quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Confissão sacramental e psicanálise

Num período muito conturbado da minha vida, no qual o estresse de algumas situações foi muito forte para ser adequadamente equacionado por mim, busquei ajuda terapêutica. Foi muito bom; tive, durante quatro anos, o acompanhamento de uma médica com formação em psicanálise gestaltiana que me ajudou bastante a lidar com as minhas próprias limitações e deficiências. Embora de vez em quando eu ouvisse algumas colocações com as quais não concordava (percebi, mais tarde, que muitas dessas colocações que me incomodavam tinham um fundo no chamado New Age do que propriamente na psicanálise), tive muita ajuda para me conhecer melhor e lidar melhor com as situações estressantes que vivia. A melhor descrição do que a psicanálise significou para mim foi dada por C.S. Lewis, num trecho do livro “Cristianismo Puro e Simples” que transcrevo:
“Imagine três homens que vão à guerra. Um deles tem o medo natural do perigo que
qualquer pessoa tem, mas vence-o pelo esforço moral e se torna corajoso. Vamos supor que os outros dois
tenham, como resultado do que existe em seu subconsciente, um medo irracional e exagerado diante do qual
nenhum esforço moral consegue ser bem-sucedido. Imagine que um psicanalista consiga curar os dois, ou seja,
colocá-los de novo numa situação idêntica à do primeiro homem. É nesse momento em que o problema
psicanalítico está resolvido que começa o problema moral. Com a cura, os dois homens podem seguir caminhos
bastante diferentes. O primeiro deles talvez diga: "Graças a Deus, me livrei daquelas baboseiras. Enfim poderei
fazer o que sempre quis — servir ao meu país." O outro, porém, pode dizer: "Bem, estou muito contente por me
sentir relativamente tranqüilo diante do perigo, mas isso não altera o fato de que estou, como sempre estive,
determinado a pensar primeiro em mim e a deixar que outros camaradas façam o trabalho arriscado sempre que
eu puder. Aliás, um dos benefícios de me sentir menos aterrorizado é que consigo cuidar de mim de forma mais
eficiente e ser bem mais esperto para esconder esse fato dos outros." A diferença entre os dois é puramente
moral, e a psicanálise não tem mais nada a fazer a respeito. Por mais que ela melhore a matéria-prima do
homem, resta ainda outra coisa: a livre escolha do ser humano, uma escolha real feita a partir do material com
que ele depara. O homem pode dar primazia a si mesmo ou aos outros. E este livre-arbítrio é a única coisa da
qual a moralidade se ocupa.”
Bom, tudo isso foi para contar uma coisa interessante que aconteceu depois de longo tempo de terapia psicanalítica: um belo dia, depois de alguns anos falando da minha vida e recebendo a compreensão e o carinho da psicanalista (que constituiu-se numa figura materna da maior importância para mim), eu lhe disse, num final de sessão:
-Há uma mágoa que eu nunca lhe trouxe, aliás que só agora, depois de tanto tempo, ficou clara para mim.
- Qual seria? Perguntou-me ela.
- É que eu estou aqui há tantos anos, sentando para te contar sobre mim, meus medos, minhas angústias e meus sentimentos, e você nunca me perdoou.
- Como assim? (essa mania que os terapeutas têm de responder a uma indagação com uma pergunta deve ter vindo da origem judaica de Freud – a mim, hoje, parece muito rabínica...)
- Sei lá, não é que eu ache que eu tenha feito alguma coisa contra você nem nada, mas é por tudo que eu fiz, as coisas com as quais eu mesmo não concordo de tudo o que eu fiz na vida, sei lá, o mal que muitas vezes espelhei por aí e nunca consertei... Eu queria que você me perdoasse.
- Olha - (ela me falou com muita sinceridade) – eu posso te ajudar a lidar com esse tipo de sentimento de culpa. Mas não cabe a mim te perdoar. Aqui não é um confessionário, e eu não sou um sacerdote católico.
