas o Cântico não é amoral, e está inserido num cânon judaico-cristão, não, como eu entendi da proposta do livro, numa moldura hippie pós-freudiana. Vou rezar mais para tentar ler melhor a Bíblia, embora às vezes eu tenha a sensação, depois de ler este livro, de que rezar pode não ser a melhor maneira de conversar com Deus, pois o “amor”, nesse contexto dúbio que o autor coloca, pode ser melhor definido, como ele mesmo faz, como “a faísca que brilha desde aquele momento em que um espermatozóide se encontrou com um óvulo, e daí surgimos todos e cada um de nós”. O autor prossegue:
“Nossa vida, queiramos ou não, gostemos ou não – se resume na questão básica de amar ou não amar, de sermos ou não cúmplices desse universal mistério da vida”.
E, num texto ainda mais fora do meu alcance iletrado, ele afirma:
“Fomos criados para o amor e apenas no amor nos sentiremos plenamente realizados. De qual modo viveremos o amor, porém, é outra questão – aliás, questão de pura criatividade. Não se trata propriamente de criarmos o amor, mas de deixar que o amor crie nosso viver, pois o amor é, em sua própria essência, o grande inventor da vida. E não tenhamos medo de repetir as velhas fórmulas, porque isso jamais acontecerá. Mesmo que nós todos tenhamos nas mãos os mesmos ingredientes, o modo de cada um amar e, portanto, de viver, será único e singular”.
Desculpe, meu desconhecido sacerdote e autor de tão erudito livro. Meu modo de viver não me parece singular; para mim, o amor é plural, e minha vida não está escondida numa “faísca” que saltou quando o espermatozóide do meu pai encontrou-se com o óvulo de minha mãe, quem sabe se numa transa fortuita e entediante. A minha vida está escondida em Jesus, como me adverte São Paulo (Colossenses 3, 3), e é para ela que me ordeno, integralmente, inclusive a minha sexualidade. Não entendi a mensagem do livro, mas meu desconforto decorre de que não reconheço, nessa obscuridade, a voz do meu pastor, que é a voz do mesmo Jesus de sempre, João 10, 14.
Eu continuo muito angustiado quando vou numa livraria católica. Soube, estes dias, por um dos vendedores de uma delas, que um dos livros mais vendidos ali chama-se “Outro Cristianismo é Possível”. Qual seria esse “outro cristianismo”, eu não sei, nem sou erudito o suficiente para saber, me parece. Mas dá quase uma consciência pesada, nessas livrarias, estar satisfeito com este cristianismo mesmo, o cristianismo católico, aquele que acredita que Jesus não muda e que as portas do inferno não prevaleceram, em tempo algum, contra a Igreja.
Cito essas passagens para comentar o pensamento de alguns teólogos cuja leitura me incomoda, não posso negar. Talvez eles sejam bem mais argutos do que eu, certamente são incomparavelmente mais cultos. Mas o que me angustia não é a argúcia nem a cultura deles, mas determinadas afirmações que eu leio, releio e não consigo entender corretamente, sei lá. É como esse bendito manifesto de mais de cento e quarenta teólogos alemães, pedindo o fim do celibato sacerdotal, a ordenação de mulheres, o reconhecimento do divórcio e do casamento homossexual, a escolha popular dos bispos e a liberdade irrestrita de opinião frente ao magistério. É daquelas coisas que o Tio Cristino, quase analfabeto, responderia assim:
Uai, mas os protestantes não têm isso tudo lá na religião deles? Então não precisa mudar a Igreja Católica, é só o insatisfeito virar protestante...
De fato, os protestantes liberais não estão promovendo nenhuma espécie de surto de crescimento da fé, no mundo, para que se defenda que de repente a Igreja Católica vire um tipo de igrejona protestante liberal. Muito ao contrário, as igrejas liberais estão sofrendo uma crise muito mais profunda do que nós, acossadas pelo neopentecostalismo americano, que é um misto de fundamentalismo literalista, magia e mentalidade empresarial.
Por outro lado, não vejo nenhum fundamento, nem na Bíblia, nem na Tradição, para essas mudanças. Só o suicídio eclesial, porque nos levaria a ser infiéis a Jesus. E uma Igreja infiel a Jesus já não é Igreja, é clube ou maçonaria. E se a igreja é merecedora dessas críticas, das duas uma: ou Jesus mudou muito nos últimos dois mil anos, e a carta aos Hebreus está errada, ou as portas do inferno prevaleceram sobre a Igreja, e a promessa de Jesus registrada no Evangelho de Mateus é uma balela.
Mas não foi isso que me causou essa angústia, mas um livro que eu comecei a ler ontem à noite, um comentário sobre o Cântico dos Cânticos escrito por um padre biblista brasileiro e publicado por uma grande editora católica.
Esse padre, que se apresenta como um sacerdote de 58 anos, tem uma cultura admirável, e anota intuições realmente muito belas sobre o Cântico dos Cânticos, que é, sem dúvida, um dos mais belos e provocantes livros da Bíblia. Mas o faz emoldurado por uma espécie de neblina indefinível de apologia do amor livre, moldura que se insinua mas nunca se deixa explícita, mas que me deixou a sensação de que o Cântico dos Cânticos, como ali descrito, fosse, em algum grau, uma ata de reunião de hippies velhos, ou a Igreja, uma espécie de seita gnóstica ou cátara desprezadora da matéria.
Cito a seguinte passagem:
“O amor não suporta leis ou normas que o determinem, porque ele é soberano e, na sua criatividade, seu maior prazer é criar a novidade, sem jamais repetir uma forma sequer. Teríamos nós o direito de dizer: 'esta é a única forma correta de amar?' De jeito nenhum. Todavia, caso em nossa teimosia pretendamos classificar, ou aprovar ou desaprovar este ou aquele amor, cedo ou tarde, o amor genuíno acabará pondo abaixo todas as nossas regras, normas e fórmulas. Simplesmente porque o amor é invencível e, em todo e qualquer embate, sairá sempre vitorioso.”
O autor passa a citar São João para colocar, por meio de perguntas retóricas, a ideia de que “o amor leva sempre a Deus”, ou questionar: será que “a maior e mais misteriosa revelação de Deus, e a maior e mais intensa experiência de Deus que podemos fazer acontece justamente no amor?”
O seu texto causou em mim uma intensa impressão de glorificação do amor como relacionamento sexual dito “livre”, sempre com uma sutileza que nos impede simplesmente de apontar o limite entre viver misticamente o amor de Deus no amor aos irmãos, inclusive no amor erótico ordenado à doação e à responsabilidade, por um lado, e a pura e simples experiência do prazer sexual, por outro. Já citei o parágrafo acima, que me soou (sem que se possa irrefutavelmente determinar que seja em si mesmo, com todas as letras) uma apologia ao sexo livre como caminho para a experiência mística.
Passo a citar outros parágrafos, que para mim pareceram alguma coisa escrita “à chave”, que insinua dizer mais do que o que diz, e que eu só não entendo porque não domino o tipo de erudição que parece ser pressuposta, pelo autor, para reconhecer no leitor um católico afinado com os tempos.
Em outra passagem do texto, por exemplo, o sacerdote autor do livro diz que “uma sua amiga”, que ele descreve como culta, formada em colégio religioso, socióloga e teóloga, questiona sua experiência para comentar o “Cântico dos Cânticos”, alegando que, ele, sacerdote, “não tem experiência nisso”, porque nunca viveu o matrimônio e o amor”. Ele responde no texto, não para negar que a concepção do amor presente no Cântico dos Cânticos supere em muito a dimensão sexual ou matrimonial, sem, porém, negar toda a sua riqueza existencial e santa (mesmo no plano literal) mas para afirmar que o Cântico foi usado, tanto pelos judeus como pelos cristãos para falar do amor no matrimônio, porque “esta foi considerada por eles como a única forma legítima e aceitável para a vivência do amor”. Isso soou para mim como uma crítica direta e duríssima à Igreja, bem como ao judaísmo, acusados, pareceu-me, de não terem entendido nada da Bíblia até agora.
O autor continua: “Todavia, o mais belo cântico, em sua literalidade, não chega até aí. Ao contrário, é apenas celebração, comemoração, festa alegre por causa do amor. Como se isso fosse pouco e não tivesse a menor importância!”. É claro que tem importância, mas também envolve responsabilidade e inserção num determinado e específico contexto cultural, que é exatamente o contexto que o autor me causou a sensação de rejeitar, o contexto judaico-cristão, como hipócrita e redutor.
Noto que o sacerdote autor comete pelo menos duas impropriedades textuais, duas críticas “liberais” ao cristianismo. A primeira é afirmar que os judeus e cristãos consideraram “o amor no matrimônio como única forma legítima e aceitável para a vivência do amor”. Isso é pura e simplesmente, com todo o respeito da minha ignorância, falso. O matrimônio foi considerado, tão somente, como a única forma legítima e aceitável de viver a sexualidade genital, conjugal, mas não o amor tout court. Amor é bem mais que genitalidade, em, se a genitalidade pode ser vivida sem amor (como fazem os sapos, os cães e os que vivem, como consumidor ou fornecedor, a prostituição), certamente o amor pleno pode ser vivido sem expressão ativa de genitalidade, como Jesus o fez. Trata-se de um texto que, para o meu grau limitado de erudição, traz uma escassa clareza de conceitos, o que me pareceu inaceitável num livro que se propõe a ensinar-nos a ser melhores cristãos, mormente quando o autor se apresenta como sacerdote, biblista e teólogo. Senti-me indefeso e confuso.
Em seguida, ainda mantendo, para meu grau tosco de erudição, essa confusão entre o amor divino, o amor humano e a sexualidade, e, à maneira de “resposta” à objeção daquela sua amiga que o “acusara” de desconhecer o sexo e, portanto, ser incompetente para comentar o Cântico, ele afirma, num parágrafo que me soou obscuro e um tanto poético:
“Em todo caso, quer dizer que, como sacerdote e representante de uma religião, eu não posso ou não devo ou ainda não me convém experimentar aquilo que é o elemento constitutivo mais básico, não só da vida humana, mas também da própria vida divina? O que significa tudo isso? Na verdade, na reação dessa amiga, não vejo nada de pessoal. Porém, estarrecido, constato séculos e séculos de uma dicotomia, de um corte entre a divindade e a humanidade, e é justamente isso que me deixa muitíssimo preocupado”.
Bom, eu não sou culto o suficiente para entender sem ambiguidades um parágrafo assim. Será que o sacerdote está equiparando sexo e amor, e, mais ainda, levando a sexualidade ao nível de “elemento constitutivo mais básico, não só da vida humana, mas também da própria vida divina?” Seremos todos nós freudianos, daqueles que acham que a pulsão sexual é um deus, ou o fundamento básico da vida humana? Será que o autor do texto está insinuando que reconhece que, sem o amor sexual, o homem não pode comentar o Cântico, mas veladamente gaba-se da sua própria experiência nesse campo? Certamente não é isso, mas a forma com que este texto está redigido permitiu-me, na minha simploriedade, chegar a essa conclusão.
Creio que não é difícil para outros, tão simplórios quanto eu, evitar adotar a mesma conclusão confusa, e sentir-se, como eu, apenas um ultrapassado e inculto seguidor de uma Igreja moralista, dicotomista e ultrapassada, e o autor, com toda a sua erudição e vanguarda, como um destemido profeta de uma nova era de sexualidade plena e mística. Tudo isso, é claro, é somente a minha própria visão distorcida, mero leigo despreparado frente a um sacerdote biblista renomado publicado por uma das maiores casas editoras católicas do mundo.
O Cântico é maravilhoso. Ele tem imensas dificuldades exegéticas, e deve, é claro, ser lido de um modo não-moralista. Refiro-me, é claro, à melhor conotação da expressão “moralista”, vale dizer, moralismo como farisaísmo de quem vê as regras morais como exterioridades. Porque creio que temos uma moral, a moral cristã, e ter e viver uma moral não significa ser moralista, muito ao contrário. Portanto, toda vez que imagino que um exegeta está insinuando que somente posso entender determinado texto bíblico se renunciar ao meu próprio cristianismo católico, fico com uma tremenda pulga atrás da orelha.
Mas o Cântico não é amoral, e está inserido num cânon judaico-cristão, não, como eu entendi da proposta do livro, numa moldura hippie pós-freudiana. Vou rezar mais para tentar ler melhor a Bíblia, embora às vezes eu tenha a sensação, depois de ler este livro, de que rezar pode não ser a melhor maneira de conversar com Deus, pois o “amor”, nesse contexto dúbio que o autor coloca, pode ser melhor definido, como ele mesmo faz, como “a faísca que brilha desde aquele momento em que um espermatozóide se encontrou com um óvulo, e daí surgimos todos e cada um de nós”. O autor prossegue:
“Nossa vida, queiramos ou não, gostemos ou não – se resume na questão básica de amar ou não amar, de sermos ou não cúmplices desse universal mistério da vida”.
E, num texto ainda mais fora do meu alcance iletrado, ele afirma:
“Fomos criados para o amor e apenas no amor nos sentiremos plenamente realizados. De qual modo viveremos o amor, porém, é outra questão – aliás, questão de pura criatividade. Não se trata propriamente de criarmos o amor, mas de deixar que o amor crie nosso viver, pois o amor é, em sua própria essência, o grande inventor da vida. E não tenhamos medo de repetir as velhas fórmulas, porque isso jamais acontecerá. Mesmo que nós todos tenhamos nas mãos os mesmos ingredientes, o modo de cada um amar e, portanto, de viver, será único e singular”.
Desculpe, meu desconhecido sacerdote e autor de tão erudito livro. Meu modo de viver não me parece singular; para mim, o amor é plural, e minha vida não está escondida numa “faísca” que saltou quando o espermatozóide do meu pai encontrou-se com o óvulo de minha mãe, quem sabe se numa transa fortuita e entediante. A minha vida está escondida em Jesus, como me adverte São Paulo (Colossenses 3, 3), e é para ela que me ordeno, integralmente, inclusive a minha sexualidade. Não entendi a mensagem do livro, mas meu desconforto decorre de que não reconheço, nessa obscuridade, a voz do meu pastor, que é a voz do mesmo Jesus de sempre, João 10, 14.
Eu continuo muito angustiado quando vou numa livraria católica. Soube, estes dias, por um dos vendedores de uma delas, que um dos livros mais vendidos ali chama-se “Outro Cristianismo é Possível”. Qual seria esse “outro cristianismo”, eu não sei, nem sou erudito o suficiente para saber, me parece. Mas dá quase uma consciência pesada, nessas livrarias, estar satisfeito com este cristianismo mesmo, o cristianismo católico, aquele que acredita que Jesus não muda e que as portas do inferno não prevaleceram, em tempo algum, contra a Igreja.
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terça-feira, 8 de fevereiro de 2011
São Paulo e a separação entre religião e estado
Não há filosofia desencarnada. Um filósofo sempre dispõe, para o seu uso, dos conceitos, instrumentais e linguagem que, de certo modo, são correntes no seu tempo. Assim, não é de estranhar que Descartes, tendo marcado o advento da chamada “filosofia moderna”, tivesse que se valer do instrumental linguístico escolástico para expor suas próprias ideias. Aliás, sabe-se que boa parte da filosofia, desde o século XIX, dedica-se exatamente a estudar isso: a relação íntima entre filosofia e linguagem, que alguns chegaram – como parece ser o caso dos neopositivistas – a defender como sendo um caso de identidade, não de relação. Não parece ser assim: mal comparando um filósofo a um carpinteiro, uma mesa bem-feita possui em si mais do que o simples uso das ferramentas de marcenaria mais perfeitas – há a habilidade de quem as usa. Assim, além da limitação temporal, do “ser aí” do filósofo (como diria Heidegger), há sempre algo em seu pensamento que transcende o seu tempo, e isso o faz filósofo. Em muitos casos, diríamos, essa transcendência da palavra filosofante se dá no interior da própria “figura” histórica em que o filósofo está inserido (para usar um modo de falar hegeliano). Seria uma transcendência relativa. Em alguns casos, no entanto, parece haver uma transcendência incondicionada, uma abertura da palavra ao eterno, ao transcendente absoluto, que transforma aquela palavra em algo valioso para todos os tempos e lugares, um rompimento do “ser aí” para alcançar um valor permanente no sentido do que está sendo dito. Nesses momentos, em que a razão humana bordeja o logos, ou o filósofo passa a acreditar-se como divino em si mesmo, capaz de sintetizar em sua mente o desenvolvimento da história rumo ao total, ou então surge um profeta – aquele que, tendo vislumbrado a verdade, reconhece-a alheia a si mesmo, mas quer-se fazer amigo dela. O profeta é aquele que sabe que não é a luz, mas dá testemunho da luz.
O inegável é que o filosofar relaciona-se sempre, ao menos quanto à sua possibilidade de expressão, aos instrumentos de pensamento e expressão disponíveis. Se essa relação, como dissemos atrás, é de identidade ou de instrumentalidade, não discutiremos aqui. A ideia é outra, e estas palavras são apenas introdução para o exercício que quero propor.
O exercício é abordar a Bíblia sob um ponto de vista da teoria geral do Direito e do Estado. Sob este enfoque, perquirir: qual a relação entre a noção bíblica de “lei” e a atual teoria constitucional, e se a Torah, construída em torno da figura de Moisés, pode ser vista como uma “constituição do Estado de Israel” pré-cristão. É apenas um exercício, por isso não pretendo aprofundar-me nos aspectos mais técnicos da história do Reino de israel, nem nos aspectos propriamente religiosos da Bíblia como palavra de Deus ou da própria formação do cânon. Pretendo apenas propor uma abordagem diferente, diversa, fazer pensar um pouco, controverter, questionar, usando uma doce irresponsabilidade acadêmica própria dos que não pertencem a nenhuma academia.
Dado o Estado de Israel pré-cristão, imaginemo-nos, anacronicamente, procurando os elementos que justificam, para nós, filosoficamente, um Estado, em sua concepção moderna. Cabe buscar, portanto, dentro da visão mosaica de estado (que, digamos, tem sido eficiente por milênios, enquanto o Estado moderno parece fadado às crises sucessivas, incapaz da menor estabilidade) uma antropologia, um poder constituinte, uma constituição, um sistema judicial, uma teoria das normas e um aparato estatal. Que tipo de fundamento seria esse?
Bom, encontraríamos, logo, no Gênesis, notadamente nos primeiros onze capítulos, um impressionante tratado filosófico-antropológico. Perdemos muito tempo discutindo a historicidade desses capítulos, tanto quanto, talvez, daqui a três mil anos, após uma série de catástrofes que viessem a destruir a nossa própria civilização, os estudiosos de uma outra civilização estivessem discutindo se os contemporâneos de Rousseau realmente acreditavam na historicidade de sua descrição de uma vida pré-social do “bom selvagem” como uma realidade histórica concreta, ou se nós miticamente acreditávamos na historicidade de uma guerra de todos os homens contra uns lobisomens malvados, a partir da noções de “guerra de todos contra todos” e da afirmação de que o “homem é o lobo do homem”, presentes na obra de Hobbes. Ambas as imagens expressam o pensamento dos seus autores a partir das limitações linguísticas e filosóficas dos seus tempos. Mas estou certo de que nem Hobbes estava pensando que lobisomens existiam, nem Rousseau, que alguém viveu efetivamente no estado de asseidade que ele descreve como próprio do homem realmente livre. No entanto, estou certo de que nem eles, nem os homens do seu tempo, tinham as suas descrições como míticas ou fantasiosas. Essas imagens expressavam com precisão o conteúdo do pensamento dos seus autores. Eram, portanto, verdadeiras, no sentido filosófico de que correspondiam à intencionalidade daqueles que a geraram.
Neste sentido, proponho uma leitura do Gênesis similar à leitura que se faz das filosofias dos grandes filósofos modernos: uma antropologia que permitiu ao homem de então entender-se, explicar a si, à sua sociedade, fundamentar seu próprio direito e seu estado, sua ciência e sua mundividência, na mesma medida em que o atual paradigma filosófico o faz pelo mundo contemporâneo. Tão histórica quanto o “rei das selvas” de Rousseau, ou os “lobisomens” de Hobbes. O paraíso seria tão real quanto a “Utopia” de Thomas More, e o pecado original teria pelo menos a mesma densidade da “mais valia” marxista.
