terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

São Paulo e a separação entre religião e estado

Não há filosofia desencarnada. Um filósofo sempre dispõe, para o seu uso, dos conceitos, instrumentais e linguagem que, de certo modo, são correntes no seu tempo. Assim, não é de estranhar que Descartes, tendo marcado o advento da chamada “filosofia moderna”, tivesse que se valer do instrumental linguístico escolástico para expor suas próprias ideias. Aliás, sabe-se que boa parte da filosofia, desde o século XIX, dedica-se exatamente a estudar isso: a relação íntima entre filosofia e linguagem, que alguns chegaram – como parece ser o caso dos neopositivistas – a defender como sendo um caso de identidade, não de relação. Não parece ser assim: mal comparando um filósofo a um carpinteiro, uma mesa bem-feita possui em si mais do que o simples uso das ferramentas de marcenaria mais perfeitas – há a habilidade de quem as usa. Assim, além da limitação temporal, do “ser aí” do filósofo (como diria Heidegger), há sempre algo em seu pensamento que transcende o seu tempo, e isso o faz filósofo. Em muitos casos, diríamos, essa transcendência da palavra filosofante se dá no interior da própria “figura” histórica em que o filósofo está inserido (para usar um modo de falar hegeliano). Seria uma transcendência relativa. Em alguns casos, no entanto, parece haver uma transcendência incondicionada, uma abertura da palavra ao eterno, ao transcendente absoluto, que transforma aquela palavra em algo valioso para todos os tempos e lugares, um rompimento do “ser aí” para alcançar um valor permanente no sentido do que está sendo dito. Nesses momentos, em que a razão humana bordeja o logos, ou o filósofo passa a acreditar-se como divino em si mesmo, capaz de sintetizar em sua mente o desenvolvimento da história rumo ao total, ou então surge um profeta – aquele que, tendo vislumbrado a verdade, reconhece-a alheia a si mesmo, mas quer-se fazer amigo dela. O profeta é aquele que sabe que não é a luz, mas dá testemunho da luz.
O inegável é que o filosofar relaciona-se sempre, ao menos quanto à sua possibilidade de expressão, aos instrumentos de pensamento e expressão disponíveis. Se essa relação, como dissemos atrás, é de identidade ou de instrumentalidade, não discutiremos aqui. A ideia é outra, e estas palavras são apenas introdução para o exercício que quero propor.
O exercício é abordar a Bíblia sob um ponto de vista da teoria geral do Direito e do Estado. Sob este enfoque, perquirir: qual a relação entre a noção bíblica de “lei” e a atual teoria constitucional, e se a Torah, construída em torno da figura de Moisés, pode ser vista como uma “constituição do Estado de Israel” pré-cristão. É apenas um exercício, por isso não pretendo aprofundar-me nos aspectos mais técnicos da história do Reino de israel, nem nos aspectos propriamente religiosos da Bíblia como palavra de Deus ou da própria formação do cânon. Pretendo apenas propor uma abordagem diferente, diversa, fazer pensar um pouco, controverter, questionar, usando uma doce irresponsabilidade acadêmica própria dos que não pertencem a nenhuma academia.
Dado o Estado de Israel pré-cristão, imaginemo-nos, anacronicamente, procurando os elementos que justificam, para nós, filosoficamente, um Estado, em sua concepção moderna. Cabe buscar, portanto, dentro da visão mosaica de estado (que, digamos, tem sido eficiente por milênios, enquanto o Estado moderno parece fadado às crises sucessivas, incapaz da menor estabilidade) uma antropologia, um poder constituinte, uma constituição, um sistema judicial, uma teoria das normas e um aparato estatal. Que tipo de fundamento seria esse?
Bom, encontraríamos, logo, no Gênesis, notadamente nos primeiros onze capítulos, um impressionante tratado filosófico-antropológico. Perdemos muito tempo discutindo a historicidade desses capítulos, tanto quanto, talvez, daqui a três mil anos, após uma série de catástrofes que viessem a destruir a nossa própria civilização, os estudiosos de uma outra civilização estivessem discutindo se os contemporâneos de Rousseau realmente acreditavam na historicidade de sua descrição de uma vida pré-social do “bom selvagem” como uma realidade histórica concreta, ou se nós miticamente acreditávamos na historicidade de uma guerra de todos os homens contra uns lobisomens malvados, a partir da noções de “guerra de todos contra todos” e da afirmação de que o “homem é o lobo do homem”, presentes na obra de Hobbes. Ambas as imagens expressam o pensamento dos seus autores a partir das limitações linguísticas e filosóficas dos seus tempos. Mas estou certo de que nem Hobbes estava pensando que lobisomens existiam, nem Rousseau, que alguém viveu efetivamente no estado de asseidade que ele descreve como próprio do homem realmente livre. No entanto, estou certo de que nem eles, nem os homens do seu tempo, tinham as suas descrições como míticas ou fantasiosas. Essas imagens expressavam com precisão o conteúdo do pensamento dos seus autores. Eram, portanto, verdadeiras, no sentido filosófico de que correspondiam à intencionalidade daqueles que a geraram.