Bingo. Acho que foi essa frase dela que me curou. De fato, saí dali e procurei um padre, e fiz aquilo que não fazia havia muitos anos. Me confessei, longa e detidamente, e recebi o perdão sacramental. Continuei ainda com a psicanálise algum tempo, mas acabei me mudando de cidade e já não tinha paciência de começar de novo com outro psicanalista, contar tudo outra vez, estabelecer o vínculo de novo, enfim, a psicanálise acabou. Mas a confissão começou a fazer parte da minha vida, de modo regular, desde então. E, como às vezes eu digo brincando, com a vantagem de sair bem mais barato...
A resposta da minha psicanalista também me despertou para uma passagem bíblica que eu já lera e relera tantas vezes, e que já ouvira proclamada em tantas missas: “quem pode perdoar pecados, senão Deus?”, perguntam os fariseus a Jesus em Marcos 2, 7. De certa forma, é essa mesma intuição que a terapêutica me transmitiu: que autoridade ela teria para perdoar pecados que muitas vezes não causaram danos diretos a ela ou a ninguém em concreto, senão à minha saúde espiritual e à dos que me cercam, eventual ou permanentemente? Eu sentia um mal-estar muito real por tanta coisa da qual vinha tomando conhecimento e consciência ao longo do tratamento, coisas que eu fizera de ruim para mim mesmo, para os outros e para Deus, mal-estar que, mais tarde, eu soube chamar-se contrição. Mas entendo que ela não me quisesse perdoar: para perdoar, ela teria que me julgar, e para me julgar, ela teria que estar imbuída de alguma autoridade espiritual e moral que transcendesse a mim, a ela própria e aos outros. Mas essa autoridade não poderia ser uma autoridade simplesmente judicial, porque senão não resultaria em perdão, mas em condenação: um juiz estatal não pode absolver um notório culpado fora das hipóteses legais, porque as leis não lhe pertencem e estão acima dele, e os interesses em jogo não estão sob o seu domínio. A misericórdia humana não pode superar a justiça humana. Somente Deus pode, portanto, receber uma confissão sincera e contrita e dar o perdão misericordioso. Os fariseus estavam certos em seu raciocínio, quando fizeram aquela pergunta retórica a Jesus.
Mas Jesus responde:
- Para que vocês saibam que o Filho do Homem tem poder na terra para perdoar os pecados na terra, eu te ordeno – dirigindo-se ao paralítico a quem, pouco antes, perdoara os pecados – levanta-te e anda.
E assim aconteceu. O paralítico levantou-se e andou, vale dizer, a sua cura externa, determinada com poder por Jesus, foi um sinal da sua cura interna. No meu caso, primeiro precisei levantar e andar, por meio da psicanálise, para depois ter os meus pecados perdoados...
O fato é que esse poder de perdoar pecados foi transmitido aos apóstolos, de acordo com o evangelho de João, capítulo 20, versículos 22 e 23. João conta como Jesus ressuscitado soprou sobre os discípulos e lhes disse:
- Recebam o Espírito Santo. Aqueles a quem vocês perdoarem os pecados, estes serão perdoados. Aqueles a quem vocês não perdoarem terão os seus pecados retidos.
É interessante: há uma delegação expressa do poder de Deus aos discípulos de Jesus, no sentido de perdoar e reter pecados. É o que a teologia chama de autocomunicação de Deus aos homens. Mas não pode haver delegação de poder, por parte de Deus, sem o que chamamos (em ciência do direito) de “reserva de poderes”, vale dizer, não seria concebível que Deus delegasse aos homens em geral o poder de perdoar e reter pecados uns aos outros, porque, quando um ser humano qualquer negasse o perdão a qualquer outro ser humano, em nome dessa delegação, então nem o próprio Deus lhe poderia perdoar – uma vez que o tal sujeito que reteve no outro o pecado estaria agindo alegadamente em nome de uma delegação divina expressa. Violenta minha razão que as coisas sejam assim, e de fato elas não são.