O que descobrimos no Gênesis, utilizando essa técnica de leitura? Uma antropologia moderadamente otimista, claramente antropocentrista. Explico. Cercados por povos que adoravam aspectos da natureza, que temiam o mundo como superior às suas forças e tinham o caos como subjacente à realidade, os escritores israelitas afirmam a inteligência fundamental, transcendente e independente do mundo, como sua causa. Os mitos de origem existentes nas sociedades que circundavam os israelitas costumavam descrever os deuses lutando com um caos que lhes é externo e igualmente subsistente – portanto deles independente. Há, pois, no fundo de tudo, um caos primordial, para esses povos. Veja-se, a esse respeito, o mito babilônico do Enuma Elish, no qual os deuses lutam com o caos primordial para conceder-lhe ordem. Essa ordem, no entanto, é sempre precária e temporária, como que superposta ao caos, sem eliminar-lhe. O mundo está construído como uma casquinha de ordem por sobre a ininteligibilidade, e não é garantido que os deuses sempre vençam a desordem. Num mundo assim, a inteligibilidade da vida repousa nas mãos daqueles que têm força para ajudar os deuses a manter o caos controlado e a ordem estabelecida, ou seja, os que detêm o poder público, o poder do Estado, devem ser cultuados como deuses ou como aliados dos deuses, e sua queda ou derrota restabelece o caos original. Dá para imaginar que tipo de Estado pode sair daí.
Estude-se o mito egípcio de Ísis e Osíris, seu conteúdo agônico e sua tensão dramática. O esforço e a precariedade do equilíbrio entre seus deuses. Não há nada assim no relato fundacional bíblico.
O relato bíblico começa com outro tom. “No princípio, Deus criou o céu e a terra.” Note-se quão tranquilizador pode ser esse pequeno versículo, comparado à ameaça de um caos primordial que se opõe permanentemente ao precário poder dos deuses que o mantêm contido para permitir a vida humana. Aqui, se está ensinando que a inteligência precede ao caos e dá origem a todas as coisas por um ato concreto de vontade. Nenhuma luta, nenhuma precariedade, nenhuma ameaça permanente à subsistência da inteligibilidade da realidade, porque, mesmo por sobre a aparente desordem que parecemos contemplar naqueles fenômenos naturais aparentemente caóticos, que superam a nossa compreensão (enchentes fatais, tempestades, enxurradas, correntezas), normalmente relacionados com as águas, somos tranquilizados ao saber que o sopro de Deus sobrepaira as águas.
O relato prossegue com duas consequências práticas claras: As coisas foram feitas por Deus para os homens, e portanto não devem ser adoradas, mas utilizadas com respeito. O homem é o ápice da criação, que recebeu todas as coisas, não como proprietário, mas como usufrutuário. Estão lançadas as bases de uma antropologia consistente, num relato de página e meia que, utilizando-se da linguagem filosófica disponível, responde adequadamente aos questionamentos então pertinentes. Esses mesmos questionamentos têm que ser respondidos ainda hoje, para se criar uma base comum de vida social possível. Os iluministas criaram vários mitos em substituição: já citamos Rousseau e Hobbes, mas a deificação do poder constituinte por Sieyes, na revolução Francesa e a gnose do comunismo científico, com sua construção de um paraíso terrestre sem Estado também podem ser citados. Eu diria que o direito constitucional moderno está basicamente lastreado numa tentativa de substituir o fundamento mosaico por um fundamento “laico” como sustentáculo do estado e de sua constituição.
Os relatos de origem mais aceitos, atualmente, são o Big Bang (com sua variante do encolhimento-expansão eternos) e o mito da evolução baseada na seleção impessoal dirigida à maior eficiência. Não discuto o seu valor científico, porque ambos são, tanto como o bíblico, o rousseauniano ou o hobbesiano, insuscetíveis em si mesmos de prova científica. Não há ciência sobre a origem de tudo, porque isso pressuporia uma origem anterior à própria origem para a ciência, o que é uma contradição em termos. Só para apimentar, eu diria que, para o big bang ser um mito de origem adequado, ele teria que explicar se dois mais dois sempre deu quatro, ou se o dois foi se expandindo desde um ponto infinitesimal até o seu valor atual cujo dobro é quatro. A eventual explicação da conformação atual da matéria, que ele parece prover, não explica, no entanto, a própria possibilidade de explicação. É um mito mais insatisfatório, do ponto de vista racional, do que o mito bíblico, porque é menos “original”, no sentido de que deixa fora de si toda a própria racionalidade que aparentemente o explica.
Tampouco o mito da evolução tem essa consistência, não só pelos mesmos motivos que invalidam o big bang, quanto por violar a segunda lei da termodinâmica, a entropia. Não há explicação, nesse mito, para o fato de que o acaso, que é a divindade dessa religião, a rigor não é algo, mas a falta de algo, possa fazer resultar numa maior organização das coisas. Aliás, tampouco se explica de onde vêm, nesse mito, as noções de organização e eficiência, que estão contidas na própria noção de evolução. Onde está o critério que permite julgar se algo é mais eficiente e organizado do que outro algo? É pressuposto? É arbitrário? Os evolucionistas parecem presos numa tautologia: se algo existe, é mais eficiente do que algo que não existe, mas se só se pode conhecer se algo é mais eficiente quando essa coisa exista enquanto outras não existem.
No evolucionismo, a consequência é a prova do antecedente, e vice-versa. Seria como estabelecer a diferença entre um estupro e um matrimônio a partir da existência de prole: um matrimônio sem prole seria um estupro, um estupro que resulta prole, um matrimônio. Ou então pelas patéticas tentativas de explicar a religião a partir da evolução: uma vez que a religião existe, ela deve ter favorecido a evolução, logo ela deve ser explicável a partir da evolução – os religiosos levavam vantagem sobre os agnósticos, não porque Deus existisse, mas porque eram mais gregários e podiam defender-se melhor. E assim qualquer fato atualmente existente é explicado retroativamente: os cabelos loiros existem, logo devem ter sido uma vantagem evolutiva. Os carecas existem, logo devem apresentar alguma vantagem evolutiva. Os morenos existem, logo devem apresentar alguma vantagem evolutiva. Os palitos de dente existe, enfim, acho que já ficou claro o argumento. Algo existe, então resta apenas criar uma historinha plausível sobre que vantagem evolutiva esse “algo” apresentou frente ao que não existe. E assim qualquer fato é explicado retroativamente por essa “ciência” da evolução: pode tentar. Desde os churrascos gaúchos ao surf, desde os cães chow-chow à Turma da Mônica: tudo pode ser explicado como existente a partir de uma vantagem evolutiva a algum grupo de seres vivos no passado, e isso depende apenas de uma boa veia literária e alguma criatividade. Mas não é ciência de verdade. Embora aparentemente qualquer livro escrito a partir de uma visão de mundo dessas vende como água nas livrarias de Shopping Center. E influencia muita gente poderosa.
Como explicação das microvariações biológicas a teoria da adaptação por seleção natural parece ser uma hipótese plausível. Como mito de fundação social, no entanto, o relato evolucionista é lamentável; no limite, gera o nazismo, ou a moderna eugenia abortista. Um humanismo evolucionista é uma contradição em termos, tanto quanto um ambientalismo evolucionista: se a lei da sobrevivência do mais apto é, de fato, a lei impessoal que rege o universo, o mais apto sobreviverá por seus próprios méritos, não pela luta dos ambientalistas nem dos humanistas – que, aliás, em última instância, só podem estar lutando por si mesmos, pela própria sobrevivência, e se não são suicidas são hipócritas. Foram muito bem retratados na canção dos Titãs, resposta definitiva a qualquer pretenso “ambientalismo evolucionista”, contraditório em termos:
“Oncinha pintada, zebrinha listrada, coelhinho peludo,
Vão se foder,
porque aqui na face da terra só bicho escroto
é que vai ter..”
Ora, se o evolucionismo é a resposta definitiva, então não há sentido em proteger as espécies que estão sumindo: elas darão lugar a espécies mais evoluídas, mais bem adaptadas ao ambiente que mudou. E viva, nesse contexto, a extinção em massa dos bichos “ultrapassados” - incluídos os ripongas ambientais, que serão superados pelos roqueiros de Heavy Metal...
A diferença entre os relatos de origem contemporâneos e o bíblico, além da evidente falta de instrumentais de linguagem de que dispunha o autor daquele frente à sofisticação dos autores destes últimos, é a abertura, no caso do Gênesis, para uma causa última dotada de atributos pessoais. Os relatos contemporâneos são fechados, como o mundo-sanfona do big-bang, ou sujeitos a forças transcendentes impessoais, como a “seleção natural” da evolução. Assim, o critério de plausibilidade, para os pensadores modernos, de um relato de origem, parece ser a exclusão de uma causa final transcendente e pessoal, muito mais do que a consistência interna ou a capacidade de explicação. Apenas por esse motivo o relato bíblico, apesar de mais amplo e internamente muito mais consistente, é considerado mítico não simplesmente por causa da linguagem, mas bem mais porque envolve, como fundamento último, um ser pessoal. Em todo caso, mais consistente e plausível, como fundamento, do que os mitos impessoais que são tão bem tolerados na Academia moderna, apesar de muito mais inconsistentes.
Voltemos a Moisés e sua teoria constitucional bíblica. Estabelecido o relato de origem e a visão de mundo e de homem – a antropologia do Gênesis, nos capítulos 1 a 3 - seria necessário estabelecer uma “teoria das normas”. Por que a lei é necessária? Por que precisamos de um Estado? Não são perguntas menos importantes, hoje, do que eram então.
O pensamento contemporâneo parece ter desistido de dar resposta a essa pergunta. Vemos, por exemplo, a popularidade do pensamento kelseniano, que renuncia à discussão da questão fundamental a respeito de porque existem normas, para estabelecer como únicas discussões válidas as que envolvem o “como” são as normas. Essa é uma limitação pertinente ao campo da técnica jurídica, mas absurda no campo filosófico. A pergunta sobre “porque” existem normas nunca poderá ser respondida positivamente; nem por isso é menos pertinente. Normalmente é uma pergunta de uma criança de seis anos, não a pergunta de um advogado de sessenta. Mas as crianças de seis anos filosofam, os advogados de sessenta advogam.
O fato é que há algo que não flui perfeitamente na convivência do homem com o outro e com o meio que o circunda. Leões nascem sendo leões. Formigas nascem sabendo o seu lugar junto às outras formigas. O homem parece inclinado ou à auto-destruição ou à destruição do outro ou do seu entorno. A sobrevivência e a convivência, que são um dado para toda a natureza, para o homem são sempre construtos.
Eis a fonte de toda cultura, de toda literatura, de toda ciência, de toda filosofia e, principalmente, naquilo que mais nos interessa, de todo o direito. Várias explicações foram dadas para esse fenômeno. Já citei Hobbes e Rousseau, poderia citar Hegel e Marx, poderia citar, como o farei, o Gênesis.
Essa inclinação à destruição é chamada, na teoria normativa bíblica, de “pecado original”. Trata-se da capacidade que tem o homem de questionar sua própria origem, capacidade, aliás, que é, de modo absoluto, exclusivamente humana, aliada à incapacidade de alcançar uma resposta satisfatória. O ser que não pergunta não é homem. O ser que sabe a resposta, tampouco. Essa capacidade é tão definidora da condição humana que, se houvesse um outro ser além do “homo sapiens” capaz de fazer tais perguntas e incapaz de dar a resposta adequadamente, teria que ser incluído na definição de “homem”. Vale dizer, não é a especificidade biológica que faz do “homo sapiens” um homem, mas a potência, nem sempre necessariamente atualizada, de fazer esta pergunta.
Essa defasagem entre a capacidade de fazer a pergunta existencial e a capacidade de obter positivamente a resposta definitiva é exatamente o que a linguagem bíblica descreve como pecado original. A existência dessa condição é indiscutível, portanto é indiscutível a própria existência do pecado original. Fazer a pergunta é algo próprio à natureza humana. Obter a resposta, não.
Duas saídas apresentam-se, filosoficamente. Ou a resposta está oculta em algum lugar da natureza humana ou está fora. Não dá para negar é que a resposta existe, porque uma pergunta que não levasse a uma resposta não seria uma pergunta, seria uma contradição em si mesma.
Essa é a pergunta final. Segundo a doutrina judaico-cristã, em algum momento o homem duvidou que a resposta estivesse em Deus, como era óbvio no início, e resolveu buscar a resposta em si mesmo, na natureza ou nas forças incorpóreas que o circundam. Esse é o pecado original. Com o afastamento que o homem causou, a resposta ficou obscura, ocultou-se definitivamente, porque o homem desviou os olhos da sua única fonte. Comeu o fruto. Desde então, a obtenção da resposta final foi chamada, na tradição judaico-cristã, de “salvação”. Todas as correntes gnósticas, como o cientismo, o positivismo, o orfismo e suas variantes espíritas, só para citar algumas, afirmam que a resposta está escondida no homem em algum lugar, vale dizer, que o homem é capaz de salvar a si mesmo, e somente a ignorância da resposta que já possui o leva à perdição. Neste caso, toda perdição é temporária, porque quando o homem finalmente atinar com a resposta, seja por ter reencarnado suficientemente para descobri-la, seja por ter encontrado cientificamente a cura para os limites humanos, curará, a seu turno, a ignorância dos outros, tanto quanto ainda os possa encontrar, ou na medida em que os encontre. Daí o congelamento de cadáveres ou o mito do monstro de Frankenstein atualizado pelas pesquisas com reimplantação de DNA em embriões. Outras correntes, mais sociais, como o democratismo liberal e o comunismo, colocaram a resposta na vontade do povo, entendida, no democratismo, como a “vontade soberana da maioria” e, no comunismo, como a vontade inexorável do proletariado. Tais seriam, portanto, as forças salvíficas em tais correntes, e, portanto, as suas divindades, sobre as quais erigem o seu Estado.
Para os que creem na resposta gnóstica, não há um fundamento, no ser humano, fora dele mesmo, seja do homem como indivíduo, como nas correntes mais solipsistas como a de Nietsche e Sartre, seja do homem como fundamento de direito, como na autonomia kantiana, seja nas mais sociais, como as hegelianas de direita ou de esquerda, especialmente os marxistas. Assim, toda norma social é, alternativamente, ou uma reabilitação do homem consigo mesmo, seja pela concessão desconfortável de parte da sua individualidade ao todo, como creem os hobbesianos ou os rousseaunianos, seja pela submissão dos outros à sua própria vontade, como creem os discípulos de Maquiavel ou Nietsche, ou uma reabilitação incondicional da relação do homem com o outro homem, seja pela submissão incondicional à “mão invisível do mercado”, num extremo ou, no outro, pela coletivização dos meios de produção. No meio, neste último caso, encontra-se o democratismo, no qual a opinião de cada um não importa, senão a opinião circunstancial de uma maioria impessoal, na qual se esconde quantitativamente a resposta salvífica – o velho ditado “vox populi, vox dei”.
Daí porque todas as correntes gnósticas desenvolveram uma visão de uma norma jurídica que é, em si mesma, salvífica. Vale dizer, o disciplinamento normativo da conduta humana, para os gnósticos, tem como fundamento o caminho para a salvação humana, que passa pela salvação individual, para alguns, ou pela supressão do indivíduo em prol de uma salvação coletiva, para outros tantos. Ou a convivência humana é, portanto, ou um estorvo para que o indivíduo possa obter a sua salvação, a sua própria glorificação absoluta, transcendendo os seus limites individuais para tornar-se um super-homem ou um super-príncipe, caso em que o ordenamento tenderá a nulificar o valor do outro e a superestimar o valor do poderoso (gerando o totalitarismo, que contemporaneamente conhecemos tão bem), ou, alternativamente, a resposta salvífica se esconde somente no todo ou na maioria, e o indivíduo tem pouco ou nenhum valor para o direito.
No caso do cientismo, trata-se de negar valor a qualquer busca de salvação fora da ciência, desqualificando como desprezível qualquer “conhecimento” que não seja salvífico, vale dizer, que não seja o desenvolvimento de técnicas de sobrevivência ou de imortalidade mediante a investigação empírica e metódica da realidade material. Vale dizer, quaisquer indivíduos que não estejam empenhados nesta busca estão mergulhando os outros ainda mais na ignorância, ou seja, estão atrapalhando. Podem ser tolerados como aberrações passageiras, como defendia Comte alegando que são “crianças” religiosas ou “adolescentes” metafísicos atávicos atrasando os “adultos” cientistas, ou podem ser eliminados como estorvos, descaminhos evolutivos, como fizeram os nazistas e os comunistas.
Quer dizer, ter o poder, para qualquer corrente gnóstica, é saber onde está a resposta. Conhecimento é poder. Quem nunca ouviu essa frase? Daí que, neste caso, o próprio homem (coletivamente falando) ou um homem específico, um “iluminado”, é o salvador, e qualquer ordem jurídica se apresenta como o disciplinamento para a obtenção da resposta. Descumprir a lei é ser um inimigo do homem, quer dizer, ser um obscurantista. Descumprir a lei é perder-se e perder a possibilidade de conhecer a salvação.
A doutrina do Gênesis é diferente. Sendo Deus o Outro, o transcendente, e o homem a sua criatura, essencialmente boa, ainda que decaída por culpa própria, a resposta à pergunta pelo sentido último já não é alcançável apenas pelos esforços humanos. A razão humana pode alcançar o conhecimento de que há um deus, e de que há uma resposta salvífica, mas jamais saberá com certeza absoluta como é que Deus é em si mesmo, nem qual o conteúdo da resposta. Seria capaz de reconhecer uma resposta verdadeira, mas não de descobri-la, aceitá-la ou vivenciá-la sem ajuda divina. Seria necessário que o próprio Deus se revelasse e nos fornecesse a resposta, mas a rebeldia que nos afastou dele por decisão nossa nos impediria até mesmo de receber essa resposta. Assim, o fundamento da norma jurídica é a restauração da amizade original entre o homem e Deus, perdida por culpa do homem e requisito para a obtenção da salvação que está em Deus. Basicamente, cumprir a lei estatal heterônima ou permanecer longe de Deus e não se salvar. Isso parece uma tremenda imbecilidade para os nossos ouvidos pós-kantianos, acostumados a encontrar em nós mesmos o fundamento das normas, mas, no fundo, faz sentido: quando buscamos em nós mesmos o fundamento das normas, estamos apenas colocando as nossas pessoas no lugar do Senhor Deus de Moisés. Não há uma grande mudança de estrutura, senão uma alteração de lugares dentro de uma mesma estrutura.
Assim, a antropologia bíblica continua servindo de moldura para que os modernos a preencham com aquilo que considerarem como seu próprio deus, com a única condição de que esse deus seja impessoal, e não o Deus de Abraão, Isaac e Jacó, ou o Pai de Jesus. É assim que o poder constituinte é o deus dos iluministas, e a religião (vale dizer, a projeção dos atributos ideais do homem num ser transcendente, como denunciava Feuerbach) o pecado original. É assim que a dialética histórica é o deus dos hegelianos, e a exploração de classes, o pecado original para os marxistas. É assim, que o indivíduo é o deus de Rousseau, e a sociedade, seu pecado original. A lista segue interminavelmente.
Hoje, há uma deificação do sexo: para algumas correntes virulentas, o estado somente é legítimo na exata medida em que promova o sexo livre, sem riscos e consequências, e torna-se ilegítimo quando, de algum modo, regula, ainda que remotamente, quaisquer condutas humanas que envolvam a maximização do prazer sexual. Por isso, viva os prostitutos e abaixo a família de papai e mamãe. Viva o aborto e abaixo os exames pré-natais. Viva a cirurgia transexual e abaixo a estabilidade matrimonial. Mas este é um processo ainda em curso, e por isso é mais difícil falar dele.
Existiria, então, alguma concepção de estado que não colocasse os fundamentos de sua legitimidade numa deidade e a submissão à legislação como salvação de um “pecado original”? Bom, nem nas correntes que surgiram do iluminismo, nem nos estados pós-modernos, nem no mundo muçulmano, nem mesmo nos países orientais com seus imperadores-deuses se pode encontrar algo assim. Somente um determinado grande pensador, na história da humanidade, estabeleceu um fundamento racional para uma desmistificação do estado e sua correta laicização: foi São Paulo de Tarso, especialmente na Carta aos Romanos e na Carta aos Gálatas. E o fez na exata linha apontada por Jesus. Explico.
A fala de Jesus, registrada em sua forma mais primitiva no Evangelho de Marcos (12, 13-17), com paralelos nos Evangelhos de Mateus (22, 15-22) e Lucas (20, 20-26), é a primeira grande manifestação, talvez na história da humanidade, da separação entre a fundamentação do Estado e o plano salvífico de Deus:
“E enviaram-lhe alguns dos fariseus e dos herodianos, para que o apanhassem nalguma palavra. E, chegando eles, disseram-lhe: Mestre, sabemos que és homem de verdade, e de ninguém se te dá, porque não olhas à aparência dos homens, antes com verdade ensinas o caminho de Deus; é lícito dar o tributo a César, ou não? Daremos, ou não daremos? Então ele, conhecendo a sua hipocrisia, disse-lhes: Por que me tentais? Trazei-me uma moeda, para que a veja. E eles lha trouxeram. E disse-lhes: De quem é esta imagem e inscrição? E eles lhe disseram: De César. E Jesus, respondendo, disse-lhes: Dai pois a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus. E maravilharam-se dele.”