Neste sentido, proponho uma leitura do Gênesis similar à leitura que se faz das filosofias dos grandes filósofos modernos: uma antropologia que permitiu ao homem de então entender-se, explicar a si, à sua sociedade, fundamentar seu próprio direito e seu estado, sua ciência e sua mundividência, na mesma medida em que o atual paradigma filosófico o faz pelo mundo contemporâneo. Tão histórica quanto o “rei das selvas” de Rousseau, ou os “lobisomens” de Hobbes. O paraíso seria tão real quanto a “Utopia” de Thomas More, e o pecado original teria pelo menos a mesma densidade da “mais valia” marxista.
O que descobrimos no Gênesis, utilizando essa técnica de leitura? Uma antropologia moderadamente otimista, claramente antropocentrista. Explico. Cercados por povos que adoravam aspectos da natureza, que temiam o mundo como superior às suas forças e tinham o caos como subjacente à realidade, os escritores israelitas afirmam a inteligência fundamental, transcendente e independente do mundo, como sua causa. Os mitos de origem existentes nas sociedades que circundavam os israelitas costumavam descrever os deuses lutando com um caos que lhes é externo e igualmente subsistente – portanto deles independente. Há, pois, no fundo de tudo, um caos primordial, para esses povos. Veja-se, a esse respeito, o mito babilônico do Enuma Elish, no qual os deuses lutam com o caos primordial para conceder-lhe ordem. Essa ordem, no entanto, é sempre precária e temporária, como que superposta ao caos, sem eliminar-lhe. O mundo está construído como uma casquinha de ordem por sobre a ininteligibilidade, e não é garantido que os deuses sempre vençam a desordem. Num mundo assim, a inteligibilidade da vida repousa nas mãos daqueles que têm força para ajudar os deuses a manter o caos controlado e a ordem estabelecida, ou seja, os que detêm o poder público, o poder do Estado, devem ser cultuados como deuses ou como aliados dos deuses, e sua queda ou derrota restabelece o caos original. Dá para imaginar que tipo de Estado pode sair daí.
Estude-se o mito egípcio de Ísis e Osíris, seu conteúdo agônico e sua tensão dramática. O esforço e a precariedade do equilíbrio entre seus deuses. Não há nada assim no relato fundacional bíblico.
O relato bíblico começa com outro tom. “No princípio, Deus criou o céu e a terra.” Note-se quão tranquilizador pode ser esse pequeno versículo, comparado à ameaça de um caos primordial que se opõe permanentemente ao precário poder dos deuses que o mantêm contido para permitir a vida humana. Aqui, se está ensinando que a inteligência precede ao caos e dá origem a todas as coisas por um ato concreto de vontade. Nenhuma luta, nenhuma precariedade, nenhuma ameaça permanente à subsistência da inteligibilidade da realidade, porque, mesmo por sobre a aparente desordem que parecemos contemplar naqueles fenômenos naturais aparentemente caóticos, que superam a nossa compreensão (enchentes fatais, tempestades, enxurradas, correntezas), normalmente relacionados com as águas, somos tranquilizados ao saber que o sopro de Deus sobrepaira as águas.
O relato prossegue com duas consequências práticas claras: As coisas foram feitas por Deus para os homens, e portanto não devem ser adoradas, mas utilizadas com respeito. O homem é o ápice da criação, que recebeu todas as coisas, não como proprietário, mas como usufrutuário. Estão lançadas as bases de uma antropologia consistente, num relato de página e meia que, utilizando-se da linguagem filosófica disponível, responde adequadamente aos questionamentos então pertinentes. Esses mesmos questionamentos têm que ser respondidos ainda hoje, para se criar uma base comum de vida social possível. Os iluministas criaram vários mitos em substituição: já citamos Rousseau e Hobbes, mas a deificação do poder constituinte por Sieyes, na revolução Francesa e a gnose do comunismo científico, com sua construção de um paraíso terrestre sem Estado também podem ser citados. Eu diria que o direito constitucional moderno está basicamente lastreado numa tentativa de substituir o fundamento mosaico por um fundamento “laico” como sustentáculo do estado e de sua constituição.