O que há, portanto, é o prolongamento do poder que o Filho do homem tem de perdoar pecados, e esse poder é prolongado na exata medida em que o próprio Filho do Homem prolonga sua presença entre nós: a Igreja é o corpo místico de Jesus Cristo, como nos ensina são Paulo na primeira Carta aos Coríntios, capítulo 12, versículos 12 e seguintes.
Nesse corpo bendito de Jesus, que é a Igreja, nem todos têm os mesmos poderes e funções. “Porventura são todos apóstolos?” (Paulo, como bom rabino que era, também gosta de uma perguntinha retórica...). Assim, creio eu, nem todos receberam aquela delegação expressa por Jesus, de perdoar pecados e os reter em nome de Deus. Essa delegação deu-se nos que a receberam, e nos que, por seu turno, sucederam aqueles que a receberam. Porque é certo que houve, desde o começo, uma sucessão apostólica legítima, sempre que faltava algum apóstolo, como diz São Pedro em Atos 1, 20, citando o salmo 109, 8: “que outro receba o seu encargo”. Nesse processo sucessório, presidido pelo próprio São Pedro (a quem Jesus conferira expressamente o encargo de confirmar os irmãos, conforme o evangelho de São Lucas, 22, 32), a imposição das mãos sempre foi vista como necessária para a transmissão do poder sacerdotal na estrutura eclesial. Foi assim que Matias foi constituído em dignidade episcopal, e José de Barsabás, embora reconhecidamente justo e igualmente testemunha da vida, morte e ressurreição do Senhor, não (atos 1,23 a 26). Foi assim que São Paulo constituiu Timóteo na sua dignidade (Segunda Epístola de São Paulo a Timóteo, capítulo 1, versículo 6, como meio para receber o ministério e a graça, descrito no capítulo 4, 14), aconselhando-o a não ter pressa, por seu turno, a impor as mãos sobre outros (2Tim 5, 22), dada a gravidade da condição ministerial transmitida assim.
É nesse sentido que a Igreja ensina que a confissão é sacramental: trata-se do exercício de um poder estritamente divino, por delegação expressa de Jesus e na condição de membro da Igreja constituído em dignidade pela sucessão das mãos ininterrupta desde os apóstolos, e pelo qual uma pessoa pode ter certeza de ter sido perdoada por Deus, cuja misericórdia não é menor que a respectiva justiça.
É isso mesmo: Deus concedeu à Igreja, e somente a Ela, o poder de perdoar pecados. Quem alega se confessar “diretamente com Deus” despreza a Bíblia, porque não foi por meio da “confissão direta com Deus” que Jesus declarou que seríamos perdoados, mas pelo poder expressamente concedido aos seus discípulos numa de suas visitas quando ressuscitado e ainda não elevado aos céus. Citei o trecho bíblico acima. Poderia citar ainda a colocação expressa de Jesus, em Lucas 10, 16, de que quem ouve à Igreja, é a Ele, Jesus, que ouve. E quem a despreza, é a ele que está desprezando. A Igreja é a coluna e sustentáculo da verdade, como está escrito em 1Tim 3, 15. E Igreja, aí, não está escrito como uma palavra genérica: o primeiro ministro do Rei é reconhecido pelas chaves que carrega sobre os ombros (Isaías 22, 22), e essa chave está nos ombros de Pedro (Mt 16, 18), vale dizer, daquele que recebeu, por imposição ininterrupta das mãos, o ministério petrino – o Papa. Somente onde estiver Pedro, aí está a Igreja.
Por isso, procurei um sacerdote católico e me confessei, e tenho feito isso regularmente, desde então. Não há como descrever o bem que faz sair de uma confissão de alma leve.

Nenhum comentário:

Postar um comentário