Já não há, pois, identidade entre Deus e César. Já não há identidade possível entre divindades e impérios, entre deuses e ordenamentos jurídicos. Os ordenamentos jurídicos são necessários, porque os efeitos do “pecado original” ainda se fazem sentir. Mas já não são salvíficos para os cristãos, como o são para os judeus, muçulmanos, japoneses, gnósticos, iluminados e cientificistas em geral, ou seja, para todos os Estados não-cristãos ou pós-cristãos.
Esse mesmo pensamento foi melhor especificado por São Paulo, capítulo 3, 21 a 31. Transcrevo:
21 Mas, agora, sem o concurso da lei, manifestou-se a justiça de Deus, atestada pela lei e pelos profetas. 22 Esta é a a justiça de Deus pela fé em Jesus Cristo, para todos os fiéis (pois não há distinção; 23 com efeito, todos pecaram e todos estão privados da glória de Deus), 24 e são justificados gratuitamente por sua graça; tal é a obra da redenção, realizada em Jesus Cristo. 25 Deus o destinou para ser, pelo seu sangue, vítima de propiciação mediante a fé. Assim, ele manifesta a sua justiça; porque no tempo de sua paciência, ele havia deixado sem castigo os pecados anteriores. 26 Assim, digo eu, ele manifesta a sua justiça no tempo presente, exercendo a justiça e justificando aquele que tem fé em Jesus. 27 Onde está, portanto, o motivo de se gloriar? Foi eliminado. Por qual lei? Pela das obras? Não, mas pela lei da fé. 28 Porque julgamos que o homem é justificado pela fé, sem as observâncias da lei. 29 Ou Deus só o é dos judeus? Não é também Deus dos pagãos? Sim, ele o é também dos pagãos. 30 Porque não há mais que um só Deus, o qual justificará pela fé os circuncisos e, também pela fé, os incircuncisos. 31 Destruímos então a lei pela fé? De modo algum. Pelo contrário, damos-lhe toda a sua força.
Ao separar o plano contingente da convivência social, da necessária regulamentação estatal da conduta humana, do plano da salvação e da Graça, São Paulo nos deu a base filosófica para uma teoria consistente da separação entre Estado e deidade, entre Estado e salvação. O estado é necessário, e sua obediência é dever de todos. Mas nessa obediência encontra-se somente o fundamento para a boa convivência humana (sem dúvida necessária para a salvação, mas não suficiente) e não uma relação direta com a ordem divina. Veja-se a exortação firma de São Paulo quanto à necessidade de obedecer à ordem estatal:
1 Cada qual seja submisso às autoridades constituídas, porque não há autoridade que não venha de Deus; as que existem foram instituídas por Deus. 2 Assim, aquele que resiste à autoridade, opõe-se à ordem estabelecida por Deus; e os que a ela se opõem, atraem sobre si a condenação. 3 Em verdade, as autoridades inspiram temor, não porém a quem pratica o bem, e sim a quem faz o mal! Queres não ter o que temer a autoridade? Faze o bem e terás o seu louvor. 4 Porque ela é instrumento de Deus para teu bem. Mas, se fizeres o mal, teme, porque não é sem razão que leva a espada: é ministro de Deus, para fazer justiça e para exercer a ira contra aquele que pratica o mal. 5 Portanto, é necessário submeter-se, não somente por temor do castigo, mas também por dever de consciência. 6 É também por essa razão que pagais os impostos, pois os magistrados são ministros de Deus, quando exercem pontualmente esse ofício. 7 Pagai a cada um o que lhe compete: o imposto, a quem deveis o imposto; o tributo, a quem deveis o tributo; o temor e o respeito, a quem deveis o temor e o respeito.
Neste sentido, é claro que a autoridade humana é consentida por Deus, mas a ordem que ela estabelece não necessariamente é querida por Deus. No entanto, o fundamento da obediência, para São Paulo, não é a salvação pela lei, mas a constatação de fato da necessidade de uma ordem estatal, como realidade querida por Deus, para possibilitar a ordem e a convivência humana. Ocorre que essa estrutura não se confunde com o Reino de Deus, e se lastreia na contingência, transformando-se muitas vezes no anticristo. Obedeço porque Deus espera que eu seja obediente, mas não porque eu veja no governante uma figura divina, nem sequer seu mandatário direto, embora seu exercício de poder seja, sem dúvida, permitido por Deus em determinada configuração histórica. A relação entre o cidadão e o Estado é lastreada na necessidade de ordem, não de salvação. A salvação está no plano da graça, e somente lá. A obediência ao Estado é consequência, e pode representar (como de fato representa) a cruz necessária para chegar à salvação, mas não o caminho, nem a verdade, nem a vida. Assim ensina nosso grande jusfilósofo São Paulo:
“Então que é a lei? É um complemento ajuntado em vista das transgressões, até que viesse a descendência a quem fora feita a promessa; foi promulgada por anjos, passando por um intermediário. 20 Mas não há intermediário, tratando-se de uma só pessoa, e Deus é um só. 21 Portanto, é a lei contrária às promessas de Deus? De nenhum modo. Se fosse dada uma lei que pudesse vivificar, em verdade a justiça viria pela lei; 22 mas a Escritura encerrou tudo sob o império do pecado, para que a promessa mediante a fé em Jesus Cristo fosse dada aos que creem. 23 Antes que viesse a fé, estávamos encerrados sob a vigilância de uma lei, esperando a revelação da fé. 24 Assim a lei se nos tornou pedagogo encarregado de levar-nos a Cristo, para sermos justificados pela fé. 25 Mas, depois que veio a fé, já não dependemos de pedagogo, 26 porque todos sois filhos de Deus pela fé em Jesus Cristo. 27 Todos vós que fostes batizados em Cristo, vos revestistes de Cristo. 28 Já não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher, pois todos vós sois um em Cristo Jesus. 29 Ora, se sois de Cristo, então sois verdadeiramente a descendência de Abraão, herdeiros segundo a promessa.“
Obedecer à lei é necessário, mas não porque a lei salve. A salvação do homem está em outro lugar. “Meu Reino não é desse mundo”, disse Jesus (Jo 18, 36). No entanto, está nesse mundo, e não é desencarnado, porque o próprio Jesus se encarnou. Há, sem dúvida, uma normatividade estatal que é marcada pelo cristianismo, e os cristãos, como cidadãos, também devem ser sal da terra e luz do mundo (Mt 5, 13). O modo como os cristãos devem participar na construção de uma normatividade estatal está assim descrito por Jesus no capítulo 20 do Evangelho de Mateus:
“25 Jesus, porém, os chamou e lhes disse: Sabeis que os chefes das nações as subjugam, e que os grandes as governam com autoridade. 26 Não seja assim entre vós. Todo aquele que quiser tornar-se grande entre vós, se faça vosso servo. 27 E o que quiser tornar-se entre vós o primeiro, se faça vosso escravo. 28 Assim como o Filho do Homem veio, não para ser servido, mas para servir e dar sua vida em resgate por uma multidão.”
Quanto ao conteúdo ideal de uma normatividade estatal cristã, temos essa especificação em Mt 25:
31 Quando o Filho do Homem voltar na sua glória e todos os anjos com ele, sentar-se-á no seu trono glorioso. 32 Todas as nações se reunirão diante dele e ele separará uns dos outros, como o pastor separa as ovelhas dos cabritos. 33 Colocará as ovelhas à sua direita e os cabritos à sua esquerda. 34 Então o Rei dirá aos que estão à direita: - Vinde, benditos de meu Pai, tomai posse do Reino que vos está preparado desde a criação do mundo, 35 porque tive fome e me destes de comer; tive sede e me destes de beber; era peregrino e me acolhestes; 36 nu e me vestistes; enfermo e me visitastes; estava na prisão e viestes a mim. 37 Perguntar-lhe-ão os justos: - Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de comer, com sede e te demos de beber? 38 Quando foi que te vimos peregrino e te acolhemos, nu e te vestimos? 39 Quando foi que te vimos enfermo ou na prisão e te fomos visitar? 40 Responderá o Rei: - Em verdade eu vos declaro: todas as vezes que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a mim mesmo que o fizestes. 41 Voltar-se-á em seguida para os da sua esquerda e lhes dirá: - Retirai-vos de mim, malditos! Ide para o fogo eterno destinado ao demônio e aos seus anjos. 42 Porque tive fome e não me destes de comer; tive sede e não me destes de beber; 43 era peregrino e não me acolhestes; nu e não me vestistes; enfermo e na prisão e não me visitastes. 44 Também estes lhe perguntarão: - Senhor, quando foi que te vimos com fome, com sede, peregrino, nu, enfermo, ou na prisão e não te socorremos? 45 E ele responderá: - Em verdade eu vos declaro: todas as vezes que deixastes de fazer isso a um destes pequeninos, foi a mim que o deixastes de fazer. 46 E estes irão para o castigo eterno, e os justos, para a vida eterna.
Esta é a justiça que se espera de um cristão, e esta é a influência que ele exercerá no seu próprio Estado, todas as vezes em que puder influenciar na elaboração das leis. Mas ele sabe que a lei não é expressão de salvação divina, mas apenas regulação contingente da realidade humana. Por isso, é imperfeita. Somente o amor é perfeito, mas como ele ainda não se estabeleceu plenamente neste mundo irredimido, a lei humana é necessária. Mas não suficiente.
O perigo, portanto, é que o mundo contemporâneo esqueça tais sutilezas e volte a exigir dos cristãos que queimem incenso ao César que elegeram como imperador da sua própria ordem jurídica, seja esse César o proletário, a evolução, o sexo, a ciência ou o povo personificado. Seja esse incenso o cadáver de nossas crianças abortadas, os nossos votos de casamento ou a nossa voz política. Seremos os mártires da vez, então.
O inegável é que o filosofar relaciona-se sempre, ao menos quanto à sua possibilidade de expressão, aos instrumentos de pensamento e expressão disponíveis. Se essa relação, como dissemos atrás, é de identidade ou de instrumentalidade, não discutiremos aqui. A ideia é outra, e estas palavras são apenas introdução para o exercício que quero propor.
O exercício é abordar a Bíblia sob um ponto de vista da teoria geral do Direito e do Estado. Sob este enfoque, perquirir: qual a relação entre a noção bíblica de “lei” e a atual teoria constitucional, e se a Torah, construída em torno da figura de Moisés, pode ser vista como uma “constituição do Estado de Israel” pré-cristão. É apenas um exercício, por isso não pretendo aprofundar-me nos aspectos mais técnicos da história do Reino de israel, nem nos aspectos propriamente religiosos da Bíblia como palavra de Deus ou da própria formação do cânon. Pretendo apenas propor uma abordagem diferente, diversa, fazer pensar um pouco, controverter, questionar, usando uma doce irresponsabilidade acadêmica própria dos que não pertencem a nenhuma academia.
Dado o Estado de Israel pré-cristão, imaginemo-nos, anacronicamente, procurando os elementos que justificam, para nós, filosoficamente, um Estado, em sua concepção moderna. Cabe buscar, portanto, dentro da visão mosaica de estado (que, digamos, tem sido eficiente por milênios, enquanto o Estado moderno parece fadado às crises sucessivas, incapaz da menor estabilidade) uma antropologia, um poder constituinte, uma constituição, um sistema judicial, uma teoria das normas e um aparato estatal. Que tipo de fundamento seria esse?
Bom, encontraríamos, logo, no Gênesis, notadamente nos primeiros onze capítulos, um impressionante tratado filosófico-antropológico. Perdemos muito tempo discutindo a historicidade desses capítulos, tanto quanto, talvez, daqui a três mil anos, após uma série de catástrofes que viessem a destruir a nossa própria civilização, os estudiosos de uma outra civilização estivessem discutindo se os contemporâneos de Rousseau realmente acreditavam na historicidade de sua descrição de uma vida pré-social do “bom selvagem” como uma realidade histórica concreta, ou se nós miticamente acreditávamos na historicidade de uma guerra de todos os homens contra uns lobisomens malvados, a partir da noções de “guerra de todos contra todos” e da afirmação de que o “homem é o lobo do homem”, presentes na obra de Hobbes. Ambas as imagens expressam o pensamento dos seus autores a partir das limitações linguísticas e filosóficas dos seus tempos. Mas estou certo de que nem Hobbes estava pensando que lobisomens existiam, nem Rousseau, que alguém viveu efetivamente no estado de asseidade que ele descreve como próprio do homem realmente livre. No entanto, estou certo de que nem eles, nem os homens do seu tempo, tinham as suas descrições como míticas ou fantasiosas. Essas imagens expressavam com precisão o conteúdo do pensamento dos seus autores. Eram, portanto, verdadeiras, no sentido filosófico de que correspondiam à intencionalidade daqueles que a geraram.
Neste sentido, proponho uma leitura do Gênesis similar à leitura que se faz das filosofias dos grandes filósofos modernos: uma antropologia que permitiu ao homem de então entender-se, explicar a si, à sua sociedade, fundamentar seu próprio direito e seu estado, sua ciência e sua mundividência, na mesma medida em que o atual paradigma filosófico o faz pelo mundo contemporâneo. Tão histórica quanto o “rei das selvas” de Rousseau, ou os “lobisomens” de Hobbes. O paraíso seria tão real quanto a “Utopia” de Thomas More, e o pecado original teria pelo menos a mesma densidade da “mais valia” marxista.
O que descobrimos no Gênesis, utilizando essa técnica de leitura? Uma antropologia moderadamente otimista, claramente antropocentrista. Explico. Cercados por povos que adoravam aspectos da natureza, que temiam o mundo como superior às suas forças e tinham o caos como subjacente à realidade, os escritores israelitas afirmam a inteligência fundamental, transcendente e independente do mundo, como sua causa. Os mitos de origem existentes nas sociedades que circundavam os israelitas costumavam descrever os deuses lutando com um caos que lhes é externo e igualmente subsistente – portanto deles independente. Há, pois, no fundo de tudo, um caos primordial, para esses povos. Veja-se, a esse respeito, o mito babilônico do Enuma Elish, no qual os deuses lutam com o caos primordial para conceder-lhe ordem. Essa ordem, no entanto, é sempre precária e temporária, como que superposta ao caos, sem eliminar-lhe. O mundo está construído como uma casquinha de ordem por sobre a ininteligibilidade, e não é garantido que os deuses sempre vençam a desordem. Num mundo assim, a inteligibilidade da vida repousa nas mãos daqueles que têm força para ajudar os deuses a manter o caos controlado e a ordem estabelecida, ou seja, os que detêm o poder público, o poder do Estado, devem ser cultuados como deuses ou como aliados dos deuses, e sua queda ou derrota restabelece o caos original. Dá para imaginar que tipo de Estado pode sair daí.
Estude-se o mito egípcio de Ísis e Osíris, seu conteúdo agônico e sua tensão dramática. O esforço e a precariedade do equilíbrio entre seus deuses. Não há nada assim no relato fundacional bíblico.
O relato bíblico começa com outro tom. “No princípio, Deus criou o céu e a terra.” Note-se quão tranquilizador pode ser esse pequeno versículo, comparado à ameaça de um caos primordial que se opõe permanentemente ao precário poder dos deuses que o mantêm contido para permitir a vida humana. Aqui, se está ensinando que a inteligência precede ao caos e dá origem a todas as coisas por um ato concreto de vontade. Nenhuma luta, nenhuma precariedade, nenhuma ameaça permanente à subsistência da inteligibilidade da realidade, porque, mesmo por sobre a aparente desordem que parecemos contemplar naqueles fenômenos naturais aparentemente caóticos, que superam a nossa compreensão (enchentes fatais, tempestades, enxurradas, correntezas), normalmente relacionados com as águas, somos tranquilizados ao saber que o sopro de Deus sobrepaira as águas.
O relato prossegue com duas consequências práticas claras: As coisas foram feitas por Deus para os homens, e portanto não devem ser adoradas, mas utilizadas com respeito. O homem é o ápice da criação, que recebeu todas as coisas, não como proprietário, mas como usufrutuário. Estão lançadas as bases de uma antropologia consistente, num relato de página e meia que, utilizando-se da linguagem filosófica disponível, responde adequadamente aos questionamentos então pertinentes. Esses mesmos questionamentos têm que ser respondidos ainda hoje, para se criar uma base comum de vida social possível. Os iluministas criaram vários mitos em substituição: já citamos Rousseau e Hobbes, mas a deificação do poder constituinte por Sieyes, na revolução Francesa e a gnose do comunismo científico, com sua construção de um paraíso terrestre sem Estado também podem ser citados. Eu diria que o direito constitucional moderno está basicamente lastreado numa tentativa de substituir o fundamento mosaico por um fundamento “laico” como sustentáculo do estado e de sua constituição.
Os relatos de origem mais aceitos, atualmente, são o Big Bang (com sua variante do encolhimento-expansão eternos) e o mito da evolução baseada na seleção impessoal dirigida à maior eficiência. Não discuto o seu valor científico, porque ambos são, tanto como o bíblico, o rousseauniano ou o hobbesiano, insuscetíveis em si mesmos de prova científica. Não há ciência sobre a origem de tudo, porque isso pressuporia uma origem anterior à própria origem para a ciência, o que é uma contradição em termos. Só para apimentar, eu diria que, para o big bang ser um mito de origem adequado, ele teria que explicar se dois mais dois sempre deu quatro, ou se o dois foi se expandindo desde um ponto infinitesimal até o seu valor atual cujo dobro é quatro. A eventual explicação da conformação atual da matéria, que ele parece prover, não explica, no entanto, a própria possibilidade de explicação. É um mito mais insatisfatório, do ponto de vista racional, do que o mito bíblico, porque é menos “original”, no sentido de que deixa fora de si toda a própria racionalidade que aparentemente o explica.
Tampouco o mito da evolução tem essa consistência, não só pelos mesmos motivos que invalidam o big bang, quanto por violar a segunda lei da termodinâmica, a entropia. Não há explicação, nesse mito, para o fato de que o acaso, que é a divindade dessa religião, a rigor não é algo, mas a falta de algo, possa fazer resultar numa maior organização das coisas. Aliás, tampouco se explica de onde vêm, nesse mito, as noções de organização e eficiência, que estão contidas na própria noção de evolução. Onde está o critério que permite julgar se algo é mais eficiente e organizado do que outro algo? É pressuposto? É arbitrário? Os evolucionistas parecem presos numa tautologia: se algo existe, é mais eficiente do que algo que não existe, mas se só se pode conhecer se algo é mais eficiente quando essa coisa exista enquanto outras não existem.
No evolucionismo, a consequência é a prova do antecedente, e vice-versa. Seria como estabelecer a diferença entre um estupro e um matrimônio a partir da existência de prole: um matrimônio sem prole seria um estupro, um estupro que resulta prole, um matrimônio. Ou então pelas patéticas tentativas de explicar a religião a partir da evolução: uma vez que a religião existe, ela deve ter favorecido a evolução, logo ela deve ser explicável a partir da evolução – os religiosos levavam vantagem sobre os agnósticos, não porque Deus existisse, mas porque eram mais gregários e podiam defender-se melhor. E assim qualquer fato atualmente existente é explicado retroativamente: os cabelos loiros existem, logo devem ter sido uma vantagem evolutiva. Os carecas existem, logo devem apresentar alguma vantagem evolutiva. Os morenos existem, logo devem apresentar alguma vantagem evolutiva. Os palitos de dente existe, enfim, acho que já ficou claro o argumento. Algo existe, então resta apenas criar uma historinha plausível sobre que vantagem evolutiva esse “algo” apresentou frente ao que não existe. E assim qualquer fato é explicado retroativamente por essa “ciência” da evolução: pode tentar. Desde os churrascos gaúchos ao surf, desde os cães chow-chow à Turma da Mônica: tudo pode ser explicado como existente a partir de uma vantagem evolutiva a algum grupo de seres vivos no passado, e isso depende apenas de uma boa veia literária e alguma criatividade. Mas não é ciência de verdade. Embora aparentemente qualquer livro escrito a partir de uma visão de mundo dessas vende como água nas livrarias de Shopping Center. E influencia muita gente poderosa.