Os relatos de origem mais aceitos, atualmente, são o Big Bang (com sua variante do encolhimento-expansão eternos) e o mito da evolução baseada na seleção impessoal dirigida à maior eficiência. Não discuto o seu valor científico, porque ambos são, tanto como o bíblico, o rousseauniano ou o hobbesiano, insuscetíveis em si mesmos de prova científica. Não há ciência sobre a origem de tudo, porque isso pressuporia uma origem anterior à própria origem para a ciência, o que é uma contradição em termos. Só para apimentar, eu diria que, para o big bang ser um mito de origem adequado, ele teria que explicar se dois mais dois sempre deu quatro, ou se o dois foi se expandindo desde um ponto infinitesimal até o seu valor atual cujo dobro é quatro. A eventual explicação da conformação atual da matéria, que ele parece prover, não explica, no entanto, a própria possibilidade de explicação. É um mito mais insatisfatório, do ponto de vista racional, do que o mito bíblico, porque é menos “original”, no sentido de que deixa fora de si toda a própria racionalidade que aparentemente o explica.
Tampouco o mito da evolução tem essa consistência, não só pelos mesmos motivos que invalidam o big bang, quanto por violar a segunda lei da termodinâmica, a entropia. Não há explicação, nesse mito, para o fato de que o acaso, que é a divindade dessa religião, a rigor não é algo, mas a falta de algo, possa fazer resultar numa maior organização das coisas. Aliás, tampouco se explica de onde vêm, nesse mito, as noções de organização e eficiência, que estão contidas na própria noção de evolução. Onde está o critério que permite julgar se algo é mais eficiente e organizado do que outro algo? É pressuposto? É arbitrário? Os evolucionistas parecem presos numa tautologia: se algo existe, é mais eficiente do que algo que não existe, mas se só se pode conhecer se algo é mais eficiente quando essa coisa exista enquanto outras não existem.
No evolucionismo, a consequência é a prova do antecedente, e vice-versa. Seria como estabelecer a diferença entre um estupro e um matrimônio a partir da existência de prole: um matrimônio sem prole seria um estupro, um estupro que resulta prole, um matrimônio. Ou então pelas patéticas tentativas de explicar a religião a partir da evolução: uma vez que a religião existe, ela deve ter favorecido a evolução, logo ela deve ser explicável a partir da evolução – os religiosos levavam vantagem sobre os agnósticos, não porque Deus existisse, mas porque eram mais gregários e podiam defender-se melhor. E assim qualquer fato atualmente existente é explicado retroativamente: os cabelos loiros existem, logo devem ter sido uma vantagem evolutiva. Os carecas existem, logo devem apresentar alguma vantagem evolutiva. Os morenos existem, logo devem apresentar alguma vantagem evolutiva. Os palitos de dente existe, enfim, acho que já ficou claro o argumento. Algo existe, então resta apenas criar uma historinha plausível sobre que vantagem evolutiva esse “algo” apresentou frente ao que não existe. E assim qualquer fato é explicado retroativamente por essa “ciência” da evolução: pode tentar. Desde os churrascos gaúchos ao surf, desde os cães chow-chow à Turma da Mônica: tudo pode ser explicado como existente a partir de uma vantagem evolutiva a algum grupo de seres vivos no passado, e isso depende apenas de uma boa veia literária e alguma criatividade. Mas não é ciência de verdade. Embora aparentemente qualquer livro escrito a partir de uma visão de mundo dessas vende como água nas livrarias de Shopping Center. E influencia muita gente poderosa.
Como explicação das microvariações biológicas a teoria da adaptação por seleção natural parece ser uma hipótese plausível. Como mito de fundação social, no entanto, o relato evolucionista é lamentável; no limite, gera o nazismo, ou a moderna eugenia abortista. Um humanismo evolucionista é uma contradição em termos, tanto quanto um ambientalismo evolucionista: se a lei da sobrevivência do mais apto é, de fato, a lei impessoal que rege o universo, o mais apto sobreviverá por seus próprios méritos, não pela luta dos ambientalistas nem dos humanistas – que, aliás, em última instância, só podem estar lutando por si mesmos, pela própria sobrevivência, e se não são suicidas são hipócritas. Foram muito bem retratados na canção dos Titãs, resposta definitiva a qualquer pretenso “ambientalismo evolucionista”, contraditório em termos:
“Oncinha pintada, zebrinha listrada, coelhinho peludo,
Vão se foder,
porque aqui na face da terra só bicho escroto
é que vai ter..”
Ora, se o evolucionismo é a resposta definitiva, então não há sentido em proteger as espécies que estão sumindo: elas darão lugar a espécies mais evoluídas, mais bem adaptadas ao ambiente que mudou. E viva, nesse contexto, a extinção em massa dos bichos “ultrapassados” - incluídos os ripongas ambientais, que serão superados pelos roqueiros de Heavy Metal...
