Há duas passagens da Bíblia que me angustiam, porque são categóricas e estabelecem molduras para pensar a vida da igreja e pensar Jesus na história. São elas: “as portas do inferno não prevalecerão sobre ela [a Igreja]” e “Jesus é o mesmo, ontem, hoje e sempre”. Refiro-me, no primeiro caso, a Mateus 16, 18 e, no segundo, a Hebreus 13, 8.
Cito essas passagens para comentar o pensamento de alguns teólogos cuja leitura me incomoda, não posso negar. Talvez eles sejam bem mais argutos do que eu, certamente são incomparavelmente mais cultos. Mas o que me angustia não é a argúcia nem a cultura deles, mas determinadas afirmações que eu leio, releio e não consigo entender corretamente, sei lá. É como esse bendito manifesto de mais de cento e quarenta teólogos alemães, pedindo o fim do celibato sacerdotal, a ordenação de mulheres, o reconhecimento do divórcio e do casamento homossexual, a escolha popular dos bispos e a liberdade irrestrita de opinião frente ao magistério. É daquelas coisas que o Tio Cristino, quase analfabeto, responderia assim:
Uai, mas os protestantes não têm isso tudo lá na religião deles? Então não precisa mudar a Igreja Católica, é só o insatisfeito virar protestante...
De fato, os protestantes liberais não estão promovendo nenhuma espécie de surto de crescimento da fé, no mundo, para que se defenda que de repente a Igreja Católica vire um tipo de igrejona protestante liberal. Muito ao contrário, as igrejas liberais estão sofrendo uma crise muito mais profunda do que nós, acossadas pelo neopentecostalismo americano, que é um misto de fundamentalismo literalista, magia e mentalidade empresarial.
Por outro lado, não vejo nenhum fundamento, nem na Bíblia, nem na Tradição, para essas mudanças. Só o suicídio eclesial, porque nos levaria a ser infiéis a Jesus. E uma Igreja infiel a Jesus já não é Igreja, é clube ou maçonaria. E se a igreja é merecedora dessas críticas, das duas uma: ou Jesus mudou muito nos últimos dois mil anos, e a carta aos Hebreus está errada, ou as portas do inferno prevaleceram sobre a Igreja, e a promessa de Jesus registrada no Evangelho de Mateus é uma balela.
Mas não foi isso que me causou essa angústia, mas um livro que eu comecei a ler ontem à noite, um comentário sobre o Cântico dos Cânticos escrito por um padre biblista brasileiro e publicado por uma grande editora católica.
Esse padre, que se apresenta como um sacerdote de 58 anos, tem uma cultura admirável, e anota intuições realmente muito belas sobre o Cântico dos Cânticos, que é, sem dúvida, um dos mais belos e provocantes livros da Bíblia. Mas o faz emoldurado por uma espécie de neblina indefinível de apologia do amor livre, moldura que se insinua mas nunca se deixa explícita, mas que me deixou a sensação de que o Cântico dos Cânticos, como ali descrito, fosse, em algum grau, uma ata de reunião de hippies velhos, ou a Igreja, uma espécie de seita gnóstica ou cátara desprezadora da matéria.
Cito a seguinte passagem:
“O amor não suporta leis ou normas que o determinem, porque ele é soberano e, na sua criatividade, seu maior prazer é criar a novidade, sem jamais repetir uma forma sequer. Teríamos nós o direito de dizer: 'esta é a única forma correta de amar?' De jeito nenhum. Todavia, caso em nossa teimosia pretendamos classificar, ou aprovar ou desaprovar este ou aquele amor, cedo ou tarde, o amor genuíno acabará pondo abaixo todas as nossas regras, normas e fórmulas. Simplesmente porque o amor é invencível e, em todo e qualquer embate, sairá sempre vitorioso.”
O autor passa a citar São João para colocar, por meio de perguntas retóricas, a ideia de que “o amor leva sempre a Deus”, ou questionar: será que “a maior e mais misteriosa revelação de Deus, e a maior e mais intensa experiência de Deus que podemos fazer acontece justamente no amor?”