Como explicação das microvariações biológicas a teoria da adaptação por seleção natural parece ser uma hipótese plausível. Como mito de fundação social, no entanto, o relato evolucionista é lamentável; no limite, gera o nazismo, ou a moderna eugenia abortista. Um humanismo evolucionista é uma contradição em termos, tanto quanto um ambientalismo evolucionista: se a lei da sobrevivência do mais apto é, de fato, a lei impessoal que rege o universo, o mais apto sobreviverá por seus próprios méritos, não pela luta dos ambientalistas nem dos humanistas – que, aliás, em última instância, só podem estar lutando por si mesmos, pela própria sobrevivência, e se não são suicidas são hipócritas. Foram muito bem retratados na canção dos Titãs, resposta definitiva a qualquer pretenso “ambientalismo evolucionista”, contraditório em termos:
“Oncinha pintada, zebrinha listrada, coelhinho peludo,
Vão se foder,
porque aqui na face da terra só bicho escroto
é que vai ter..”
Ora, se o evolucionismo é a resposta definitiva, então não há sentido em proteger as espécies que estão sumindo: elas darão lugar a espécies mais evoluídas, mais bem adaptadas ao ambiente que mudou. E viva, nesse contexto, a extinção em massa dos bichos “ultrapassados” - incluídos os ripongas ambientais, que serão superados pelos roqueiros de Heavy Metal...
A diferença entre os relatos de origem contemporâneos e o bíblico, além da evidente falta de instrumentais de linguagem de que dispunha o autor daquele frente à sofisticação dos autores destes últimos, é a abertura, no caso do Gênesis, para uma causa última dotada de atributos pessoais. Os relatos contemporâneos são fechados, como o mundo-sanfona do big-bang, ou sujeitos a forças transcendentes impessoais, como a “seleção natural” da evolução. Assim, o critério de plausibilidade, para os pensadores modernos, de um relato de origem, parece ser a exclusão de uma causa final transcendente e pessoal, muito mais do que a consistência interna ou a capacidade de explicação. Apenas por esse motivo o relato bíblico, apesar de mais amplo e internamente muito mais consistente, é considerado mítico não simplesmente por causa da linguagem, mas bem mais porque envolve, como fundamento último, um ser pessoal. Em todo caso, mais consistente e plausível, como fundamento, do que os mitos impessoais que são tão bem tolerados na Academia moderna, apesar de muito mais inconsistentes.
Voltemos a Moisés e sua teoria constitucional bíblica. Estabelecido o relato de origem e a visão de mundo e de homem – a antropologia do Gênesis, nos capítulos 1 a 3 - seria necessário estabelecer uma “teoria das normas”. Por que a lei é necessária? Por que precisamos de um Estado? Não são perguntas menos importantes, hoje, do que eram então.
O pensamento contemporâneo parece ter desistido de dar resposta a essa pergunta. Vemos, por exemplo, a popularidade do pensamento kelseniano, que renuncia à discussão da questão fundamental a respeito de porque existem normas, para estabelecer como únicas discussões válidas as que envolvem o “como” são as normas. Essa é uma limitação pertinente ao campo da técnica jurídica, mas absurda no campo filosófico. A pergunta sobre “porque” existem normas nunca poderá ser respondida positivamente; nem por isso é menos pertinente. Normalmente é uma pergunta de uma criança de seis anos, não a pergunta de um advogado de sessenta. Mas as crianças de seis anos filosofam, os advogados de sessenta advogam.
O fato é que há algo que não flui perfeitamente na convivência do homem com o outro e com o meio que o circunda. Leões nascem sendo leões. Formigas nascem sabendo o seu lugar junto às outras formigas. O homem parece inclinado ou à auto-destruição ou à destruição do outro ou do seu entorno. A sobrevivência e a convivência, que são um dado para toda a natureza, para o homem são sempre construtos.
Eis a fonte de toda cultura, de toda literatura, de toda ciência, de toda filosofia e, principalmente, naquilo que mais nos interessa, de todo o direito. Várias explicações foram dadas para esse fenômeno. Já citei Hobbes e Rousseau, poderia citar Hegel e Marx, poderia citar, como o farei, o Gênesis.
Essa inclinação à destruição é chamada, na teoria normativa bíblica, de “pecado original”. Trata-se da capacidade que tem o homem de questionar sua própria origem, capacidade, aliás, que é, de modo absoluto, exclusivamente humana, aliada à incapacidade de alcançar uma resposta satisfatória. O ser que não pergunta não é homem. O ser que sabe a resposta, tampouco. Essa capacidade é tão definidora da condição humana que, se houvesse um outro ser além do “homo sapiens” capaz de fazer tais perguntas e incapaz de dar a resposta adequadamente, teria que ser incluído na definição de “homem”. Vale dizer, não é a especificidade biológica que faz do “homo sapiens” um homem, mas a potência, nem sempre necessariamente atualizada, de fazer esta pergunta.
Essa defasagem entre a capacidade de fazer a pergunta existencial e a capacidade de obter positivamente a resposta definitiva é exatamente o que a linguagem bíblica descreve como pecado original. A existência dessa condição é indiscutível, portanto é indiscutível a própria existência do pecado original. Fazer a pergunta é algo próprio à natureza humana. Obter a resposta, não.
Duas saídas apresentam-se, filosoficamente. Ou a resposta está oculta em algum lugar da natureza humana ou está fora. Não dá para negar é que a resposta existe, porque uma pergunta que não levasse a uma resposta não seria uma pergunta, seria uma contradição em si mesma.
Essa é a pergunta final. Segundo a doutrina judaico-cristã, em algum momento o homem duvidou que a resposta estivesse em Deus, como era óbvio no início, e resolveu buscar a resposta em si mesmo, na natureza ou nas forças incorpóreas que o circundam. Esse é o pecado original. Com o afastamento que o homem causou, a resposta ficou obscura, ocultou-se definitivamente, porque o homem desviou os olhos da sua única fonte. Comeu o fruto. Desde então, a obtenção da resposta final foi chamada, na tradição judaico-cristã, de “salvação”. Todas as correntes gnósticas, como o cientismo, o positivismo, o orfismo e suas variantes espíritas, só para citar algumas, afirmam que a resposta está escondida no homem em algum lugar, vale dizer, que o homem é capaz de salvar a si mesmo, e somente a ignorância da resposta que já possui o leva à perdição. Neste caso, toda perdição é temporária, porque quando o homem finalmente atinar com a resposta, seja por ter reencarnado suficientemente para descobri-la, seja por ter encontrado cientificamente a cura para os limites humanos, curará, a seu turno, a ignorância dos outros, tanto quanto ainda os possa encontrar, ou na medida em que os encontre. Daí o congelamento de cadáveres ou o mito do monstro de Frankenstein atualizado pelas pesquisas com reimplantação de DNA em embriões. Outras correntes, mais sociais, como o democratismo liberal e o comunismo, colocaram a resposta na vontade do povo, entendida, no democratismo, como a “vontade soberana da maioria” e, no comunismo, como a vontade inexorável do proletariado. Tais seriam, portanto, as forças salvíficas em tais correntes, e, portanto, as suas divindades, sobre as quais erigem o seu Estado.
Para os que creem na resposta gnóstica, não há um fundamento, no ser humano, fora dele mesmo, seja do homem como indivíduo, como nas correntes mais solipsistas como a de Nietsche e Sartre, seja do homem como fundamento de direito, como na autonomia kantiana, seja nas mais sociais, como as hegelianas de direita ou de esquerda, especialmente os marxistas. Assim, toda norma social é, alternativamente, ou uma reabilitação do homem consigo mesmo, seja pela concessão desconfortável de parte da sua individualidade ao todo, como creem os hobbesianos ou os rousseaunianos, seja pela submissão dos outros à sua própria vontade, como creem os discípulos de Maquiavel ou Nietsche, ou uma reabilitação incondicional da relação do homem com o outro homem, seja pela submissão incondicional à “mão invisível do mercado”, num extremo ou, no outro, pela coletivização dos meios de produção. No meio, neste último caso, encontra-se o democratismo, no qual a opinião de cada um não importa, senão a opinião circunstancial de uma maioria impessoal, na qual se esconde quantitativamente a resposta salvífica – o velho ditado “vox populi, vox dei”.
Daí porque todas as correntes gnósticas desenvolveram uma visão de uma norma jurídica que é, em si mesma, salvífica. Vale dizer, o disciplinamento normativo da conduta humana, para os gnósticos, tem como fundamento o caminho para a salvação humana, que passa pela salvação individual, para alguns, ou pela supressão do indivíduo em prol de uma salvação coletiva, para outros tantos. Ou a convivência humana é, portanto, ou um estorvo para que o indivíduo possa obter a sua salvação, a sua própria glorificação absoluta, transcendendo os seus limites individuais para tornar-se um super-homem ou um super-príncipe, caso em que o ordenamento tenderá a nulificar o valor do outro e a superestimar o valor do poderoso (gerando o totalitarismo, que contemporaneamente conhecemos tão bem), ou, alternativamente, a resposta salvífica se esconde somente no todo ou na maioria, e o indivíduo tem pouco ou nenhum valor para o direito.
No caso do cientismo, trata-se de negar valor a qualquer busca de salvação fora da ciência, desqualificando como desprezível qualquer “conhecimento” que não seja salvífico, vale dizer, que não seja o desenvolvimento de técnicas de sobrevivência ou de imortalidade mediante a investigação empírica e metódica da realidade material. Vale dizer, quaisquer indivíduos que não estejam empenhados nesta busca estão mergulhando os outros ainda mais na ignorância, ou seja, estão atrapalhando. Podem ser tolerados como aberrações passageiras, como defendia Comte alegando que são “crianças” religiosas ou “adolescentes” metafísicos atávicos atrasando os “adultos” cientistas, ou podem ser eliminados como estorvos, descaminhos evolutivos, como fizeram os nazistas e os comunistas.
Quer dizer, ter o poder, para qualquer corrente gnóstica, é saber onde está a resposta. Conhecimento é poder. Quem nunca ouviu essa frase? Daí que, neste caso, o próprio homem (coletivamente falando) ou um homem específico, um “iluminado”, é o salvador, e qualquer ordem jurídica se apresenta como o disciplinamento para a obtenção da resposta. Descumprir a lei é ser um inimigo do homem, quer dizer, ser um obscurantista. Descumprir a lei é perder-se e perder a possibilidade de conhecer a salvação.
A doutrina do Gênesis é diferente. Sendo Deus o Outro, o transcendente, e o homem a sua criatura, essencialmente boa, ainda que decaída por culpa própria, a resposta à pergunta pelo sentido último já não é alcançável apenas pelos esforços humanos. A razão humana pode alcançar o conhecimento de que há um deus, e de que há uma resposta salvífica, mas jamais saberá com certeza absoluta como é que Deus é em si mesmo, nem qual o conteúdo da resposta. Seria capaz de reconhecer uma resposta verdadeira, mas não de descobri-la, aceitá-la ou vivenciá-la sem ajuda divina. Seria necessário que o próprio Deus se revelasse e nos fornecesse a resposta, mas a rebeldia que nos afastou dele por decisão nossa nos impediria até mesmo de receber essa resposta. Assim, o fundamento da norma jurídica é a restauração da amizade original entre o homem e Deus, perdida por culpa do homem e requisito para a obtenção da salvação que está em Deus. Basicamente, cumprir a lei estatal heterônima ou permanecer longe de Deus e não se salvar. Isso parece uma tremenda imbecilidade para os nossos ouvidos pós-kantianos, acostumados a encontrar em nós mesmos o fundamento das normas, mas, no fundo, faz sentido: quando buscamos em nós mesmos o fundamento das normas, estamos apenas colocando as nossas pessoas no lugar do Senhor Deus de Moisés. Não há uma grande mudança de estrutura, senão uma alteração de lugares dentro de uma mesma estrutura.
Assim, a antropologia bíblica continua servindo de moldura para que os modernos a preencham com aquilo que considerarem como seu próprio deus, com a única condição de que esse deus seja impessoal, e não o Deus de Abraão, Isaac e Jacó, ou o Pai de Jesus. É assim que o poder constituinte é o deus dos iluministas, e a religião (vale dizer, a projeção dos atributos ideais do homem num ser transcendente, como denunciava Feuerbach) o pecado original. É assim que a dialética histórica é o deus dos hegelianos, e a exploração de classes, o pecado original para os marxistas. É assim, que o indivíduo é o deus de Rousseau, e a sociedade, seu pecado original. A lista segue interminavelmente.
Hoje, há uma deificação do sexo: para algumas correntes virulentas, o estado somente é legítimo na exata medida em que promova o sexo livre, sem riscos e consequências, e torna-se ilegítimo quando, de algum modo, regula, ainda que remotamente, quaisquer condutas humanas que envolvam a maximização do prazer sexual. Por isso, viva os prostitutos e abaixo a família de papai e mamãe. Viva o aborto e abaixo os exames pré-natais. Viva a cirurgia transexual e abaixo a estabilidade matrimonial. Mas este é um processo ainda em curso, e por isso é mais difícil falar dele.
Existiria, então, alguma concepção de estado que não colocasse os fundamentos de sua legitimidade numa deidade e a submissão à legislação como salvação de um “pecado original”? Bom, nem nas correntes que surgiram do iluminismo, nem nos estados pós-modernos, nem no mundo muçulmano, nem mesmo nos países orientais com seus imperadores-deuses se pode encontrar algo assim. Somente um determinado grande pensador, na história da humanidade, estabeleceu um fundamento racional para uma desmistificação do estado e sua correta laicização: foi São Paulo de Tarso, especialmente na Carta aos Romanos e na Carta aos Gálatas. E o fez na exata linha apontada por Jesus. Explico.
A fala de Jesus, registrada em sua forma mais primitiva no Evangelho de Marcos (12, 13-17), com paralelos nos Evangelhos de Mateus (22, 15-22) e Lucas (20, 20-26), é a primeira grande manifestação, talvez na história da humanidade, da separação entre a fundamentação do Estado e o plano salvífico de Deus:
“E enviaram-lhe alguns dos fariseus e dos herodianos, para que o apanhassem nalguma palavra. E, chegando eles, disseram-lhe: Mestre, sabemos que és homem de verdade, e de ninguém se te dá, porque não olhas à aparência dos homens, antes com verdade ensinas o caminho de Deus; é lícito dar o tributo a César, ou não? Daremos, ou não daremos? Então ele, conhecendo a sua hipocrisia, disse-lhes: Por que me tentais? Trazei-me uma moeda, para que a veja. E eles lha trouxeram. E disse-lhes: De quem é esta imagem e inscrição? E eles lhe disseram: De César. E Jesus, respondendo, disse-lhes: Dai pois a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus. E maravilharam-se dele.”
Já não há, pois, identidade entre Deus e César. Já não há identidade possível entre divindades e impérios, entre deuses e ordenamentos jurídicos. Os ordenamentos jurídicos são necessários, porque os efeitos do “pecado original” ainda se fazem sentir. Mas já não são salvíficos para os cristãos, como o são para os judeus, muçulmanos, japoneses, gnósticos, iluminados e cientificistas em geral, ou seja, para todos os Estados não-cristãos ou pós-cristãos.
Esse mesmo pensamento foi melhor especificado por São Paulo, capítulo 3, 21 a 31. Transcrevo:
21 Mas, agora, sem o concurso da lei, manifestou-se a justiça de Deus, atestada pela lei e pelos profetas. 22 Esta é a a justiça de Deus pela fé em Jesus Cristo, para todos os fiéis (pois não há distinção; 23 com efeito, todos pecaram e todos estão privados da glória de Deus), 24 e são justificados gratuitamente por sua graça; tal é a obra da redenção, realizada em Jesus Cristo. 25 Deus o destinou para ser, pelo seu sangue, vítima de propiciação mediante a fé. Assim, ele manifesta a sua justiça; porque no tempo de sua paciência, ele havia deixado sem castigo os pecados anteriores. 26 Assim, digo eu, ele manifesta a sua justiça no tempo presente, exercendo a justiça e justificando aquele que tem fé em Jesus. 27 Onde está, portanto, o motivo de se gloriar? Foi eliminado. Por qual lei? Pela das obras? Não, mas pela lei da fé. 28 Porque julgamos que o homem é justificado pela fé, sem as observâncias da lei. 29 Ou Deus só o é dos judeus? Não é também Deus dos pagãos? Sim, ele o é também dos pagãos. 30 Porque não há mais que um só Deus, o qual justificará pela fé os circuncisos e, também pela fé, os incircuncisos. 31 Destruímos então a lei pela fé? De modo algum. Pelo contrário, damos-lhe toda a sua força.
Ao separar o plano contingente da convivência social, da necessária regulamentação estatal da conduta humana, do plano da salvação e da Graça, São Paulo nos deu a base filosófica para uma teoria consistente da separação entre Estado e deidade, entre Estado e salvação. O estado é necessário, e sua obediência é dever de todos. Mas nessa obediência encontra-se somente o fundamento para a boa convivência humana (sem dúvida necessária para a salvação, mas não suficiente) e não uma relação direta com a ordem divina. Veja-se a exortação firma de São Paulo quanto à necessidade de obedecer à ordem estatal:
1 Cada qual seja submisso às autoridades constituídas, porque não há autoridade que não venha de Deus; as que existem foram instituídas por Deus. 2 Assim, aquele que resiste à autoridade, opõe-se à ordem estabelecida por Deus; e os que a ela se opõem, atraem sobre si a condenação. 3 Em verdade, as autoridades inspiram temor, não porém a quem pratica o bem, e sim a quem faz o mal! Queres não ter o que temer a autoridade? Faze o bem e terás o seu louvor. 4 Porque ela é instrumento de Deus para teu bem. Mas, se fizeres o mal, teme, porque não é sem razão que leva a espada: é ministro de Deus, para fazer justiça e para exercer a ira contra aquele que pratica o mal. 5 Portanto, é necessário submeter-se, não somente por temor do castigo, mas também por dever de consciência. 6 É também por essa razão que pagais os impostos, pois os magistrados são ministros de Deus, quando exercem pontualmente esse ofício. 7 Pagai a cada um o que lhe compete: o imposto, a quem deveis o imposto; o tributo, a quem deveis o tributo; o temor e o respeito, a quem deveis o temor e o respeito.
Neste sentido, é claro que a autoridade humana é consentida por Deus, mas a ordem que ela estabelece não necessariamente é querida por Deus. No entanto, o fundamento da obediência, para São Paulo, não é a salvação pela lei, mas a constatação de fato da necessidade de uma ordem estatal, como realidade querida por Deus, para possibilitar a ordem e a convivência humana. Ocorre que essa estrutura não se confunde com o Reino de Deus, e se lastreia na contingência, transformando-se muitas vezes no anticristo. Obedeço porque Deus espera que eu seja obediente, mas não porque eu veja no governante uma figura divina, nem sequer seu mandatário direto, embora seu exercício de poder seja, sem dúvida, permitido por Deus em determinada configuração histórica. A relação entre o cidadão e o Estado é lastreada na necessidade de ordem, não de salvação. A salvação está no plano da graça, e somente lá. A obediência ao Estado é consequência, e pode representar (como de fato representa) a cruz necessária para chegar à salvação, mas não o caminho, nem a verdade, nem a vida. Assim ensina nosso grande jusfilósofo São Paulo:
“Então que é a lei? É um complemento ajuntado em vista das transgressões, até que viesse a descendência a quem fora feita a promessa; foi promulgada por anjos, passando por um intermediário. 20 Mas não há intermediário, tratando-se de uma só pessoa, e Deus é um só. 21 Portanto, é a lei contrária às promessas de Deus? De nenhum modo. Se fosse dada uma lei que pudesse vivificar, em verdade a justiça viria pela lei; 22 mas a Escritura encerrou tudo sob o império do pecado, para que a promessa mediante a fé em Jesus Cristo fosse dada aos que creem. 23 Antes que viesse a fé, estávamos encerrados sob a vigilância de uma lei, esperando a revelação da fé. 24 Assim a lei se nos tornou pedagogo encarregado de levar-nos a Cristo, para sermos justificados pela fé. 25 Mas, depois que veio a fé, já não dependemos de pedagogo, 26 porque todos sois filhos de Deus pela fé em Jesus Cristo. 27 Todos vós que fostes batizados em Cristo, vos revestistes de Cristo. 28 Já não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher, pois todos vós sois um em Cristo Jesus. 29 Ora, se sois de Cristo, então sois verdadeiramente a descendência de Abraão, herdeiros segundo a promessa.“
Obedecer à lei é necessário, mas não porque a lei salve. A salvação do homem está em outro lugar. “Meu Reino não é desse mundo”, disse Jesus (Jo 18, 36). No entanto, está nesse mundo, e não é desencarnado, porque o próprio Jesus se encarnou. Há, sem dúvida, uma normatividade estatal que é marcada pelo cristianismo, e os cristãos, como cidadãos, também devem ser sal da terra e luz do mundo (Mt 5, 13). O modo como os cristãos devem participar na construção de uma normatividade estatal está assim descrito por Jesus no capítulo 20 do Evangelho de Mateus:
“25 Jesus, porém, os chamou e lhes disse: Sabeis que os chefes das nações as subjugam, e que os grandes as governam com autoridade. 26 Não seja assim entre vós. Todo aquele que quiser tornar-se grande entre vós, se faça vosso servo. 27 E o que quiser tornar-se entre vós o primeiro, se faça vosso escravo. 28 Assim como o Filho do Homem veio, não para ser servido, mas para servir e dar sua vida em resgate por uma multidão.”