A diferença entre os relatos de origem contemporâneos e o bíblico, além da evidente falta de instrumentais de linguagem de que dispunha o autor daquele frente à sofisticação dos autores destes últimos, é a abertura, no caso do Gênesis, para uma causa última dotada de atributos pessoais. Os relatos contemporâneos são fechados, como o mundo-sanfona do big-bang, ou sujeitos a forças transcendentes impessoais, como a “seleção natural” da evolução. Assim, o critério de plausibilidade, para os pensadores modernos, de um relato de origem, parece ser a exclusão de uma causa final transcendente e pessoal, muito mais do que a consistência interna ou a capacidade de explicação. Apenas por esse motivo o relato bíblico, apesar de mais amplo e internamente muito mais consistente, é considerado mítico não simplesmente por causa da linguagem, mas bem mais porque envolve, como fundamento último, um ser pessoal. Em todo caso, mais consistente e plausível, como fundamento, do que os mitos impessoais que são tão bem tolerados na Academia moderna, apesar de muito mais inconsistentes.
Voltemos a Moisés e sua teoria constitucional bíblica. Estabelecido o relato de origem e a visão de mundo e de homem – a antropologia do Gênesis, nos capítulos 1 a 3 - seria necessário estabelecer uma “teoria das normas”. Por que a lei é necessária? Por que precisamos de um Estado? Não são perguntas menos importantes, hoje, do que eram então.
O pensamento contemporâneo parece ter desistido de dar resposta a essa pergunta. Vemos, por exemplo, a popularidade do pensamento kelseniano, que renuncia à discussão da questão fundamental a respeito de porque existem normas, para estabelecer como únicas discussões válidas as que envolvem o “como” são as normas. Essa é uma limitação pertinente ao campo da técnica jurídica, mas absurda no campo filosófico. A pergunta sobre “porque” existem normas nunca poderá ser respondida positivamente; nem por isso é menos pertinente. Normalmente é uma pergunta de uma criança de seis anos, não a pergunta de um advogado de sessenta. Mas as crianças de seis anos filosofam, os advogados de sessenta advogam.
O fato é que há algo que não flui perfeitamente na convivência do homem com o outro e com o meio que o circunda. Leões nascem sendo leões. Formigas nascem sabendo o seu lugar junto às outras formigas. O homem parece inclinado ou à auto-destruição ou à destruição do outro ou do seu entorno. A sobrevivência e a convivência, que são um dado para toda a natureza, para o homem são sempre construtos.
Eis a fonte de toda cultura, de toda literatura, de toda ciência, de toda filosofia e, principalmente, naquilo que mais nos interessa, de todo o direito. Várias explicações foram dadas para esse fenômeno. Já citei Hobbes e Rousseau, poderia citar Hegel e Marx, poderia citar, como o farei, o Gênesis.
Essa inclinação à destruição é chamada, na teoria normativa bíblica, de “pecado original”. Trata-se da capacidade que tem o homem de questionar sua própria origem, capacidade, aliás, que é, de modo absoluto, exclusivamente humana, aliada à incapacidade de alcançar uma resposta satisfatória. O ser que não pergunta não é homem. O ser que sabe a resposta, tampouco. Essa capacidade é tão definidora da condição humana que, se houvesse um outro ser além do “homo sapiens” capaz de fazer tais perguntas e incapaz de dar a resposta adequadamente, teria que ser incluído na definição de “homem”. Vale dizer, não é a especificidade biológica que faz do “homo sapiens” um homem, mas a potência, nem sempre necessariamente atualizada, de fazer esta pergunta.
Essa defasagem entre a capacidade de fazer a pergunta existencial e a capacidade de obter positivamente a resposta definitiva é exatamente o que a linguagem bíblica descreve como pecado original. A existência dessa condição é indiscutível, portanto é indiscutível a própria existência do pecado original. Fazer a pergunta é algo próprio à natureza humana. Obter a resposta, não.
Duas saídas apresentam-se, filosoficamente. Ou a resposta está oculta em algum lugar da natureza humana ou está fora. Não dá para negar é que a resposta existe, porque uma pergunta que não levasse a uma resposta não seria uma pergunta, seria uma contradição em si mesma.