O seu texto causou em mim uma intensa impressão de glorificação do amor como relacionamento sexual dito “livre”, sempre com uma sutileza que nos impede simplesmente de apontar o limite entre viver misticamente o amor de Deus no amor aos irmãos, inclusive no amor erótico ordenado à doação e à responsabilidade, por um lado, e a pura e simples experiência do prazer sexual, por outro. Já citei o parágrafo acima, que me soou (sem que se possa irrefutavelmente determinar que seja em si mesmo, com todas as letras) uma apologia ao sexo livre como caminho para a experiência mística.
Passo a citar outros parágrafos, que para mim pareceram alguma coisa escrita “à chave”, que insinua dizer mais do que o que diz, e que eu só não entendo porque não domino o tipo de erudição que parece ser pressuposta, pelo autor, para reconhecer no leitor um católico afinado com os tempos.
Em outra passagem do texto, por exemplo, o sacerdote autor do livro diz que “uma sua amiga”, que ele descreve como culta, formada em colégio religioso, socióloga e teóloga, questiona sua experiência para comentar o “Cântico dos Cânticos”, alegando que, ele, sacerdote, “não tem experiência nisso”, porque nunca viveu o matrimônio e o amor”. Ele responde no texto, não para negar que a concepção do amor presente no Cântico dos Cânticos supere em muito a dimensão sexual ou matrimonial, sem, porém, negar toda a sua riqueza existencial e santa (mesmo no plano literal) mas para afirmar que o Cântico foi usado, tanto pelos judeus como pelos cristãos para falar do amor no matrimônio, porque “esta foi considerada por eles como a única forma legítima e aceitável para a vivência do amor”. Isso soou para mim como uma crítica direta e duríssima à Igreja, bem como ao judaísmo, acusados, pareceu-me, de não terem entendido nada da Bíblia até agora.
O autor continua: “Todavia, o mais belo cântico, em sua literalidade, não chega até aí. Ao contrário, é apenas celebração, comemoração, festa alegre por causa do amor. Como se isso fosse pouco e não tivesse a menor importância!”. É claro que tem importância, mas também envolve responsabilidade e inserção num determinado e específico contexto cultural, que é exatamente o contexto que o autor me causou a sensação de rejeitar, o contexto judaico-cristão, como hipócrita e redutor.
Noto que o sacerdote autor comete pelo menos duas impropriedades textuais, duas críticas “liberais” ao cristianismo. A primeira é afirmar que os judeus e cristãos consideraram “o amor no matrimônio como única forma legítima e aceitável para a vivência do amor”. Isso é pura e simplesmente, com todo o respeito da minha ignorância, falso. O matrimônio foi considerado, tão somente, como a única forma legítima e aceitável de viver a sexualidade genital, conjugal, mas não o amor tout court. Amor é bem mais que genitalidade, em, se a genitalidade pode ser vivida sem amor (como fazem os sapos, os cães e os que vivem, como consumidor ou fornecedor, a prostituição), certamente o amor pleno pode ser vivido sem expressão ativa de genitalidade, como Jesus o fez. Trata-se de um texto que, para o meu grau limitado de erudição, traz uma escassa clareza de conceitos, o que me pareceu inaceitável num livro que se propõe a ensinar-nos a ser melhores cristãos, mormente quando o autor se apresenta como sacerdote, biblista e teólogo. Senti-me indefeso e confuso.
Em seguida, ainda mantendo, para meu grau tosco de erudição, essa confusão entre o amor divino, o amor humano e a sexualidade, e, à maneira de “resposta” à objeção daquela sua amiga que o “acusara” de desconhecer o sexo e, portanto, ser incompetente para comentar o Cântico, ele afirma, num parágrafo que me soou obscuro e um tanto poético:
“Em todo caso, quer dizer que, como sacerdote e representante de uma religião, eu não posso ou não devo ou ainda não me convém experimentar aquilo que é o elemento constitutivo mais básico, não só da vida humana, mas também da própria vida divina? O que significa tudo isso? Na verdade, na reação dessa amiga, não vejo nada de pessoal. Porém, estarrecido, constato séculos e séculos de uma dicotomia, de um corte entre a divindade e a humanidade, e é justamente isso que me deixa muitíssimo preocupado”.