Quanto ao conteúdo ideal de uma normatividade estatal cristã, temos essa especificação em Mt 25:
31 Quando o Filho do Homem voltar na sua glória e todos os anjos com ele, sentar-se-á no seu trono glorioso. 32 Todas as nações se reunirão diante dele e ele separará uns dos outros, como o pastor separa as ovelhas dos cabritos. 33 Colocará as ovelhas à sua direita e os cabritos à sua esquerda. 34 Então o Rei dirá aos que estão à direita: - Vinde, benditos de meu Pai, tomai posse do Reino que vos está preparado desde a criação do mundo, 35 porque tive fome e me destes de comer; tive sede e me destes de beber; era peregrino e me acolhestes; 36 nu e me vestistes; enfermo e me visitastes; estava na prisão e viestes a mim. 37 Perguntar-lhe-ão os justos: - Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de comer, com sede e te demos de beber? 38 Quando foi que te vimos peregrino e te acolhemos, nu e te vestimos? 39 Quando foi que te vimos enfermo ou na prisão e te fomos visitar? 40 Responderá o Rei: - Em verdade eu vos declaro: todas as vezes que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a mim mesmo que o fizestes. 41 Voltar-se-á em seguida para os da sua esquerda e lhes dirá: - Retirai-vos de mim, malditos! Ide para o fogo eterno destinado ao demônio e aos seus anjos. 42 Porque tive fome e não me destes de comer; tive sede e não me destes de beber; 43 era peregrino e não me acolhestes; nu e não me vestistes; enfermo e na prisão e não me visitastes. 44 Também estes lhe perguntarão: - Senhor, quando foi que te vimos com fome, com sede, peregrino, nu, enfermo, ou na prisão e não te socorremos? 45 E ele responderá: - Em verdade eu vos declaro: todas as vezes que deixastes de fazer isso a um destes pequeninos, foi a mim que o deixastes de fazer. 46 E estes irão para o castigo eterno, e os justos, para a vida eterna.
Esta é a justiça que se espera de um cristão, e esta é a influência que ele exercerá no seu próprio Estado, todas as vezes em que puder influenciar na elaboração das leis. Mas ele sabe que a lei não é expressão de salvação divina, mas apenas regulação contingente da realidade humana. Por isso, é imperfeita. Somente o amor é perfeito, mas como ele ainda não se estabeleceu plenamente neste mundo irredimido, a lei humana é necessária. Mas não suficiente.
O perigo, portanto, é que o mundo contemporâneo esqueça tais sutilezas e volte a exigir dos cristãos que queimem incenso ao César que elegeram como imperador da sua própria ordem jurídica, seja esse César o proletário, a evolução, o sexo, a ciência ou o povo personificado. Seja esse incenso o cadáver de nossas crianças abortadas, os nossos votos de casamento ou a nossa voz política. Seremos os mártires da vez, então.
segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011
Respondendo a um amigo nietzscheriano.
Caro amigo nietzscheriano<
Agradeço imensamente o presente que me fizeste do livro “Sobre a Verdade e a Mentira”, de Nietzsche. A honestidade crua com que Nietzsche discorre sobre a fragilidade da razão humana é mesmo tocante. O interessante é que, se aplicarmos ao próprio Nietzsche a crítica que ele faz à fragilidade humana, à sua capacidade de enganar e de autoenganar-se, não teremos nenhum motivo para crer … em Nietzsche!
Por isso é que eu acho que Nietzsche é um pensador bastante honesto, que nos convida a não acreditar nem no que ele próprio escreve, e já nos avisa que, sendo ele apenas “humano, demasiado humano”, seu próprio pensamento não pode estar acima das contingências que ele próprio aponta para todo o pensamento racional humano.
Nietzsche afirma categoricamente que "os homens estão mergulhados nas ilusões e nos sonhos", enganados "sobre o valor da existência", mergulhados numa "linguagem arbitrária e irreal" que "nunca alcança a verdade", incapaz de "possuir algum saber sobre as coisas propriamente ditas", um dissimulador com "uma incrível tendência a se deixar enganar". Ou seja, dado o fato de que Nietzsche também é humano, das duas uma: ou ele também tem uma incapacidade absoluta de apreender e falar a verdade sobre qualquer coisa, e portanto seu pensamento não vale nada, ou ele tem em baixíssima estima o pensamento de seu leitor, portador de uma "incrível tendência a se deixar enganar".
Bom, aconselhado, portanto, pelo próprio Nietzsche, não vou me deixar enganar pelo niilismo dele. Na verdade, como ele próprio adverte, se ele tivesse garras e chifres, estaria tentando me morder e me chifrar. Como não tem, usa seu texto à moda de garras e chifres, querendo me convencer de que viver não vale a pena, de que pensar não vale a pena, salvo como tosca estratégia de dominação dos fortes pelos fracos, estratégia que apenas os textos de Nietzsche seriam capazes de desvendar e curar. Mas, uma vez que nietzsche, ao redigir seu opúsculo, está pensando e escrevendo, e não me dando chifradas e mordidas, ele está caindo no próprio erro que aponta. Está sendo contraditório com seus próprios pressupostos. Mas está fazendo isso com uma magistral habilidade literária, isso é inegável.
Bom, ou ele se superestima, considerando-se mais que humano, e portanto considerando o seu pensamento protegido das contingências que aponta no pensamento alheio, ou ele considera o seu público leitor incapaz, de qualquer modo, de discernir no próprio pensamento nietzscheriano, os mesmos defeitos que o próprio Nietzsche aponta no pensamento de todos os outros autores.
Em qualquer das duas hipóteses (quer se ele se acha, tanto quanto qualquer humano, incapaz de alcançar qualquer conhecimento válido sobre qualquer coisa, quer se ele se acha mais que humano e nos acha, a todos os seus leitores, uns incapazes de discernimento e irremediavelmente fadados ao auto-engano) não consigo ver motivo válido para que ele escrevesse este livro ou para que nós o lêssemos. Ele deveria estar por aí chifrando e mordendo os débeis que se prontificam a estudar o ser humano, e não produzindo literatura para eles.
Em todo caso, ele escreve bem, e como você disse, nos faz realmente pensar muito, embora Nietzsche já deixe claro, de antemão, que esse nosso pensamento não vai adiantar nada, dadas as condicionantes, que ele próprio aponta, que nos tornariam, segundo ele, incapazes exatamente para o pensamento. Se formos seguir os conselhos dele, restar-nos-ão as garras e os chifres, para que matemos de uma vez os fracos argumentadores e os medíocres leitores de livros de filosofia, todos apenas interessados, para ele, em impedir a inevitável vitória do puro vigor mediante a retórica dos fracos.
Para ser franco, se eu desconfiasse tanto assim da razão humana, nem me atreveria a escrever um livro. Nietzsche, embora desconfiado assim, o escreveu. O que ele quer provar? Que, sendo capaz de, observando de uma altura privilegiada, denunciar as contradições da vã razão humana? Ou seja, ele quer provar que ele é Deus?
Bom, Deus está morto, segundo Nietzsche, então não há muita vantagem em ser Deus, não é?
Li, também, com muita atenção, esse outro texto que me enviaste, em que teu amigo esculacha a paixão de Cristo e a própria cruz. Tu me apresentaste a este texto, de uma maneira quase orgulhosa, como o fruto de um pensamento louco, no sentido nietzscheriano de entender a “loucura” como a capacidade de escarnecer do senso comum. Assim, soa corajoso avacalhar a redenção na cruz, a paixão de Cristo como salvação da humanidade, partindo de pressupostos nietzscherianos para avaliá-la como sem sentido.
Teu amigo, o autor do texto, não soa louco, soa extremamente lúcido – dentro, é claro, dos critérios nietzscherianos de lucidez, que ele parece ter escolhido como suporte para o seu próprio pensamento. Se bem que a frase “critério nietzscheriano de lucidez” soe um pouco contraditória. Desculpe, é que eu sou meio fraquinho escrevendo.
Teu amigo é melhor escritor do que eu. Ele só não é original. Essa acusação aos cristãos, que ele faz, é velha, é do tempo de Paulo de Tarso, quando os gregos faziam exatamente estas observações aos entusiasmados seguidores do nazareno, de que essa história da cruz era contraditória, era loucura e não fazia sentido, à vista da sabedoria filosófica grega.
Para os filósofos de então, como para o teu amigo, era uma história tão imbecil essa da cruz de Cristo como salvação dos homens que os gregos nem se deram ao trabalho de refutar: despediram Paulo de Tarso do Areópago com um banal "a respeito disso te ouviremos de outra vez" (At 17, 32) e mandaram ele passear, ou seja, nem consideraram essa história tola como algo digno de discussão, porque qualquer pensador grego, partindo dos mesmos pressupostos, chega rapidamente às conclusões que teu professor chegou. A sabedoria grega de então, como o nietzscherianismo de hoje, tornava o mero pensamento da morte e ressurreição de um deus uma loucura, impensável. Eis porque provavelmente o teu professor é lúcido, perfeitamente lúcido aos olhos de um filósofo grego tardio, ou de Nietzsche. Desse ponto de vista, o louco sou eu. Que aliás também sou Paulo, como o de Tarso.
Bom, os judeus tampouco aceitaram isso que teu professor chamou de "grande farsa", mas por motivos diversos: para eles, seria um escândalo que um "Messias" acabasse tão miseravelmente. O Messias, filho de Davi, deveria levar seu reino por sobre todas as nações, segundo eles acreditavam, o que obviamente era incompatível com um rabi miseravelmente crucificado. Escandaloso, portanto, segundo eles pensavam, que alguém se auto-declarasse messias, um "ungido de Deus", e morresse daquela forma. Maldito é aquele que é suspenso num madeiro, diz a lei judaica no Deuteronômio, 21, 23. Ainda mais com a placa "eis o rei dos Judeus" escrita em cima da cruz. Um escândalo inaceitável.
O fato é que, ontem como hoje, os judeus pedem sinais e os gregos andam em busca de sabedoria. Nós, porém, anunciamos Cristo crucificado, que para os judeus, é escândalo, para os gentios é loucura, mas para aqueles que são chamados, tanto judeus como gregos, é Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus. pois o que é loucura de Deus é mais sábio do que os homens, e o que é fraqueza de Deus é mais forte do que os homens. E note que eu nem tive o trabalho de escrever essa resposta: ela foi escrita pelo próprio Paulo de Tarso, em razão de questões tais como a do seu professor, e isso também há cerca de mil, novecentos e cinquenta anos. Está em I Coríntios 1, 22.
Quanto a este papo, presente no texto do teu amigo, de que "a vida que não tiver a maldade de devorar vidas não sobrevive", representa apenas um darwinismo de raiz malthusiana bem primário. Explico-me.
Falando do ponto de vista estritamente científico, vida nenhuma sobrevive, devorando ou não vidas. Todo ser vivo morre, quer seja predador, quer seja presa. Toda vida é efêmera, um filósofo melhor do que eu já disse um dia que a vida é uma doença altamente contagiosa que termina com 100% de letalidade. Não há salvação para o indivíduo, neste plano estritamente biológico, ou mesmo no plano filosófico do ceticismo, do materialismo ou do niilismo. A morte é certa, e esse fato nenhum sujeito pode negar, porque um dia se encontrará com ela própria, pessoalmente – quando, aliás, será muito tarde para tentar filosofar sobre ela.
Qualquer busca de salvação relativamente à morte certa de todo vivente, ainda que seja pelo devoramento de "milhões de vidas pelo apetite de quem come" é pura gnose primária. Que me desculpe o seu amigo, já li niilistas mais originais.
Recomendo a ele que largue um pouco Nietzsche de lado, e principalmente que não leia Dawkins ou, pior ainda, que deixe Dan Brown para lá.
Se ele aceitasse ler textos alheios com a mesma atenção com que eu li o livro de Nietzsche que você me recomendou, ou o texto dele que você carinhosamente me encaminhou, eu recomendaria que ele lesse David Stove, filósofo australiano agnóstico que escreveu um livro espetacular chamado "Darwinian Fairytales”, ou, mais perto de nós, o livro de um professor da UnB, que aliás tampouco é cristão, chamado "Polemos", onde esse tipo de colocação darwinista primária tem a resposta filosófica adequada. A edição é da própria UnB.
É pena que Nietzsche não tenha sido original nem em sua colocação mais bombástica: nós cristãos já tínhamos declarado, quase dois milênios antes dele, que Deus morreu e nós o matamos. Pena que ele não ficou sabendo do que aconteceu depois. Ele ressuscitou. Essa é a nossa esperança. Mas isso é um assunto para nós, os pequeninos. Não para doutores, Mt 11, 25.
Agradeço imensamente o presente que me fizeste do livro “Sobre a Verdade e a Mentira”, de Nietzsche. A honestidade crua com que Nietzsche discorre sobre a fragilidade da razão humana é mesmo tocante. O interessante é que, se aplicarmos ao próprio Nietzsche a crítica que ele faz à fragilidade humana, à sua capacidade de enganar e de autoenganar-se, não teremos nenhum motivo para crer … em Nietzsche!
Por isso é que eu acho que Nietzsche é um pensador bastante honesto, que nos convida a não acreditar nem no que ele próprio escreve, e já nos avisa que, sendo ele apenas “humano, demasiado humano”, seu próprio pensamento não pode estar acima das contingências que ele próprio aponta para todo o pensamento racional humano.
Nietzsche afirma categoricamente que "os homens estão mergulhados nas ilusões e nos sonhos", enganados "sobre o valor da existência", mergulhados numa "linguagem arbitrária e irreal" que "nunca alcança a verdade", incapaz de "possuir algum saber sobre as coisas propriamente ditas", um dissimulador com "uma incrível tendência a se deixar enganar". Ou seja, dado o fato de que Nietzsche também é humano, das duas uma: ou ele também tem uma incapacidade absoluta de apreender e falar a verdade sobre qualquer coisa, e portanto seu pensamento não vale nada, ou ele tem em baixíssima estima o pensamento de seu leitor, portador de uma "incrível tendência a se deixar enganar".
Bom, aconselhado, portanto, pelo próprio Nietzsche, não vou me deixar enganar pelo niilismo dele. Na verdade, como ele próprio adverte, se ele tivesse garras e chifres, estaria tentando me morder e me chifrar. Como não tem, usa seu texto à moda de garras e chifres, querendo me convencer de que viver não vale a pena, de que pensar não vale a pena, salvo como tosca estratégia de dominação dos fortes pelos fracos, estratégia que apenas os textos de Nietzsche seriam capazes de desvendar e curar. Mas, uma vez que nietzsche, ao redigir seu opúsculo, está pensando e escrevendo, e não me dando chifradas e mordidas, ele está caindo no próprio erro que aponta. Está sendo contraditório com seus próprios pressupostos. Mas está fazendo isso com uma magistral habilidade literária, isso é inegável.
Bom, ou ele se superestima, considerando-se mais que humano, e portanto considerando o seu pensamento protegido das contingências que aponta no pensamento alheio, ou ele considera o seu público leitor incapaz, de qualquer modo, de discernir no próprio pensamento nietzscheriano, os mesmos defeitos que o próprio Nietzsche aponta no pensamento de todos os outros autores.
Em qualquer das duas hipóteses (quer se ele se acha, tanto quanto qualquer humano, incapaz de alcançar qualquer conhecimento válido sobre qualquer coisa, quer se ele se acha mais que humano e nos acha, a todos os seus leitores, uns incapazes de discernimento e irremediavelmente fadados ao auto-engano) não consigo ver motivo válido para que ele escrevesse este livro ou para que nós o lêssemos. Ele deveria estar por aí chifrando e mordendo os débeis que se prontificam a estudar o ser humano, e não produzindo literatura para eles.
Em todo caso, ele escreve bem, e como você disse, nos faz realmente pensar muito, embora Nietzsche já deixe claro, de antemão, que esse nosso pensamento não vai adiantar nada, dadas as condicionantes, que ele próprio aponta, que nos tornariam, segundo ele, incapazes exatamente para o pensamento. Se formos seguir os conselhos dele, restar-nos-ão as garras e os chifres, para que matemos de uma vez os fracos argumentadores e os medíocres leitores de livros de filosofia, todos apenas interessados, para ele, em impedir a inevitável vitória do puro vigor mediante a retórica dos fracos.
Para ser franco, se eu desconfiasse tanto assim da razão humana, nem me atreveria a escrever um livro. Nietzsche, embora desconfiado assim, o escreveu. O que ele quer provar? Que, sendo capaz de, observando de uma altura privilegiada, denunciar as contradições da vã razão humana? Ou seja, ele quer provar que ele é Deus?
Bom, Deus está morto, segundo Nietzsche, então não há muita vantagem em ser Deus, não é?
Li, também, com muita atenção, esse outro texto que me enviaste, em que teu amigo esculacha a paixão de Cristo e a própria cruz. Tu me apresentaste a este texto, de uma maneira quase orgulhosa, como o fruto de um pensamento louco, no sentido nietzscheriano de entender a “loucura” como a capacidade de escarnecer do senso comum. Assim, soa corajoso avacalhar a redenção na cruz, a paixão de Cristo como salvação da humanidade, partindo de pressupostos nietzscherianos para avaliá-la como sem sentido.
Teu amigo, o autor do texto, não soa louco, soa extremamente lúcido – dentro, é claro, dos critérios nietzscherianos de lucidez, que ele parece ter escolhido como suporte para o seu próprio pensamento. Se bem que a frase “critério nietzscheriano de lucidez” soe um pouco contraditória. Desculpe, é que eu sou meio fraquinho escrevendo.
Teu amigo é melhor escritor do que eu. Ele só não é original. Essa acusação aos cristãos, que ele faz, é velha, é do tempo de Paulo de Tarso, quando os gregos faziam exatamente estas observações aos entusiasmados seguidores do nazareno, de que essa história da cruz era contraditória, era loucura e não fazia sentido, à vista da sabedoria filosófica grega.
Para os filósofos de então, como para o teu amigo, era uma história tão imbecil essa da cruz de Cristo como salvação dos homens que os gregos nem se deram ao trabalho de refutar: despediram Paulo de Tarso do Areópago com um banal "a respeito disso te ouviremos de outra vez" (At 17, 32) e mandaram ele passear, ou seja, nem consideraram essa história tola como algo digno de discussão, porque qualquer pensador grego, partindo dos mesmos pressupostos, chega rapidamente às conclusões que teu professor chegou. A sabedoria grega de então, como o nietzscherianismo de hoje, tornava o mero pensamento da morte e ressurreição de um deus uma loucura, impensável. Eis porque provavelmente o teu professor é lúcido, perfeitamente lúcido aos olhos de um filósofo grego tardio, ou de Nietzsche. Desse ponto de vista, o louco sou eu. Que aliás também sou Paulo, como o de Tarso.
Bom, os judeus tampouco aceitaram isso que teu professor chamou de "grande farsa", mas por motivos diversos: para eles, seria um escândalo que um "Messias" acabasse tão miseravelmente. O Messias, filho de Davi, deveria levar seu reino por sobre todas as nações, segundo eles acreditavam, o que obviamente era incompatível com um rabi miseravelmente crucificado. Escandaloso, portanto, segundo eles pensavam, que alguém se auto-declarasse messias, um "ungido de Deus", e morresse daquela forma. Maldito é aquele que é suspenso num madeiro, diz a lei judaica no Deuteronômio, 21, 23. Ainda mais com a placa "eis o rei dos Judeus" escrita em cima da cruz. Um escândalo inaceitável.
O fato é que, ontem como hoje, os judeus pedem sinais e os gregos andam em busca de sabedoria. Nós, porém, anunciamos Cristo crucificado, que para os judeus, é escândalo, para os gentios é loucura, mas para aqueles que são chamados, tanto judeus como gregos, é Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus. pois o que é loucura de Deus é mais sábio do que os homens, e o que é fraqueza de Deus é mais forte do que os homens. E note que eu nem tive o trabalho de escrever essa resposta: ela foi escrita pelo próprio Paulo de Tarso, em razão de questões tais como a do seu professor, e isso também há cerca de mil, novecentos e cinquenta anos. Está em I Coríntios 1, 22.