Essa é a pergunta final. Segundo a doutrina judaico-cristã, em algum momento o homem duvidou que a resposta estivesse em Deus, como era óbvio no início, e resolveu buscar a resposta em si mesmo, na natureza ou nas forças incorpóreas que o circundam. Esse é o pecado original. Com o afastamento que o homem causou, a resposta ficou obscura, ocultou-se definitivamente, porque o homem desviou os olhos da sua única fonte. Comeu o fruto. Desde então, a obtenção da resposta final foi chamada, na tradição judaico-cristã, de “salvação”. Todas as correntes gnósticas, como o cientismo, o positivismo, o orfismo e suas variantes espíritas, só para citar algumas, afirmam que a resposta está escondida no homem em algum lugar, vale dizer, que o homem é capaz de salvar a si mesmo, e somente a ignorância da resposta que já possui o leva à perdição. Neste caso, toda perdição é temporária, porque quando o homem finalmente atinar com a resposta, seja por ter reencarnado suficientemente para descobri-la, seja por ter encontrado cientificamente a cura para os limites humanos, curará, a seu turno, a ignorância dos outros, tanto quanto ainda os possa encontrar, ou na medida em que os encontre. Daí o congelamento de cadáveres ou o mito do monstro de Frankenstein atualizado pelas pesquisas com reimplantação de DNA em embriões. Outras correntes, mais sociais, como o democratismo liberal e o comunismo, colocaram a resposta na vontade do povo, entendida, no democratismo, como a “vontade soberana da maioria” e, no comunismo, como a vontade inexorável do proletariado. Tais seriam, portanto, as forças salvíficas em tais correntes, e, portanto, as suas divindades, sobre as quais erigem o seu Estado.
Para os que creem na resposta gnóstica, não há um fundamento, no ser humano, fora dele mesmo, seja do homem como indivíduo, como nas correntes mais solipsistas como a de Nietsche e Sartre, seja do homem como fundamento de direito, como na autonomia kantiana, seja nas mais sociais, como as hegelianas de direita ou de esquerda, especialmente os marxistas. Assim, toda norma social é, alternativamente, ou uma reabilitação do homem consigo mesmo, seja pela concessão desconfortável de parte da sua individualidade ao todo, como creem os hobbesianos ou os rousseaunianos, seja pela submissão dos outros à sua própria vontade, como creem os discípulos de Maquiavel ou Nietsche, ou uma reabilitação incondicional da relação do homem com o outro homem, seja pela submissão incondicional à “mão invisível do mercado”, num extremo ou, no outro, pela coletivização dos meios de produção. No meio, neste último caso, encontra-se o democratismo, no qual a opinião de cada um não importa, senão a opinião circunstancial de uma maioria impessoal, na qual se esconde quantitativamente a resposta salvífica – o velho ditado “vox populi, vox dei”.
Daí porque todas as correntes gnósticas desenvolveram uma visão de uma norma jurídica que é, em si mesma, salvífica. Vale dizer, o disciplinamento normativo da conduta humana, para os gnósticos, tem como fundamento o caminho para a salvação humana, que passa pela salvação individual, para alguns, ou pela supressão do indivíduo em prol de uma salvação coletiva, para outros tantos. Ou a convivência humana é, portanto, ou um estorvo para que o indivíduo possa obter a sua salvação, a sua própria glorificação absoluta, transcendendo os seus limites individuais para tornar-se um super-homem ou um super-príncipe, caso em que o ordenamento tenderá a nulificar o valor do outro e a superestimar o valor do poderoso (gerando o totalitarismo, que contemporaneamente conhecemos tão bem), ou, alternativamente, a resposta salvífica se esconde somente no todo ou na maioria, e o indivíduo tem pouco ou nenhum valor para o direito.
No caso do cientismo, trata-se de negar valor a qualquer busca de salvação fora da ciência, desqualificando como desprezível qualquer “conhecimento” que não seja salvífico, vale dizer, que não seja o desenvolvimento de técnicas de sobrevivência ou de imortalidade mediante a investigação empírica e metódica da realidade material. Vale dizer, quaisquer indivíduos que não estejam empenhados nesta busca estão mergulhando os outros ainda mais na ignorância, ou seja, estão atrapalhando. Podem ser tolerados como aberrações passageiras, como defendia Comte alegando que são “crianças” religiosas ou “adolescentes” metafísicos atávicos atrasando os “adultos” cientistas, ou podem ser eliminados como estorvos, descaminhos evolutivos, como fizeram os nazistas e os comunistas.
Quer dizer, ter o poder, para qualquer corrente gnóstica, é saber onde está a resposta. Conhecimento é poder. Quem nunca ouviu essa frase? Daí que, neste caso, o próprio homem (coletivamente falando) ou um homem específico, um “iluminado”, é o salvador, e qualquer ordem jurídica se apresenta como o disciplinamento para a obtenção da resposta. Descumprir a lei é ser um inimigo do homem, quer dizer, ser um obscurantista. Descumprir a lei é perder-se e perder a possibilidade de conhecer a salvação.