Bom, eu não sou culto o suficiente para entender sem ambiguidades um parágrafo assim. Será que o sacerdote está equiparando sexo e amor, e, mais ainda, levando a sexualidade ao nível de “elemento constitutivo mais básico, não só da vida humana, mas também da própria vida divina?” Seremos todos nós freudianos, daqueles que acham que a pulsão sexual é um deus, ou o fundamento básico da vida humana? Será que o autor do texto está insinuando que reconhece que, sem o amor sexual, o homem não pode comentar o Cântico, mas veladamente gaba-se da sua própria experiência nesse campo? Certamente não é isso, mas a forma com que este texto está redigido permitiu-me, na minha simploriedade, chegar a essa conclusão.
Creio que não é difícil para outros, tão simplórios quanto eu, evitar adotar a mesma conclusão confusa, e sentir-se, como eu, apenas um ultrapassado e inculto seguidor de uma Igreja moralista, dicotomista e ultrapassada, e o autor, com toda a sua erudição e vanguarda, como um destemido profeta de uma nova era de sexualidade plena e mística. Tudo isso, é claro, é somente a minha própria visão distorcida, mero leigo despreparado frente a um sacerdote biblista renomado publicado por uma das maiores casas editoras católicas do mundo.
O Cântico é maravilhoso. Ele tem imensas dificuldades exegéticas, e deve, é claro, ser lido de um modo não-moralista. Refiro-me, é claro, à melhor conotação da expressão “moralista”, vale dizer, moralismo como farisaísmo de quem vê as regras morais como exterioridades. Porque creio que temos uma moral, a moral cristã, e ter e viver uma moral não significa ser moralista, muito ao contrário. Portanto, toda vez que imagino que um exegeta está insinuando que somente posso entender determinado texto bíblico se renunciar ao meu próprio cristianismo católico, fico com uma tremenda pulga atrás da orelha.
Mas o Cântico não é amoral, e está inserido num cânon judaico-cristão, não, como eu entendi da proposta do livro, numa moldura hippie pós-freudiana. Vou rezar mais para tentar ler melhor a Bíblia, embora às vezes eu tenha a sensação, depois de ler este livro, de que rezar pode não ser a melhor maneira de conversar com Deus, pois o “amor”, nesse contexto dúbio que o autor coloca, pode ser melhor definido, como ele mesmo faz, como “a faísca que brilha desde aquele momento em que um espermatozóide se encontrou com um óvulo, e daí surgimos todos e cada um de nós”. O autor prossegue:
“Nossa vida, queiramos ou não, gostemos ou não – se resume na questão básica de amar ou não amar, de sermos ou não cúmplices desse universal mistério da vida”.
E, num texto ainda mais fora do meu alcance iletrado, ele afirma:
“Fomos criados para o amor e apenas no amor nos sentiremos plenamente realizados. De qual modo viveremos o amor, porém, é outra questão – aliás, questão de pura criatividade. Não se trata propriamente de criarmos o amor, mas de deixar que o amor crie nosso viver, pois o amor é, em sua própria essência, o grande inventor da vida. E não tenhamos medo de repetir as velhas fórmulas, porque isso jamais acontecerá. Mesmo que nós todos tenhamos nas mãos os mesmos ingredientes, o modo de cada um amar e, portanto, de viver, será único e singular”.
Desculpe, meu desconhecido sacerdote e autor de tão erudito livro. Meu modo de viver não me parece singular; para mim, o amor é plural, e minha vida não está escondida numa “faísca” que saltou quando o espermatozóide do meu pai encontrou-se com o óvulo de minha mãe, quem sabe se numa transa fortuita e entediante. A minha vida está escondida em Jesus, como me adverte São Paulo (Colossenses 3, 3), e é para ela que me ordeno, integralmente, inclusive a minha sexualidade. Não entendi a mensagem do livro, mas meu desconforto decorre de que não reconheço, nessa obscuridade, a voz do meu pastor, que é a voz do mesmo Jesus de sempre, João 10, 14.
Eu continuo muito angustiado quando vou numa livraria católica. Soube, estes dias, por um dos vendedores de uma delas, que um dos livros mais vendidos ali chama-se “Outro Cristianismo é Possível”. Qual seria esse “outro cristianismo”, eu não sei, nem sou erudito o suficiente para saber, me parece. Mas dá quase uma consciência pesada, nessas livrarias, estar satisfeito com este cristianismo mesmo, o cristianismo católico, aquele que acredita que Jesus não muda e que as portas do inferno não prevaleceram, em tempo algum, contra a Igreja.
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