Quanto a este papo, presente no texto do teu amigo, de que "a vida que não tiver a maldade de devorar vidas não sobrevive", representa apenas um darwinismo de raiz malthusiana bem primário. Explico-me.
Falando do ponto de vista estritamente científico, vida nenhuma sobrevive, devorando ou não vidas. Todo ser vivo morre, quer seja predador, quer seja presa. Toda vida é efêmera, um filósofo melhor do que eu já disse um dia que a vida é uma doença altamente contagiosa que termina com 100% de letalidade. Não há salvação para o indivíduo, neste plano estritamente biológico, ou mesmo no plano filosófico do ceticismo, do materialismo ou do niilismo. A morte é certa, e esse fato nenhum sujeito pode negar, porque um dia se encontrará com ela própria, pessoalmente – quando, aliás, será muito tarde para tentar filosofar sobre ela.
Qualquer busca de salvação relativamente à morte certa de todo vivente, ainda que seja pelo devoramento de "milhões de vidas pelo apetite de quem come" é pura gnose primária. Que me desculpe o seu amigo, já li niilistas mais originais.
Recomendo a ele que largue um pouco Nietzsche de lado, e principalmente que não leia Dawkins ou, pior ainda, que deixe Dan Brown para lá.
Se ele aceitasse ler textos alheios com a mesma atenção com que eu li o livro de Nietzsche que você me recomendou, ou o texto dele que você carinhosamente me encaminhou, eu recomendaria que ele lesse David Stove, filósofo australiano agnóstico que escreveu um livro espetacular chamado "Darwinian Fairytales”, ou, mais perto de nós, o livro de um professor da UnB, que aliás tampouco é cristão, chamado "Polemos", onde esse tipo de colocação darwinista primária tem a resposta filosófica adequada. A edição é da própria UnB.
É pena que Nietzsche não tenha sido original nem em sua colocação mais bombástica: nós cristãos já tínhamos declarado, quase dois milênios antes dele, que Deus morreu e nós o matamos. Pena que ele não ficou sabendo do que aconteceu depois. Ele ressuscitou. Essa é a nossa esperança. Mas isso é um assunto para nós, os pequeninos. Não para doutores, Mt 11, 25.
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sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011
Eros e depressão
Ocorreu-me que, exatamente na época do cultivo ao corpo, da alegada sexualidade sem moralismos ou “repressões”, dos “avanços” no campo do controle de natalidade e do aborto, dos casamentos homossexuais e quejandos, vivemos também a era da depressão. Essa doença insidiosa, desconhecida na minha infância, que está se tornando uma verdadeira epidemia hoje. Tenho impressão de que poucos de nós têm a felicidade de dizer que não conhecem alguém severamente atingido por esse mal, seja em suas relações pessoais, seja no trabalho.
Eu estive relendo a belíssima encíclica papal “Deus Caritas Est”, e, ao estudar os trechos em que o Papa menciona a importância (embora não a suficiência) da dimensão erótica do amor para a integridade da psique humana, ocorreu-me um pensamento: como seria um ser humano desprovido de eros?
A encíclica ensina que o eros é essa força que impele o homem para fora de si mesmo, lança-o à procura de Deus e do mundo e, principalmente, da sua companhia sexual. "Ao amor entre homem e mulher, que não nasce da inteligência e da vontade mas de certa forma impõe-se ao ser humano, a Grécia antiga deu o nome de eros. Diga-se desde já que o Antigo Testamento grego usa só duas vezes a palavra eros, enquanto o Novo Testamento nunca a usa: das três palavras gregas relacionadas com o amor — eros, philia (amor de amizade) e agape — os escritos neo- testamentários privilegiam a última, que, na linguagem grega, era quase posta de lado. Quanto ao amor de amizade (philia), este é retomado com um significado mais profundo no Evangelho de João para exprimir a relação entre Jesus e os seus discípulos. " (Deus Caritas Est, n.º 3).
Não se trata, ensina-nos o Papa, de uma dimensão que esteja fora do campo semântico do amor, embora a expressão “amor” esteja bem desgastada hoje em dia. “O termo « amor » tornou-se hoje uma das palavras mais usadas e mesmo abusadas, à qual associamos significados completamente diferentes. Embora o tema desta Encíclica se concentre sobre a questão da compreensão e da prática do amor na Sagrada Escritura e na Tradição da Igreja, não podemos prescindir pura e simplesmente do significado que esta palavra tem nas várias culturas e na linguagem atual.”(Deus Caritas Est, n.º 2). E prossegue: “Em primeiro lugar, recordemos o vasto campo semântico da palavra « amor »: fala-se de amor da pátria, amor à profissão, amor entre amigos, amor ao trabalho, amor entre pais e filhos, entre irmãos e familiares, amor ao próximo e amor a Deus. Em toda esta gama de significados, porém, o amor entre o homem e a mulher, no qual concorrem indivisivelmente corpo e alma e se abre ao ser humano uma promessa de felicidade que parece irresistível, sobressai como arquétipo de amor por excelência, de tal modo que, comparados com ele, à primeira vista todos os demais tipos de amor se ofuscam. Surge então a questão: todas estas formas de amor no fim de contas unificam-se sendo o amor, apesar de toda a diversidade das suas manifestações, em última instância um só, ou, ao contrário, utilizamos uma mesma palavra para indicar realidades totalmente diferentes?” (idem, ibidem). A própria encíclica nos ensina que não – não se pode fragmentar o amor, ou ele perde totalmente o próprio sentido.
Ver, portanto, uma pessoa prostrada, incapaz de realizar o ato de sair de si em busca do outro, de maravilhar-se (ou ao menos, admirar) com o mundo, de buscar razões para continuar vivendo, em suma, capaz de romper a casca do si mesmo e, de alguma forma, encantar-se com o outro, é ver alguém sem eros.
Não se pode confundir, como se tem feito, o eros com a pornografia. Não se trata disso. Nós é que, muitas vezes, somos eufêmicos para falar daquilo que não se quer nomear devidamente, e acabamos por distorcer completamente o sentido das palavras. Assim, usamos a palavra “erotismo” quando deveríamos dizer “pornografia”, usamos a expressão “planejamento familiar” para ocultar a contracepção, chamamos o aborto de “interrupção provocada da gravidez” e a iniciativa de matar um ser humano no útero nós chamamos de “pró-escolha”. Assim, chamamos, muitas vezes, a pornografia de erotismo, com graves prejuízos para a compreensão do que é erotismo.
A esse respeito, a encíclica ensina que “O eros degradado a puro « sexo » torna-se mercadoria, torna-se simplesmente uma « coisa » que se pode comprar e vender; antes, o próprio homem torna-se mercadoria. Na realidade, para o homem, isto não constitui propriamente uma grande afirmação do seu corpo. Pelo contrário, agora considera o corpo e a sexualidade como a parte meramente material de si mesmo a usar e explorar com proveito. Uma parte, aliás, que ele não vê como um âmbito da sua liberdade, mas antes como algo que, a seu modo, procura tornar simultaneamente agradável e inócuo. Na verdade, encontramo-nos diante duma degradação do corpo humano, que deixa de estar integrado no conjunto da liberdade da nossa existência, deixa de ser expressão viva da totalidade do nosso ser, acabando como que relegado para o campo puramente biológico. A aparente exaltação do corpo pode bem depressa converter-se em ódio à corporeidade. Ao contrário, a fé cristã sempre considerou o homem como um ser uni-dual, em que espírito e matéria se compenetram mutuamente, experimentando ambos precisamente desta forma uma nova nobreza. Sim, o eros quer-nos elevar « em êxtase » para o Divino, conduzir-nos para além de nós próprios, mas por isso mesmo requer um caminho de ascese, renúncias, purificações e saneamentos.”
Assim, do mesmo modo que a ressaca se impõe ao homem como resultado da bebedeira, o vazio se impõe como resultado do eros degradado.
Lamentavelmente, vivemos numa era de dissociação: queremos dissociar a ressaca da bebedeira, queremos dissociar a reprodução do sexo, queremos dissociar a angústia do sexo barato. Ocorre que todas estas dimensões estão associadas, como respirar está associado a viver, e deixar de respirar, à morte.
Então, se acordo com uma bruta ressaca, depois de abusar da bebida ou de outra droga, a contemporaneidade me impede de associar a minha ressaca ao meu excesso, ao meu abuso: associo a ressaca a um remedinho que me cure dos seus sintomas.
Penso, aqui, no cônjuge apaixonado, casado, dedicado, seja homem ou mulher, que de repente se vê abandonado pelo outro, sem mais. Não é natural que ele mergulhe na tristeza? Imagino uma criança que vê o seu pai separado da sua mãe, ou vice-versa, e um terceiro (ou terceira) a exibir intimidades eróticas com esse genitor em público. A cultura atual considera inadequado que essa criança ou jovem fique constrangido, magoado ou irritado com essa situação: isso seria um moralismo ultrapassado, que impõe negar como anacronismo.
Assim, as dores que sentimos no nosso cotidiano não podem ser associadas às respectivas causas: devem ser combatidas quimicamente. Por que controlar a bebida, se posso tomar um engov? Como sentir raiva da minha mãe em apalpos com o seu novo namorado, se ela tem “direito de ser feliz”? Como sentir remorso pelo aborto praticado, se eu estava no exercício da minha “liberdade de escolha”? É claro, pois, que a dor que essas situações provocam já não pode ser associada às respectivas causas, por causa do patrulhamento contemporâneo. Não me permito sequer verbalizar que me sinto um crápula em fumar maconha, porque estou decepcionando o meu pai, homem humilde e trabalhador, que queria um filho sóbrio e limpo. Não, tudo isso é normal na nossa sociedade, e não posso me permitir sentir nenhuma dor causada por elas. Mas a dor existe. Logo, deve ter outra causa – não devo associá-las a esses “moralismos” ultrapassados.
Uma vez que a dor existe e que não posso sequer me permitir associá-las a aquilo que, há alguns anos atrás, seria claramente apontado como a sua causa, então só me resta imaginar que é uma dor existencial, genérica, inexplicável, que me corta a vontade de viver. Tira-me o eros.
Por outro lado, a ciência possui, no seu arsenal químico, maneiras de tratar dos sintomas dessa dor: mais e mais “pílulas de felicidade” vêm sendo desenvolvidas. Ora, então para que se preocupar com ética, com o reto e saudável viver, se podemos lidar com a sua dor sem correr o risco de associá-la com “sentimentos ultrapassados” ou “fora de moda”?
Não se trata, porém, de mais pornografia para superar a depressão. Não é isso. Como a própria encíclica ensina, “no fundo, o « amor » é uma única realidade, embora com distintas dimensões; caso a caso, pode uma ou outra dimensão sobressair mais. Mas, quando as duas dimensões se separam completamente uma da outra, surge uma caricatura ou, de qualquer modo, uma forma redutiva do amor. E vimos sinteticamente também que a fé bíblica não constrói um mundo paralelo ou um mundo contraposto àquele fenómeno humano originário que é o amor, mas aceita o homem por inteiro intervindo na sua busca de amor para purificá-la, desvendando-lhe ao mesmo tempo novas dimensões. Esta novidade da fé bíblica manifesta-se sobretudo em dois pontos que merecem ser sublinhados: a imagem de Deus e a imagem do homem.” (idem, n.º 8). Precisamos resgatar o agape, purificando o eros, e não degradando-o ainda mais. Entupir-nos de químicos nem sempre nos ajuda nesse caminho, mormente quando o problema não é estrita ou prevalentemente orgânico.
Triste sociedade, esta, em que um filho não pode chorar pela promiscuidade de sua própria mãe, ou que uma mãe não pode chorar por ter assassinado seu filho no ventre, ou que um drogado não pode chorar por ser a decepção do seu pai.
Eu estive relendo a belíssima encíclica papal “Deus Caritas Est”, e, ao estudar os trechos em que o Papa menciona a importância (embora não a suficiência) da dimensão erótica do amor para a integridade da psique humana, ocorreu-me um pensamento: como seria um ser humano desprovido de eros?
A encíclica ensina que o eros é essa força que impele o homem para fora de si mesmo, lança-o à procura de Deus e do mundo e, principalmente, da sua companhia sexual. "Ao amor entre homem e mulher, que não nasce da inteligência e da vontade mas de certa forma impõe-se ao ser humano, a Grécia antiga deu o nome de eros. Diga-se desde já que o Antigo Testamento grego usa só duas vezes a palavra eros, enquanto o Novo Testamento nunca a usa: das três palavras gregas relacionadas com o amor — eros, philia (amor de amizade) e agape — os escritos neo- testamentários privilegiam a última, que, na linguagem grega, era quase posta de lado. Quanto ao amor de amizade (philia), este é retomado com um significado mais profundo no Evangelho de João para exprimir a relação entre Jesus e os seus discípulos. " (Deus Caritas Est, n.º 3).
Não se trata, ensina-nos o Papa, de uma dimensão que esteja fora do campo semântico do amor, embora a expressão “amor” esteja bem desgastada hoje em dia. “O termo « amor » tornou-se hoje uma das palavras mais usadas e mesmo abusadas, à qual associamos significados completamente diferentes. Embora o tema desta Encíclica se concentre sobre a questão da compreensão e da prática do amor na Sagrada Escritura e na Tradição da Igreja, não podemos prescindir pura e simplesmente do significado que esta palavra tem nas várias culturas e na linguagem atual.”(Deus Caritas Est, n.º 2). E prossegue: “Em primeiro lugar, recordemos o vasto campo semântico da palavra « amor »: fala-se de amor da pátria, amor à profissão, amor entre amigos, amor ao trabalho, amor entre pais e filhos, entre irmãos e familiares, amor ao próximo e amor a Deus. Em toda esta gama de significados, porém, o amor entre o homem e a mulher, no qual concorrem indivisivelmente corpo e alma e se abre ao ser humano uma promessa de felicidade que parece irresistível, sobressai como arquétipo de amor por excelência, de tal modo que, comparados com ele, à primeira vista todos os demais tipos de amor se ofuscam. Surge então a questão: todas estas formas de amor no fim de contas unificam-se sendo o amor, apesar de toda a diversidade das suas manifestações, em última instância um só, ou, ao contrário, utilizamos uma mesma palavra para indicar realidades totalmente diferentes?” (idem, ibidem). A própria encíclica nos ensina que não – não se pode fragmentar o amor, ou ele perde totalmente o próprio sentido.
Ver, portanto, uma pessoa prostrada, incapaz de realizar o ato de sair de si em busca do outro, de maravilhar-se (ou ao menos, admirar) com o mundo, de buscar razões para continuar vivendo, em suma, capaz de romper a casca do si mesmo e, de alguma forma, encantar-se com o outro, é ver alguém sem eros.
Não se pode confundir, como se tem feito, o eros com a pornografia. Não se trata disso. Nós é que, muitas vezes, somos eufêmicos para falar daquilo que não se quer nomear devidamente, e acabamos por distorcer completamente o sentido das palavras. Assim, usamos a palavra “erotismo” quando deveríamos dizer “pornografia”, usamos a expressão “planejamento familiar” para ocultar a contracepção, chamamos o aborto de “interrupção provocada da gravidez” e a iniciativa de matar um ser humano no útero nós chamamos de “pró-escolha”. Assim, chamamos, muitas vezes, a pornografia de erotismo, com graves prejuízos para a compreensão do que é erotismo.
A esse respeito, a encíclica ensina que “O eros degradado a puro « sexo » torna-se mercadoria, torna-se simplesmente uma « coisa » que se pode comprar e vender; antes, o próprio homem torna-se mercadoria. Na realidade, para o homem, isto não constitui propriamente uma grande afirmação do seu corpo. Pelo contrário, agora considera o corpo e a sexualidade como a parte meramente material de si mesmo a usar e explorar com proveito. Uma parte, aliás, que ele não vê como um âmbito da sua liberdade, mas antes como algo que, a seu modo, procura tornar simultaneamente agradável e inócuo. Na verdade, encontramo-nos diante duma degradação do corpo humano, que deixa de estar integrado no conjunto da liberdade da nossa existência, deixa de ser expressão viva da totalidade do nosso ser, acabando como que relegado para o campo puramente biológico. A aparente exaltação do corpo pode bem depressa converter-se em ódio à corporeidade. Ao contrário, a fé cristã sempre considerou o homem como um ser uni-dual, em que espírito e matéria se compenetram mutuamente, experimentando ambos precisamente desta forma uma nova nobreza. Sim, o eros quer-nos elevar « em êxtase » para o Divino, conduzir-nos para além de nós próprios, mas por isso mesmo requer um caminho de ascese, renúncias, purificações e saneamentos.”
Assim, do mesmo modo que a ressaca se impõe ao homem como resultado da bebedeira, o vazio se impõe como resultado do eros degradado.
Lamentavelmente, vivemos numa era de dissociação: queremos dissociar a ressaca da bebedeira, queremos dissociar a reprodução do sexo, queremos dissociar a angústia do sexo barato. Ocorre que todas estas dimensões estão associadas, como respirar está associado a viver, e deixar de respirar, à morte.
Então, se acordo com uma bruta ressaca, depois de abusar da bebida ou de outra droga, a contemporaneidade me impede de associar a minha ressaca ao meu excesso, ao meu abuso: associo a ressaca a um remedinho que me cure dos seus sintomas.
Penso, aqui, no cônjuge apaixonado, casado, dedicado, seja homem ou mulher, que de repente se vê abandonado pelo outro, sem mais. Não é natural que ele mergulhe na tristeza? Imagino uma criança que vê o seu pai separado da sua mãe, ou vice-versa, e um terceiro (ou terceira) a exibir intimidades eróticas com esse genitor em público. A cultura atual considera inadequado que essa criança ou jovem fique constrangido, magoado ou irritado com essa situação: isso seria um moralismo ultrapassado, que impõe negar como anacronismo.
Assim, as dores que sentimos no nosso cotidiano não podem ser associadas às respectivas causas: devem ser combatidas quimicamente. Por que controlar a bebida, se posso tomar um engov? Como sentir raiva da minha mãe em apalpos com o seu novo namorado, se ela tem “direito de ser feliz”? Como sentir remorso pelo aborto praticado, se eu estava no exercício da minha “liberdade de escolha”? É claro, pois, que a dor que essas situações provocam já não pode ser associada às respectivas causas, por causa do patrulhamento contemporâneo. Não me permito sequer verbalizar que me sinto um crápula em fumar maconha, porque estou decepcionando o meu pai, homem humilde e trabalhador, que queria um filho sóbrio e limpo. Não, tudo isso é normal na nossa sociedade, e não posso me permitir sentir nenhuma dor causada por elas. Mas a dor existe. Logo, deve ter outra causa – não devo associá-las a esses “moralismos” ultrapassados.
Uma vez que a dor existe e que não posso sequer me permitir associá-las a aquilo que, há alguns anos atrás, seria claramente apontado como a sua causa, então só me resta imaginar que é uma dor existencial, genérica, inexplicável, que me corta a vontade de viver. Tira-me o eros.
Por outro lado, a ciência possui, no seu arsenal químico, maneiras de tratar dos sintomas dessa dor: mais e mais “pílulas de felicidade” vêm sendo desenvolvidas. Ora, então para que se preocupar com ética, com o reto e saudável viver, se podemos lidar com a sua dor sem correr o risco de associá-la com “sentimentos ultrapassados” ou “fora de moda”?
Não se trata, porém, de mais pornografia para superar a depressão. Não é isso. Como a própria encíclica ensina, “no fundo, o « amor » é uma única realidade, embora com distintas dimensões; caso a caso, pode uma ou outra dimensão sobressair mais. Mas, quando as duas dimensões se separam completamente uma da outra, surge uma caricatura ou, de qualquer modo, uma forma redutiva do amor. E vimos sinteticamente também que a fé bíblica não constrói um mundo paralelo ou um mundo contraposto àquele fenómeno humano originário que é o amor, mas aceita o homem por inteiro intervindo na sua busca de amor para purificá-la, desvendando-lhe ao mesmo tempo novas dimensões. Esta novidade da fé bíblica manifesta-se sobretudo em dois pontos que merecem ser sublinhados: a imagem de Deus e a imagem do homem.” (idem, n.º 8). Precisamos resgatar o agape, purificando o eros, e não degradando-o ainda mais. Entupir-nos de químicos nem sempre nos ajuda nesse caminho, mormente quando o problema não é estrita ou prevalentemente orgânico.