A doutrina do Gênesis é diferente. Sendo Deus o Outro, o transcendente, e o homem a sua criatura, essencialmente boa, ainda que decaída por culpa própria, a resposta à pergunta pelo sentido último já não é alcançável apenas pelos esforços humanos. A razão humana pode alcançar o conhecimento de que há um deus, e de que há uma resposta salvífica, mas jamais saberá com certeza absoluta como é que Deus é em si mesmo, nem qual o conteúdo da resposta. Seria capaz de reconhecer uma resposta verdadeira, mas não de descobri-la, aceitá-la ou vivenciá-la sem ajuda divina. Seria necessário que o próprio Deus se revelasse e nos fornecesse a resposta, mas a rebeldia que nos afastou dele por decisão nossa nos impediria até mesmo de receber essa resposta. Assim, o fundamento da norma jurídica é a restauração da amizade original entre o homem e Deus, perdida por culpa do homem e requisito para a obtenção da salvação que está em Deus. Basicamente, cumprir a lei estatal heterônima ou permanecer longe de Deus e não se salvar. Isso parece uma tremenda imbecilidade para os nossos ouvidos pós-kantianos, acostumados a encontrar em nós mesmos o fundamento das normas, mas, no fundo, faz sentido: quando buscamos em nós mesmos o fundamento das normas, estamos apenas colocando as nossas pessoas no lugar do Senhor Deus de Moisés. Não há uma grande mudança de estrutura, senão uma alteração de lugares dentro de uma mesma estrutura.
Assim, a antropologia bíblica continua servindo de moldura para que os modernos a preencham com aquilo que considerarem como seu próprio deus, com a única condição de que esse deus seja impessoal, e não o Deus de Abraão, Isaac e Jacó, ou o Pai de Jesus. É assim que o poder constituinte é o deus dos iluministas, e a religião (vale dizer, a projeção dos atributos ideais do homem num ser transcendente, como denunciava Feuerbach) o pecado original. É assim que a dialética histórica é o deus dos hegelianos, e a exploração de classes, o pecado original para os marxistas. É assim, que o indivíduo é o deus de Rousseau, e a sociedade, seu pecado original. A lista segue interminavelmente.
Hoje, há uma deificação do sexo: para algumas correntes virulentas, o estado somente é legítimo na exata medida em que promova o sexo livre, sem riscos e consequências, e torna-se ilegítimo quando, de algum modo, regula, ainda que remotamente, quaisquer condutas humanas que envolvam a maximização do prazer sexual. Por isso, viva os prostitutos e abaixo a família de papai e mamãe. Viva o aborto e abaixo os exames pré-natais. Viva a cirurgia transexual e abaixo a estabilidade matrimonial. Mas este é um processo ainda em curso, e por isso é mais difícil falar dele.
Existiria, então, alguma concepção de estado que não colocasse os fundamentos de sua legitimidade numa deidade e a submissão à legislação como salvação de um “pecado original”? Bom, nem nas correntes que surgiram do iluminismo, nem nos estados pós-modernos, nem no mundo muçulmano, nem mesmo nos países orientais com seus imperadores-deuses se pode encontrar algo assim. Somente um determinado grande pensador, na história da humanidade, estabeleceu um fundamento racional para uma desmistificação do estado e sua correta laicização: foi São Paulo de Tarso, especialmente na Carta aos Romanos e na Carta aos Gálatas. E o fez na exata linha apontada por Jesus. Explico.
A fala de Jesus, registrada em sua forma mais primitiva no Evangelho de Marcos (12, 13-17), com paralelos nos Evangelhos de Mateus (22, 15-22) e Lucas (20, 20-26), é a primeira grande manifestação, talvez na história da humanidade, da separação entre a fundamentação do Estado e o plano salvífico de Deus:
“E enviaram-lhe alguns dos fariseus e dos herodianos, para que o apanhassem nalguma palavra. E, chegando eles, disseram-lhe: Mestre, sabemos que és homem de verdade, e de ninguém se te dá, porque não olhas à aparência dos homens, antes com verdade ensinas o caminho de Deus; é lícito dar o tributo a César, ou não? Daremos, ou não daremos? Então ele, conhecendo a sua hipocrisia, disse-lhes: Por que me tentais? Trazei-me uma moeda, para que a veja. E eles lha trouxeram. E disse-lhes: De quem é esta imagem e inscrição? E eles lhe disseram: De César. E Jesus, respondendo, disse-lhes: Dai pois a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus. E maravilharam-se dele.”
Já não há, pois, identidade entre Deus e César. Já não há identidade possível entre divindades e impérios, entre deuses e ordenamentos jurídicos. Os ordenamentos jurídicos são necessários, porque os efeitos do “pecado original” ainda se fazem sentir. Mas já não são salvíficos para os cristãos, como o são para os judeus, muçulmanos, japoneses, gnósticos, iluminados e cientificistas em geral, ou seja, para todos os Estados não-cristãos ou pós-cristãos.