Triste sociedade, esta, em que um filho não pode chorar pela promiscuidade de sua própria mãe, ou que uma mãe não pode chorar por ter assassinado seu filho no ventre, ou que um drogado não pode chorar por ser a decepção do seu pai.
quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011
Confissão sacramental e psicanálise
Num período muito conturbado da minha vida, no qual o estresse de algumas situações foi muito forte para ser adequadamente equacionado por mim, busquei ajuda terapêutica. Foi muito bom; tive, durante quatro anos, o acompanhamento de uma médica com formação em psicanálise gestaltiana que me ajudou bastante a lidar com as minhas próprias limitações e deficiências. Embora de vez em quando eu ouvisse algumas colocações com as quais não concordava (percebi, mais tarde, que muitas dessas colocações que me incomodavam tinham um fundo no chamado New Age do que propriamente na psicanálise), tive muita ajuda para me conhecer melhor e lidar melhor com as situações estressantes que vivia. A melhor descrição do que a psicanálise significou para mim foi dada por C.S. Lewis, num trecho do livro “Cristianismo Puro e Simples” que transcrevo:
“Imagine três homens que vão à guerra. Um deles tem o medo natural do perigo que
qualquer pessoa tem, mas vence-o pelo esforço moral e se torna corajoso. Vamos supor que os outros dois
tenham, como resultado do que existe em seu subconsciente, um medo irracional e exagerado diante do qual
nenhum esforço moral consegue ser bem-sucedido. Imagine que um psicanalista consiga curar os dois, ou seja,
colocá-los de novo numa situação idêntica à do primeiro homem. É nesse momento em que o problema
psicanalítico está resolvido que começa o problema moral. Com a cura, os dois homens podem seguir caminhos
bastante diferentes. O primeiro deles talvez diga: "Graças a Deus, me livrei daquelas baboseiras. Enfim poderei
fazer o que sempre quis — servir ao meu país." O outro, porém, pode dizer: "Bem, estou muito contente por me
sentir relativamente tranqüilo diante do perigo, mas isso não altera o fato de que estou, como sempre estive,
determinado a pensar primeiro em mim e a deixar que outros camaradas façam o trabalho arriscado sempre que
eu puder. Aliás, um dos benefícios de me sentir menos aterrorizado é que consigo cuidar de mim de forma mais
eficiente e ser bem mais esperto para esconder esse fato dos outros." A diferença entre os dois é puramente
moral, e a psicanálise não tem mais nada a fazer a respeito. Por mais que ela melhore a matéria-prima do
homem, resta ainda outra coisa: a livre escolha do ser humano, uma escolha real feita a partir do material com
que ele depara. O homem pode dar primazia a si mesmo ou aos outros. E este livre-arbítrio é a única coisa da
qual a moralidade se ocupa.”
Bom, tudo isso foi para contar uma coisa interessante que aconteceu depois de longo tempo de terapia psicanalítica: um belo dia, depois de alguns anos falando da minha vida e recebendo a compreensão e o carinho da psicanalista (que constituiu-se numa figura materna da maior importância para mim), eu lhe disse, num final de sessão:
-Há uma mágoa que eu nunca lhe trouxe, aliás que só agora, depois de tanto tempo, ficou clara para mim.
- Qual seria? Perguntou-me ela.
- É que eu estou aqui há tantos anos, sentando para te contar sobre mim, meus medos, minhas angústias e meus sentimentos, e você nunca me perdoou.
- Como assim? (essa mania que os terapeutas têm de responder a uma indagação com uma pergunta deve ter vindo da origem judaica de Freud – a mim, hoje, parece muito rabínica...)
- Sei lá, não é que eu ache que eu tenha feito alguma coisa contra você nem nada, mas é por tudo que eu fiz, as coisas com as quais eu mesmo não concordo de tudo o que eu fiz na vida, sei lá, o mal que muitas vezes espelhei por aí e nunca consertei... Eu queria que você me perdoasse.
- Olha - (ela me falou com muita sinceridade) – eu posso te ajudar a lidar com esse tipo de sentimento de culpa. Mas não cabe a mim te perdoar. Aqui não é um confessionário, e eu não sou um sacerdote católico.
Bingo. Acho que foi essa frase dela que me curou. De fato, saí dali e procurei um padre, e fiz aquilo que não fazia havia muitos anos. Me confessei, longa e detidamente, e recebi o perdão sacramental. Continuei ainda com a psicanálise algum tempo, mas acabei me mudando de cidade e já não tinha paciência de começar de novo com outro psicanalista, contar tudo outra vez, estabelecer o vínculo de novo, enfim, a psicanálise acabou. Mas a confissão começou a fazer parte da minha vida, de modo regular, desde então. E, como às vezes eu digo brincando, com a vantagem de sair bem mais barato...
A resposta da minha psicanalista também me despertou para uma passagem bíblica que eu já lera e relera tantas vezes, e que já ouvira proclamada em tantas missas: “quem pode perdoar pecados, senão Deus?”, perguntam os fariseus a Jesus em Marcos 2, 7. De certa forma, é essa mesma intuição que a terapêutica me transmitiu: que autoridade ela teria para perdoar pecados que muitas vezes não causaram danos diretos a ela ou a ninguém em concreto, senão à minha saúde espiritual e à dos que me cercam, eventual ou permanentemente? Eu sentia um mal-estar muito real por tanta coisa da qual vinha tomando conhecimento e consciência ao longo do tratamento, coisas que eu fizera de ruim para mim mesmo, para os outros e para Deus, mal-estar que, mais tarde, eu soube chamar-se contrição. Mas entendo que ela não me quisesse perdoar: para perdoar, ela teria que me julgar, e para me julgar, ela teria que estar imbuída de alguma autoridade espiritual e moral que transcendesse a mim, a ela própria e aos outros. Mas essa autoridade não poderia ser uma autoridade simplesmente judicial, porque senão não resultaria em perdão, mas em condenação: um juiz estatal não pode absolver um notório culpado fora das hipóteses legais, porque as leis não lhe pertencem e estão acima dele, e os interesses em jogo não estão sob o seu domínio. A misericórdia humana não pode superar a justiça humana. Somente Deus pode, portanto, receber uma confissão sincera e contrita e dar o perdão misericordioso. Os fariseus estavam certos em seu raciocínio, quando fizeram aquela pergunta retórica a Jesus.
Mas Jesus responde:
- Para que vocês saibam que o Filho do Homem tem poder na terra para perdoar os pecados na terra, eu te ordeno – dirigindo-se ao paralítico a quem, pouco antes, perdoara os pecados – levanta-te e anda.
E assim aconteceu. O paralítico levantou-se e andou, vale dizer, a sua cura externa, determinada com poder por Jesus, foi um sinal da sua cura interna. No meu caso, primeiro precisei levantar e andar, por meio da psicanálise, para depois ter os meus pecados perdoados...
O fato é que esse poder de perdoar pecados foi transmitido aos apóstolos, de acordo com o evangelho de João, capítulo 20, versículos 22 e 23. João conta como Jesus ressuscitado soprou sobre os discípulos e lhes disse:
- Recebam o Espírito Santo. Aqueles a quem vocês perdoarem os pecados, estes serão perdoados. Aqueles a quem vocês não perdoarem terão os seus pecados retidos.
É interessante: há uma delegação expressa do poder de Deus aos discípulos de Jesus, no sentido de perdoar e reter pecados. É o que a teologia chama de autocomunicação de Deus aos homens. Mas não pode haver delegação de poder, por parte de Deus, sem o que chamamos (em ciência do direito) de “reserva de poderes”, vale dizer, não seria concebível que Deus delegasse aos homens em geral o poder de perdoar e reter pecados uns aos outros, porque, quando um ser humano qualquer negasse o perdão a qualquer outro ser humano, em nome dessa delegação, então nem o próprio Deus lhe poderia perdoar – uma vez que o tal sujeito que reteve no outro o pecado estaria agindo alegadamente em nome de uma delegação divina expressa. Violenta minha razão que as coisas sejam assim, e de fato elas não são.
O que há, portanto, é o prolongamento do poder que o Filho do homem tem de perdoar pecados, e esse poder é prolongado na exata medida em que o próprio Filho do Homem prolonga sua presença entre nós: a Igreja é o corpo místico de Jesus Cristo, como nos ensina são Paulo na primeira Carta aos Coríntios, capítulo 12, versículos 12 e seguintes.
Nesse corpo bendito de Jesus, que é a Igreja, nem todos têm os mesmos poderes e funções. “Porventura são todos apóstolos?” (Paulo, como bom rabino que era, também gosta de uma perguntinha retórica...). Assim, creio eu, nem todos receberam aquela delegação expressa por Jesus, de perdoar pecados e os reter em nome de Deus. Essa delegação deu-se nos que a receberam, e nos que, por seu turno, sucederam aqueles que a receberam. Porque é certo que houve, desde o começo, uma sucessão apostólica legítima, sempre que faltava algum apóstolo, como diz São Pedro em Atos 1, 20, citando o salmo 109, 8: “que outro receba o seu encargo”. Nesse processo sucessório, presidido pelo próprio São Pedro (a quem Jesus conferira expressamente o encargo de confirmar os irmãos, conforme o evangelho de São Lucas, 22, 32), a imposição das mãos sempre foi vista como necessária para a transmissão do poder sacerdotal na estrutura eclesial. Foi assim que Matias foi constituído em dignidade episcopal, e José de Barsabás, embora reconhecidamente justo e igualmente testemunha da vida, morte e ressurreição do Senhor, não (atos 1,23 a 26). Foi assim que São Paulo constituiu Timóteo na sua dignidade (Segunda Epístola de São Paulo a Timóteo, capítulo 1, versículo 6, como meio para receber o ministério e a graça, descrito no capítulo 4, 14), aconselhando-o a não ter pressa, por seu turno, a impor as mãos sobre outros (2Tim 5, 22), dada a gravidade da condição ministerial transmitida assim.
É nesse sentido que a Igreja ensina que a confissão é sacramental: trata-se do exercício de um poder estritamente divino, por delegação expressa de Jesus e na condição de membro da Igreja constituído em dignidade pela sucessão das mãos ininterrupta desde os apóstolos, e pelo qual uma pessoa pode ter certeza de ter sido perdoada por Deus, cuja misericórdia não é menor que a respectiva justiça.
É isso mesmo: Deus concedeu à Igreja, e somente a Ela, o poder de perdoar pecados. Quem alega se confessar “diretamente com Deus” despreza a Bíblia, porque não foi por meio da “confissão direta com Deus” que Jesus declarou que seríamos perdoados, mas pelo poder expressamente concedido aos seus discípulos numa de suas visitas quando ressuscitado e ainda não elevado aos céus. Citei o trecho bíblico acima. Poderia citar ainda a colocação expressa de Jesus, em Lucas 10, 16, de que quem ouve à Igreja, é a Ele, Jesus, que ouve. E quem a despreza, é a ele que está desprezando. A Igreja é a coluna e sustentáculo da verdade, como está escrito em 1Tim 3, 15. E Igreja, aí, não está escrito como uma palavra genérica: o primeiro ministro do Rei é reconhecido pelas chaves que carrega sobre os ombros (Isaías 22, 22), e essa chave está nos ombros de Pedro (Mt 16, 18), vale dizer, daquele que recebeu, por imposição ininterrupta das mãos, o ministério petrino – o Papa. Somente onde estiver Pedro, aí está a Igreja.
Por isso, procurei um sacerdote católico e me confessei, e tenho feito isso regularmente, desde então. Não há como descrever o bem que faz sair de uma confissão de alma leve.
“Imagine três homens que vão à guerra. Um deles tem o medo natural do perigo que
qualquer pessoa tem, mas vence-o pelo esforço moral e se torna corajoso. Vamos supor que os outros dois
tenham, como resultado do que existe em seu subconsciente, um medo irracional e exagerado diante do qual
nenhum esforço moral consegue ser bem-sucedido. Imagine que um psicanalista consiga curar os dois, ou seja,
colocá-los de novo numa situação idêntica à do primeiro homem. É nesse momento em que o problema
psicanalítico está resolvido que começa o problema moral. Com a cura, os dois homens podem seguir caminhos
bastante diferentes. O primeiro deles talvez diga: "Graças a Deus, me livrei daquelas baboseiras. Enfim poderei
fazer o que sempre quis — servir ao meu país." O outro, porém, pode dizer: "Bem, estou muito contente por me
sentir relativamente tranqüilo diante do perigo, mas isso não altera o fato de que estou, como sempre estive,
determinado a pensar primeiro em mim e a deixar que outros camaradas façam o trabalho arriscado sempre que
eu puder. Aliás, um dos benefícios de me sentir menos aterrorizado é que consigo cuidar de mim de forma mais
eficiente e ser bem mais esperto para esconder esse fato dos outros." A diferença entre os dois é puramente
moral, e a psicanálise não tem mais nada a fazer a respeito. Por mais que ela melhore a matéria-prima do
homem, resta ainda outra coisa: a livre escolha do ser humano, uma escolha real feita a partir do material com
que ele depara. O homem pode dar primazia a si mesmo ou aos outros. E este livre-arbítrio é a única coisa da
qual a moralidade se ocupa.”
Bom, tudo isso foi para contar uma coisa interessante que aconteceu depois de longo tempo de terapia psicanalítica: um belo dia, depois de alguns anos falando da minha vida e recebendo a compreensão e o carinho da psicanalista (que constituiu-se numa figura materna da maior importância para mim), eu lhe disse, num final de sessão:
-Há uma mágoa que eu nunca lhe trouxe, aliás que só agora, depois de tanto tempo, ficou clara para mim.
- Qual seria? Perguntou-me ela.
- É que eu estou aqui há tantos anos, sentando para te contar sobre mim, meus medos, minhas angústias e meus sentimentos, e você nunca me perdoou.
- Como assim? (essa mania que os terapeutas têm de responder a uma indagação com uma pergunta deve ter vindo da origem judaica de Freud – a mim, hoje, parece muito rabínica...)
- Sei lá, não é que eu ache que eu tenha feito alguma coisa contra você nem nada, mas é por tudo que eu fiz, as coisas com as quais eu mesmo não concordo de tudo o que eu fiz na vida, sei lá, o mal que muitas vezes espelhei por aí e nunca consertei... Eu queria que você me perdoasse.
- Olha - (ela me falou com muita sinceridade) – eu posso te ajudar a lidar com esse tipo de sentimento de culpa. Mas não cabe a mim te perdoar. Aqui não é um confessionário, e eu não sou um sacerdote católico.
Bingo. Acho que foi essa frase dela que me curou. De fato, saí dali e procurei um padre, e fiz aquilo que não fazia havia muitos anos. Me confessei, longa e detidamente, e recebi o perdão sacramental. Continuei ainda com a psicanálise algum tempo, mas acabei me mudando de cidade e já não tinha paciência de começar de novo com outro psicanalista, contar tudo outra vez, estabelecer o vínculo de novo, enfim, a psicanálise acabou. Mas a confissão começou a fazer parte da minha vida, de modo regular, desde então. E, como às vezes eu digo brincando, com a vantagem de sair bem mais barato...
A resposta da minha psicanalista também me despertou para uma passagem bíblica que eu já lera e relera tantas vezes, e que já ouvira proclamada em tantas missas: “quem pode perdoar pecados, senão Deus?”, perguntam os fariseus a Jesus em Marcos 2, 7. De certa forma, é essa mesma intuição que a terapêutica me transmitiu: que autoridade ela teria para perdoar pecados que muitas vezes não causaram danos diretos a ela ou a ninguém em concreto, senão à minha saúde espiritual e à dos que me cercam, eventual ou permanentemente? Eu sentia um mal-estar muito real por tanta coisa da qual vinha tomando conhecimento e consciência ao longo do tratamento, coisas que eu fizera de ruim para mim mesmo, para os outros e para Deus, mal-estar que, mais tarde, eu soube chamar-se contrição. Mas entendo que ela não me quisesse perdoar: para perdoar, ela teria que me julgar, e para me julgar, ela teria que estar imbuída de alguma autoridade espiritual e moral que transcendesse a mim, a ela própria e aos outros. Mas essa autoridade não poderia ser uma autoridade simplesmente judicial, porque senão não resultaria em perdão, mas em condenação: um juiz estatal não pode absolver um notório culpado fora das hipóteses legais, porque as leis não lhe pertencem e estão acima dele, e os interesses em jogo não estão sob o seu domínio. A misericórdia humana não pode superar a justiça humana. Somente Deus pode, portanto, receber uma confissão sincera e contrita e dar o perdão misericordioso. Os fariseus estavam certos em seu raciocínio, quando fizeram aquela pergunta retórica a Jesus.
Mas Jesus responde:
- Para que vocês saibam que o Filho do Homem tem poder na terra para perdoar os pecados na terra, eu te ordeno – dirigindo-se ao paralítico a quem, pouco antes, perdoara os pecados – levanta-te e anda.
E assim aconteceu. O paralítico levantou-se e andou, vale dizer, a sua cura externa, determinada com poder por Jesus, foi um sinal da sua cura interna. No meu caso, primeiro precisei levantar e andar, por meio da psicanálise, para depois ter os meus pecados perdoados...
O fato é que esse poder de perdoar pecados foi transmitido aos apóstolos, de acordo com o evangelho de João, capítulo 20, versículos 22 e 23. João conta como Jesus ressuscitado soprou sobre os discípulos e lhes disse:
- Recebam o Espírito Santo. Aqueles a quem vocês perdoarem os pecados, estes serão perdoados. Aqueles a quem vocês não perdoarem terão os seus pecados retidos.
É interessante: há uma delegação expressa do poder de Deus aos discípulos de Jesus, no sentido de perdoar e reter pecados. É o que a teologia chama de autocomunicação de Deus aos homens. Mas não pode haver delegação de poder, por parte de Deus, sem o que chamamos (em ciência do direito) de “reserva de poderes”, vale dizer, não seria concebível que Deus delegasse aos homens em geral o poder de perdoar e reter pecados uns aos outros, porque, quando um ser humano qualquer negasse o perdão a qualquer outro ser humano, em nome dessa delegação, então nem o próprio Deus lhe poderia perdoar – uma vez que o tal sujeito que reteve no outro o pecado estaria agindo alegadamente em nome de uma delegação divina expressa. Violenta minha razão que as coisas sejam assim, e de fato elas não são.
O que há, portanto, é o prolongamento do poder que o Filho do homem tem de perdoar pecados, e esse poder é prolongado na exata medida em que o próprio Filho do Homem prolonga sua presença entre nós: a Igreja é o corpo místico de Jesus Cristo, como nos ensina são Paulo na primeira Carta aos Coríntios, capítulo 12, versículos 12 e seguintes.
Nesse corpo bendito de Jesus, que é a Igreja, nem todos têm os mesmos poderes e funções. “Porventura são todos apóstolos?” (Paulo, como bom rabino que era, também gosta de uma perguntinha retórica...). Assim, creio eu, nem todos receberam aquela delegação expressa por Jesus, de perdoar pecados e os reter em nome de Deus. Essa delegação deu-se nos que a receberam, e nos que, por seu turno, sucederam aqueles que a receberam. Porque é certo que houve, desde o começo, uma sucessão apostólica legítima, sempre que faltava algum apóstolo, como diz São Pedro em Atos 1, 20, citando o salmo 109, 8: “que outro receba o seu encargo”. Nesse processo sucessório, presidido pelo próprio São Pedro (a quem Jesus conferira expressamente o encargo de confirmar os irmãos, conforme o evangelho de São Lucas, 22, 32), a imposição das mãos sempre foi vista como necessária para a transmissão do poder sacerdotal na estrutura eclesial. Foi assim que Matias foi constituído em dignidade episcopal, e José de Barsabás, embora reconhecidamente justo e igualmente testemunha da vida, morte e ressurreição do Senhor, não (atos 1,23 a 26). Foi assim que São Paulo constituiu Timóteo na sua dignidade (Segunda Epístola de São Paulo a Timóteo, capítulo 1, versículo 6, como meio para receber o ministério e a graça, descrito no capítulo 4, 14), aconselhando-o a não ter pressa, por seu turno, a impor as mãos sobre outros (2Tim 5, 22), dada a gravidade da condição ministerial transmitida assim.
É nesse sentido que a Igreja ensina que a confissão é sacramental: trata-se do exercício de um poder estritamente divino, por delegação expressa de Jesus e na condição de membro da Igreja constituído em dignidade pela sucessão das mãos ininterrupta desde os apóstolos, e pelo qual uma pessoa pode ter certeza de ter sido perdoada por Deus, cuja misericórdia não é menor que a respectiva justiça.