Esse mesmo pensamento foi melhor especificado por São Paulo, capítulo 3, 21 a 31. Transcrevo:
21 Mas, agora, sem o concurso da lei, manifestou-se a justiça de Deus, atestada pela lei e pelos profetas. 22 Esta é a a justiça de Deus pela fé em Jesus Cristo, para todos os fiéis (pois não há distinção; 23 com efeito, todos pecaram e todos estão privados da glória de Deus), 24 e são justificados gratuitamente por sua graça; tal é a obra da redenção, realizada em Jesus Cristo. 25 Deus o destinou para ser, pelo seu sangue, vítima de propiciação mediante a fé. Assim, ele manifesta a sua justiça; porque no tempo de sua paciência, ele havia deixado sem castigo os pecados anteriores. 26 Assim, digo eu, ele manifesta a sua justiça no tempo presente, exercendo a justiça e justificando aquele que tem fé em Jesus. 27 Onde está, portanto, o motivo de se gloriar? Foi eliminado. Por qual lei? Pela das obras? Não, mas pela lei da fé. 28 Porque julgamos que o homem é justificado pela fé, sem as observâncias da lei. 29 Ou Deus só o é dos judeus? Não é também Deus dos pagãos? Sim, ele o é também dos pagãos. 30 Porque não há mais que um só Deus, o qual justificará pela fé os circuncisos e, também pela fé, os incircuncisos. 31 Destruímos então a lei pela fé? De modo algum. Pelo contrário, damos-lhe toda a sua força.
Ao separar o plano contingente da convivência social, da necessária regulamentação estatal da conduta humana, do plano da salvação e da Graça, São Paulo nos deu a base filosófica para uma teoria consistente da separação entre Estado e deidade, entre Estado e salvação. O estado é necessário, e sua obediência é dever de todos. Mas nessa obediência encontra-se somente o fundamento para a boa convivência humana (sem dúvida necessária para a salvação, mas não suficiente) e não uma relação direta com a ordem divina. Veja-se a exortação firma de São Paulo quanto à necessidade de obedecer à ordem estatal:
1 Cada qual seja submisso às autoridades constituídas, porque não há autoridade que não venha de Deus; as que existem foram instituídas por Deus. 2 Assim, aquele que resiste à autoridade, opõe-se à ordem estabelecida por Deus; e os que a ela se opõem, atraem sobre si a condenação. 3 Em verdade, as autoridades inspiram temor, não porém a quem pratica o bem, e sim a quem faz o mal! Queres não ter o que temer a autoridade? Faze o bem e terás o seu louvor. 4 Porque ela é instrumento de Deus para teu bem. Mas, se fizeres o mal, teme, porque não é sem razão que leva a espada: é ministro de Deus, para fazer justiça e para exercer a ira contra aquele que pratica o mal. 5 Portanto, é necessário submeter-se, não somente por temor do castigo, mas também por dever de consciência. 6 É também por essa razão que pagais os impostos, pois os magistrados são ministros de Deus, quando exercem pontualmente esse ofício. 7 Pagai a cada um o que lhe compete: o imposto, a quem deveis o imposto; o tributo, a quem deveis o tributo; o temor e o respeito, a quem deveis o temor e o respeito.
Neste sentido, é claro que a autoridade humana é consentida por Deus, mas a ordem que ela estabelece não necessariamente é querida por Deus. No entanto, o fundamento da obediência, para São Paulo, não é a salvação pela lei, mas a constatação de fato da necessidade de uma ordem estatal, como realidade querida por Deus, para possibilitar a ordem e a convivência humana. Ocorre que essa estrutura não se confunde com o Reino de Deus, e se lastreia na contingência, transformando-se muitas vezes no anticristo. Obedeço porque Deus espera que eu seja obediente, mas não porque eu veja no governante uma figura divina, nem sequer seu mandatário direto, embora seu exercício de poder seja, sem dúvida, permitido por Deus em determinada configuração histórica. A relação entre o cidadão e o Estado é lastreada na necessidade de ordem, não de salvação. A salvação está no plano da graça, e somente lá. A obediência ao Estado é consequência, e pode representar (como de fato representa) a cruz necessária para chegar à salvação, mas não o caminho, nem a verdade, nem a vida. Assim ensina nosso grande jusfilósofo São Paulo:
“Então que é a lei? É um complemento ajuntado em vista das transgressões, até que viesse a descendência a quem fora feita a promessa; foi promulgada por anjos, passando por um intermediário. 20 Mas não há intermediário, tratando-se de uma só pessoa, e Deus é um só. 21 Portanto, é a lei contrária às promessas de Deus? De nenhum modo. Se fosse dada uma lei que pudesse vivificar, em verdade a justiça viria pela lei; 22 mas a Escritura encerrou tudo sob o império do pecado, para que a promessa mediante a fé em Jesus Cristo fosse dada aos que creem. 23 Antes que viesse a fé, estávamos encerrados sob a vigilância de uma lei, esperando a revelação da fé. 24 Assim a lei se nos tornou pedagogo encarregado de levar-nos a Cristo, para sermos justificados pela fé. 25 Mas, depois que veio a fé, já não dependemos de pedagogo, 26 porque todos sois filhos de Deus pela fé em Jesus Cristo. 27 Todos vós que fostes batizados em Cristo, vos revestistes de Cristo. 28 Já não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher, pois todos vós sois um em Cristo Jesus. 29 Ora, se sois de Cristo, então sois verdadeiramente a descendência de Abraão, herdeiros segundo a promessa.“
Obedecer à lei é necessário, mas não porque a lei salve. A salvação do homem está em outro lugar. “Meu Reino não é desse mundo”, disse Jesus (Jo 18, 36). No entanto, está nesse mundo, e não é desencarnado, porque o próprio Jesus se encarnou. Há, sem dúvida, uma normatividade estatal que é marcada pelo cristianismo, e os cristãos, como cidadãos, também devem ser sal da terra e luz do mundo (Mt 5, 13). O modo como os cristãos devem participar na construção de uma normatividade estatal está assim descrito por Jesus no capítulo 20 do Evangelho de Mateus:
“25 Jesus, porém, os chamou e lhes disse: Sabeis que os chefes das nações as subjugam, e que os grandes as governam com autoridade. 26 Não seja assim entre vós. Todo aquele que quiser tornar-se grande entre vós, se faça vosso servo. 27 E o que quiser tornar-se entre vós o primeiro, se faça vosso escravo. 28 Assim como o Filho do Homem veio, não para ser servido, mas para servir e dar sua vida em resgate por uma multidão.”
Quanto ao conteúdo ideal de uma normatividade estatal cristã, temos essa especificação em Mt 25:
31 Quando o Filho do Homem voltar na sua glória e todos os anjos com ele, sentar-se-á no seu trono glorioso. 32 Todas as nações se reunirão diante dele e ele separará uns dos outros, como o pastor separa as ovelhas dos cabritos. 33 Colocará as ovelhas à sua direita e os cabritos à sua esquerda. 34 Então o Rei dirá aos que estão à direita: - Vinde, benditos de meu Pai, tomai posse do Reino que vos está preparado desde a criação do mundo, 35 porque tive fome e me destes de comer; tive sede e me destes de beber; era peregrino e me acolhestes; 36 nu e me vestistes; enfermo e me visitastes; estava na prisão e viestes a mim. 37 Perguntar-lhe-ão os justos: - Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de comer, com sede e te demos de beber? 38 Quando foi que te vimos peregrino e te acolhemos, nu e te vestimos? 39 Quando foi que te vimos enfermo ou na prisão e te fomos visitar? 40 Responderá o Rei: - Em verdade eu vos declaro: todas as vezes que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a mim mesmo que o fizestes. 41 Voltar-se-á em seguida para os da sua esquerda e lhes dirá: - Retirai-vos de mim, malditos! Ide para o fogo eterno destinado ao demônio e aos seus anjos. 42 Porque tive fome e não me destes de comer; tive sede e não me destes de beber; 43 era peregrino e não me acolhestes; nu e não me vestistes; enfermo e na prisão e não me visitastes. 44 Também estes lhe perguntarão: - Senhor, quando foi que te vimos com fome, com sede, peregrino, nu, enfermo, ou na prisão e não te socorremos? 45 E ele responderá: - Em verdade eu vos declaro: todas as vezes que deixastes de fazer isso a um destes pequeninos, foi a mim que o deixastes de fazer. 46 E estes irão para o castigo eterno, e os justos, para a vida eterna.
Esta é a justiça que se espera de um cristão, e esta é a influência que ele exercerá no seu próprio Estado, todas as vezes em que puder influenciar na elaboração das leis. Mas ele sabe que a lei não é expressão de salvação divina, mas apenas regulação contingente da realidade humana. Por isso, é imperfeita. Somente o amor é perfeito, mas como ele ainda não se estabeleceu plenamente neste mundo irredimido, a lei humana é necessária. Mas não suficiente.
O perigo, portanto, é que o mundo contemporâneo esqueça tais sutilezas e volte a exigir dos cristãos que queimem incenso ao César que elegeram como imperador da sua própria ordem jurídica, seja esse César o proletário, a evolução, o sexo, a ciência ou o povo personificado. Seja esse incenso o cadáver de nossas crianças abortadas, os nossos votos de casamento ou a nossa voz política. Seremos os mártires da vez, então.

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