É isso mesmo: Deus concedeu à Igreja, e somente a Ela, o poder de perdoar pecados. Quem alega se confessar “diretamente com Deus” despreza a Bíblia, porque não foi por meio da “confissão direta com Deus” que Jesus declarou que seríamos perdoados, mas pelo poder expressamente concedido aos seus discípulos numa de suas visitas quando ressuscitado e ainda não elevado aos céus. Citei o trecho bíblico acima. Poderia citar ainda a colocação expressa de Jesus, em Lucas 10, 16, de que quem ouve à Igreja, é a Ele, Jesus, que ouve. E quem a despreza, é a ele que está desprezando. A Igreja é a coluna e sustentáculo da verdade, como está escrito em 1Tim 3, 15. E Igreja, aí, não está escrito como uma palavra genérica: o primeiro ministro do Rei é reconhecido pelas chaves que carrega sobre os ombros (Isaías 22, 22), e essa chave está nos ombros de Pedro (Mt 16, 18), vale dizer, daquele que recebeu, por imposição ininterrupta das mãos, o ministério petrino – o Papa. Somente onde estiver Pedro, aí está a Igreja.
Por isso, procurei um sacerdote católico e me confessei, e tenho feito isso regularmente, desde então. Não há como descrever o bem que faz sair de uma confissão de alma leve.
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quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011
O falso problema da evolução contra a religião
Dentro do ciclo de adaptações para o ensino médio, o meu filho mais velho, atualmente cursando o nono ano, teve uma aula com o futuro professor de biologia do ensino médio, cujo nome ele não soube me dizer. Mas o relato que ele fez sobre as colocações desse professor em sala de aula não podiam deixar de me assustar.
Segundo ele, tratando do tema da evolução, o professor teria feito diversas considerações sobre Deus, a Bíblia, a religião, em nome de uma “comunidade científica” que estava gerando “vida em laboratório” (o professor teria expressamente declinado um conceito próprio de “vida” como toda substância que é capaz de reproduzir-se) e expressamente teria ameaçado com notas baixas os alunos que ousassem envolver Deus com a biologia. Desenvolveu uma concepção cósmica evolucionista muito além dos limites científicos e estabeleceu o homem como mero fruto de uma evolução natural de fundo acidental, criticando a religião por ter ensinado uma criação estática, separada e imutável das espécies diretamente por Deus, que o Gênesis (que ele leu como se fosse um livro de ciências anacrônico) ensinaria.
Não sei se foi exatamente isto o que o professor disse em sala de aula, ou se o meu filho foi infeliz em retransmitir-me. Mas ele fez um comentário que muito me tocou: “pai, eu queria que os professores de religião defendessem Deus na sala com a mesma veemência com que este professor de biologia o atacou”.
Ora, sei - e acredito que os senhores sabem também - que circulam no mercado alguns livros pseudo-científicos de autoria, dentre outros, de um pseudo-cientista e mau teólogo chamado Richard Dawkins. Não estou dizendo que o professor de biologia que se apresentou para o meu filho o tenha lido, mas as posições que meu filho relatou terem sido expostas na sala são muito parecidas com as divulgadas por esse escritor americano a quem chamo de pseudo-cientista e de mau teólogo até por conta de artigos que ele publica na área de religião, como um artigo denominado “Atheists for Jesus”, de cunho fortemente religioso, que ele publicou na internet.
Por outro lado, chamo Richard Dawkins de pseudo-cientista porque a verdadeira ciência lida com fatos, não com valores. Como cientista, conheço um átomo de carbono e um de urânio, sei que são diferentes, mas jamais poderei afirmar, de um ponto de vista estritamente científico, que o urânio é melhor que o carbono. Um cientista sabe disso. Um pseudo-cientista, não. Examinando uma barata e um elefante, um cientista descreve as suas diferenças, estabelece as mutações e pressões seletivas que sofreram ao longo das eras geológicas, registra a complexidade dos respectivos organismos e mostra a quais realidades ambientais esses organismos estão mais adequadamente adaptados. Um pseudo-cientista afirma que o elefante é mais “evoluído” que a barata, no sentido de que um é “melhor” que o outro - o que é impossível de estabelecer cientificamente. Um elefante é “melhor” que uma barata se o assunto é resistir a um pisão. Mas a barata é “melhor” que o elefante quando se trata de sobreviver a uma explosão atômica. O que passa daí é propaganda religiosa anti-cristã mal disfarçada.
Um verdadeiro cientista, portanto, nem sequer pode acreditar num “gene egoísta”, como faz Richard Dawkins. Ao estabelecer que um processo natural explica a existência do próprio homem como acaso, e que este acaso supera a própria aparente vontade do indivíduo humano, o pseudo-cientista está teologizando. Por essa teologização, ele passa a construir uma deontologia, vale dizer, estabelecer valores. Se o simples acaso explica integralmente a minha própria vida espiritual como resultante acidental da vida biológica, a minha vontade é ilusória. A vida é uma mera competição do mais apto. Assim, qualquer norma que barre a reprodução do mais apto - entendido como aquele capaz de transmitir seus próprios genes à geração posterior - é ilógica, e portanto anti-científica. Tanto quanto uma lei que proíba uma pedra de cair. Qualquer lei que me impeça de possuir o corpo mais perfeito do sexo oposto que eu possa encontrar, de modo a garantir que meus próprios genes transmitam-se da forma mais eficaz possível, é anti-científica e, nesse contexto, desnecessária. Não foi diverso o surgimento das ideologias totalitárias do século XX.
Muitas vezes essas consequências passam despercebidas ao bom biólogo e mau filósofo, mas é por isso que, quando os bons biólogos têm humildade suficiente, evitam filosofar ou teologar de forma apodítica, mormente para um público indefeso.
Por outro lado, a fé católica jamais estabeleceu conflitos entre criacionismo e evolucionismo. Entre fé bíblica e ciência. Esse é um conflito falso, existente apenas entre fundamentalistas bíblicos norte-americanos e pseudo-cientistas ateus desinformados ou empolgados, que nós, católicos, não queremos ver trazidos para as nossas salas de aula. Respeitamos a ciência e a biologia, respeitamos o modelo científico da adaptação das espécies como paradigma que é capaz de explicar fenômenos naturais de forma bastante satisfatória, mas ainda tecnicamente limitada. Respeitamos a liberdade religiosa dos nossos professores de biologia, inclusive a do ateísmo ou do anti-cristianismo. Mas esperamos que os cientistas e professores de ciência respeitem a fé alheia, ao menos expondo seu próprio ateísmo de uma forma mais humilde, com mais respeito a quem crê em Deus e lê corretamente a Bíblia como um livro salvífico. O respeito na sala deve-se, ao menos, à confessionalidade da escola. Deixar de fazer boa ciência para fazer péssima hermenêutica e pior teologia, em prejuízo da fé dos jovens alunos, num período crucial para o seu desenvolvimento espiritual é, no mínimo, inconveniente. É preciso ensinar livremente a teoria biológica que a direção pedagógica entender cabível ou necessária. Mas é necessário deixar para expressar suas opiniões anti-religiosas - mormente baseadas em pressupostos tão frágeis - em particular, ao invés de provocar jovens imaturos de treze-catorze anos com angústias que eles são incapazes de elaborar. Tenho certeza que esses debates, sobre ciência e fé, são importantíssimos, mas tenho certeza também que, se o professor de biologia quiser travá-los com seriedade e honestidade dentro da escola, encontrará nos pais, filósofos, padres e professores de religião adversários mais adequados do que os jovens indefesos perante a sua natural autoridade professoral. Prontifico-me a esse debate, se a escola considerar necessário. Prontifico-me também a encontrar, na comunidade científica e religiosa local, os profissionais capacitados a responder mais adequadamente a argumentos anti-bíblicos e anti-teístas tão surrados e ultrapassados, forjados num cenário fundamentalista norte-americano que não é o nosso e que não aceitamos que seja transplantado para cá.
Para melhor conhecer as posições católicas sobre biologia e evolucionismo, sugiro ao referido professor a leitura de material de qualidade, que desde já indico:
- Chance or Purpose, Cristoph Schönborn, Bispo extremamente bem-informado neste particular.
- Criação e Evolução Uma Jornada com o Papa Bento XVI em Castel Gandolfo, mostra a profundidade e a abertura desta discussão na Igreja, impossível de ser transmitida aos alunos da forma deselegante com que meu filho relatou que ocorreu em sala de aula.
- Did Darwin Get it Right? George Sim Johnston, apresentação correta do melhor que a inteligência católica pensou no particular.
- Fighting the New Atheism, Dismantling Dawkins' Case Against God, Scott Hahn and Benjamin Walker.
Para uma crítica científica à visão totalitária de um evolucionismo ideológico, recomendo os excelentes livros de Michael Behe, “A Caixa-Preta de Darwin” e “The Edge of Evolution”, embora este autor, com excelente formação científica, fuja um pouco da posição católica ao insistir em encontrar Deus nas “lacunas” do processo evolutivo. Sabemos, nós cristãos católicos, que Deus não se deixa prender em lacunas científicas.
No plano filosófico, encaminho, em anexo, dois livros excelentes, o primeiro de um filósofo cristão francês contemporâneo, Etienne Gilson, chamado “De Aristóteles a Darwin e Vice-Versa”, esgotado na França e sem edição em português. Pode-se encontrar uma edição em inglês nas livrarias virtuais americanas. Nessa obra fica bem clara a diferença entre os mecanismos científicos de adaptação das espécies como paradigma defensável, por um lado, e a filosofia spenceriana da evolução como mundividência ideológica anti-cristã não falsificável (sob o conceito Popperiano), e portanto não científica.
Recomendo também o livro “Darwinian Fairytales”, não editado no Brasil, do filósofo agnóstico australiano contemporâneo David Stove, onde se demonstra a inconsistência de querer transformar um modelo científico numa nova religião, tornando claros todos os falsos pressupostos filosóficos que estão por trás dessa posição.
De igual modo, recomendo o excelente livro do biólogo australiano Michael Denton, também nunca publicado no Brasil, denominado “A Evolução Terá Sentido?”, onde ficam bem claras as limitações científicas do respeitável modelo darwiniano, numa linguagem técnica biológica profunda, que, acredito, não causará dificuldades para a leitura do referido professor.
Por fim, recomendo o livro “ A Linguagem de Deus”, escrito pelo cientista americano Francis Collins, ninguém menos do que o diretor do projeto americano “Genoma”, que mapeou integralmente o DNA humano. Lá, esse grande cientista, usando uma linguagem técnica bem correta, embora acessível ao grande público, mostra como a verdadeira ciência biológica e a fé bíblica jamais podem entrar em verdadeiro conflito. Portanto, prova irrefutável de que a “comunidade científica”, pelo menos a que realmente faz jus a esse nome, sabe a diferença entre boa ciência e má teologia.
No mais, espero que tudo não tenha passado realmente disso - de um mal-entendido. Nenhum católico faz a leitura rasteira da Bíblia que, segundo o meu filho, o professor utilizou na sala de aula. Caricaturar a fé bíblica em Deus para atacá-la de um ponto de vista aparentemente científico e destruir a pequena fé de jovens despreparados parece ser uma estratégia realmente demoníaca, que eu acredito que não foi utilizada aqui.
Segundo ele, tratando do tema da evolução, o professor teria feito diversas considerações sobre Deus, a Bíblia, a religião, em nome de uma “comunidade científica” que estava gerando “vida em laboratório” (o professor teria expressamente declinado um conceito próprio de “vida” como toda substância que é capaz de reproduzir-se) e expressamente teria ameaçado com notas baixas os alunos que ousassem envolver Deus com a biologia. Desenvolveu uma concepção cósmica evolucionista muito além dos limites científicos e estabeleceu o homem como mero fruto de uma evolução natural de fundo acidental, criticando a religião por ter ensinado uma criação estática, separada e imutável das espécies diretamente por Deus, que o Gênesis (que ele leu como se fosse um livro de ciências anacrônico) ensinaria.
Não sei se foi exatamente isto o que o professor disse em sala de aula, ou se o meu filho foi infeliz em retransmitir-me. Mas ele fez um comentário que muito me tocou: “pai, eu queria que os professores de religião defendessem Deus na sala com a mesma veemência com que este professor de biologia o atacou”.
Ora, sei - e acredito que os senhores sabem também - que circulam no mercado alguns livros pseudo-científicos de autoria, dentre outros, de um pseudo-cientista e mau teólogo chamado Richard Dawkins. Não estou dizendo que o professor de biologia que se apresentou para o meu filho o tenha lido, mas as posições que meu filho relatou terem sido expostas na sala são muito parecidas com as divulgadas por esse escritor americano a quem chamo de pseudo-cientista e de mau teólogo até por conta de artigos que ele publica na área de religião, como um artigo denominado “Atheists for Jesus”, de cunho fortemente religioso, que ele publicou na internet.
Por outro lado, chamo Richard Dawkins de pseudo-cientista porque a verdadeira ciência lida com fatos, não com valores. Como cientista, conheço um átomo de carbono e um de urânio, sei que são diferentes, mas jamais poderei afirmar, de um ponto de vista estritamente científico, que o urânio é melhor que o carbono. Um cientista sabe disso. Um pseudo-cientista, não. Examinando uma barata e um elefante, um cientista descreve as suas diferenças, estabelece as mutações e pressões seletivas que sofreram ao longo das eras geológicas, registra a complexidade dos respectivos organismos e mostra a quais realidades ambientais esses organismos estão mais adequadamente adaptados. Um pseudo-cientista afirma que o elefante é mais “evoluído” que a barata, no sentido de que um é “melhor” que o outro - o que é impossível de estabelecer cientificamente. Um elefante é “melhor” que uma barata se o assunto é resistir a um pisão. Mas a barata é “melhor” que o elefante quando se trata de sobreviver a uma explosão atômica. O que passa daí é propaganda religiosa anti-cristã mal disfarçada.
Um verdadeiro cientista, portanto, nem sequer pode acreditar num “gene egoísta”, como faz Richard Dawkins. Ao estabelecer que um processo natural explica a existência do próprio homem como acaso, e que este acaso supera a própria aparente vontade do indivíduo humano, o pseudo-cientista está teologizando. Por essa teologização, ele passa a construir uma deontologia, vale dizer, estabelecer valores. Se o simples acaso explica integralmente a minha própria vida espiritual como resultante acidental da vida biológica, a minha vontade é ilusória. A vida é uma mera competição do mais apto. Assim, qualquer norma que barre a reprodução do mais apto - entendido como aquele capaz de transmitir seus próprios genes à geração posterior - é ilógica, e portanto anti-científica. Tanto quanto uma lei que proíba uma pedra de cair. Qualquer lei que me impeça de possuir o corpo mais perfeito do sexo oposto que eu possa encontrar, de modo a garantir que meus próprios genes transmitam-se da forma mais eficaz possível, é anti-científica e, nesse contexto, desnecessária. Não foi diverso o surgimento das ideologias totalitárias do século XX.
Muitas vezes essas consequências passam despercebidas ao bom biólogo e mau filósofo, mas é por isso que, quando os bons biólogos têm humildade suficiente, evitam filosofar ou teologar de forma apodítica, mormente para um público indefeso.
Por outro lado, a fé católica jamais estabeleceu conflitos entre criacionismo e evolucionismo. Entre fé bíblica e ciência. Esse é um conflito falso, existente apenas entre fundamentalistas bíblicos norte-americanos e pseudo-cientistas ateus desinformados ou empolgados, que nós, católicos, não queremos ver trazidos para as nossas salas de aula. Respeitamos a ciência e a biologia, respeitamos o modelo científico da adaptação das espécies como paradigma que é capaz de explicar fenômenos naturais de forma bastante satisfatória, mas ainda tecnicamente limitada. Respeitamos a liberdade religiosa dos nossos professores de biologia, inclusive a do ateísmo ou do anti-cristianismo. Mas esperamos que os cientistas e professores de ciência respeitem a fé alheia, ao menos expondo seu próprio ateísmo de uma forma mais humilde, com mais respeito a quem crê em Deus e lê corretamente a Bíblia como um livro salvífico. O respeito na sala deve-se, ao menos, à confessionalidade da escola. Deixar de fazer boa ciência para fazer péssima hermenêutica e pior teologia, em prejuízo da fé dos jovens alunos, num período crucial para o seu desenvolvimento espiritual é, no mínimo, inconveniente. É preciso ensinar livremente a teoria biológica que a direção pedagógica entender cabível ou necessária. Mas é necessário deixar para expressar suas opiniões anti-religiosas - mormente baseadas em pressupostos tão frágeis - em particular, ao invés de provocar jovens imaturos de treze-catorze anos com angústias que eles são incapazes de elaborar. Tenho certeza que esses debates, sobre ciência e fé, são importantíssimos, mas tenho certeza também que, se o professor de biologia quiser travá-los com seriedade e honestidade dentro da escola, encontrará nos pais, filósofos, padres e professores de religião adversários mais adequados do que os jovens indefesos perante a sua natural autoridade professoral. Prontifico-me a esse debate, se a escola considerar necessário. Prontifico-me também a encontrar, na comunidade científica e religiosa local, os profissionais capacitados a responder mais adequadamente a argumentos anti-bíblicos e anti-teístas tão surrados e ultrapassados, forjados num cenário fundamentalista norte-americano que não é o nosso e que não aceitamos que seja transplantado para cá.
Para melhor conhecer as posições católicas sobre biologia e evolucionismo, sugiro ao referido professor a leitura de material de qualidade, que desde já indico:
- Chance or Purpose, Cristoph Schönborn, Bispo extremamente bem-informado neste particular.
- Criação e Evolução Uma Jornada com o Papa Bento XVI em Castel Gandolfo, mostra a profundidade e a abertura desta discussão na Igreja, impossível de ser transmitida aos alunos da forma deselegante com que meu filho relatou que ocorreu em sala de aula.
- Did Darwin Get it Right? George Sim Johnston, apresentação correta do melhor que a inteligência católica pensou no particular.
- Fighting the New Atheism, Dismantling Dawkins' Case Against God, Scott Hahn and Benjamin Walker.
Para uma crítica científica à visão totalitária de um evolucionismo ideológico, recomendo os excelentes livros de Michael Behe, “A Caixa-Preta de Darwin” e “The Edge of Evolution”, embora este autor, com excelente formação científica, fuja um pouco da posição católica ao insistir em encontrar Deus nas “lacunas” do processo evolutivo. Sabemos, nós cristãos católicos, que Deus não se deixa prender em lacunas científicas.
No plano filosófico, encaminho, em anexo, dois livros excelentes, o primeiro de um filósofo cristão francês contemporâneo, Etienne Gilson, chamado “De Aristóteles a Darwin e Vice-Versa”, esgotado na França e sem edição em português. Pode-se encontrar uma edição em inglês nas livrarias virtuais americanas. Nessa obra fica bem clara a diferença entre os mecanismos científicos de adaptação das espécies como paradigma defensável, por um lado, e a filosofia spenceriana da evolução como mundividência ideológica anti-cristã não falsificável (sob o conceito Popperiano), e portanto não científica.
Recomendo também o livro “Darwinian Fairytales”, não editado no Brasil, do filósofo agnóstico australiano contemporâneo David Stove, onde se demonstra a inconsistência de querer transformar um modelo científico numa nova religião, tornando claros todos os falsos pressupostos filosóficos que estão por trás dessa posição.
De igual modo, recomendo o excelente livro do biólogo australiano Michael Denton, também nunca publicado no Brasil, denominado “A Evolução Terá Sentido?”, onde ficam bem claras as limitações científicas do respeitável modelo darwiniano, numa linguagem técnica biológica profunda, que, acredito, não causará dificuldades para a leitura do referido professor.
Por fim, recomendo o livro “ A Linguagem de Deus”, escrito pelo cientista americano Francis Collins, ninguém menos do que o diretor do projeto americano “Genoma”, que mapeou integralmente o DNA humano. Lá, esse grande cientista, usando uma linguagem técnica bem correta, embora acessível ao grande público, mostra como a verdadeira ciência biológica e a fé bíblica jamais podem entrar em verdadeiro conflito. Portanto, prova irrefutável de que a “comunidade científica”, pelo menos a que realmente faz jus a esse nome, sabe a diferença entre boa ciência e má teologia.
No mais, espero que tudo não tenha passado realmente disso - de um mal-entendido. Nenhum católico faz a leitura rasteira da Bíblia que, segundo o meu filho, o professor utilizou na sala de aula. Caricaturar a fé bíblica em Deus para atacá-la de um ponto de vista aparentemente científico e destruir a pequena fé de jovens despreparados parece ser uma estratégia realmente demoníaca, que eu acredito que não foi utilizada aqui.
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