Para compreender o homem, precisamos de uma antropologia completa e correta. Quer dizer, dois movimentos experimentais são necessários: o primeiro é deduzir uma antropologia a partir da própria observação humana, e a outra, a partir dessa antropologia, deduzir-lhes as consequências, a fim de testar a sua consistência.
Por isso, uma antropologia que não dê conta da questão do sentido da vida humana é inaceitável. Sem admitir que a nossa vida tem um sentido, somos os mais infelizes dos animais, porque somos os únicos animais capazes de perquirir sobre o nosso próprio sentido de vida. Vale dizer, se temos a capacidade de questionar sobre o nosso sentido de vida, mas a nossa vida não tem nenhum sentido discernível, somos malditos. Essa me parece, aliás, ser uma das raízes da epidemia de “depressões” que vivemos. Não estou diagnosticando, nem sequer afirmando categoricamente, mas apenas especulando, com base, dentre outros, no pensamento do grande escritor Viktor Frankl, que aponta a necessidade de sentido como o fator mais importante para o equilíbrio psicológico do homem. Ora, uma antropologia que parte da falta de sentido, sem explicar, por outro lado, por que é que a busca do sentido é uma das características da própria identidade humana, condena o homem à depressão irremediável, e isso me parece incabível.
Neste aspecto, precisamos conhecer e aprofundar a antropologia cristã. Nela, partimos do chamado, feito por Deus ao homem, de participar da vida divina, chamado que foi denominado teologicamente de “justiça original”. Mas, por uma transgressão livre e pessoal do plano divino, o homem torna-se réu de culpa, perdendo por isso a graça da filiação.
Quero explicar que estou utilizando a expressão “justiça” com seu conteúdo teológico de amizade com Deus, de conformidade amorosa com os seus planos e confiança irrestrita no seu amor. Esta é a condição original do homem, da qual temos uma nostalgia indelével em nossos corações.
É bom ressaltar que o homem não é naturalmente filho de Deus. Vale dizer, a filiação divina é um dom, algo que está além e acima da natureza humana. Assim, como dom, pode ser perdido, por escolha livre, voluntária e responsável do homem. Bom, a doutrina do pecado original ensina-nos que foi exatamente isto que aconteceu. Uma escolha livre, voluntária e responsável fez que o primeiro homem, criado em plena justiça e agraciado com a filiação inefável, perdesse essa adoção. E essa condição despojada da justiça original é transmitida individualmente a cada um dos descendentes do primeiro homem. Isso é o que teologicamente se chama de “pecado original originante”.
Bom , desprovidos dessa justiça original, somos como um grande aparelho sem manual de instrução. Já não sabemos o que somos, nem qual o sentido da nossa vida de modo claro e estreme de dúvidas. Assim, a própria condição de portadores de uma natureza ferida por tal queda somente ser-nos-ia clara à luz da morte e ressurreição de Cristo. É preciso conhecer Cristo como fonte da graça, para conhecer Adão como fonte do pecado. Vale dizer, somente em Jesus Cristo nós contemplamos um homem que se conhece plenamente e se conforma integralmente à justiça, vale dizer, ao plano amoroso de Deus. Somente comparando quão distantes nós estamos do modelo de homem revelado em Jesus é que temos noção da profundidade do pecado original em nós. E essa comparação não é possível pelas simples forças de nossa natureza, mas apenas como dom da graça. A nossa natureza ferida é capaz de querer esse bem, quer dizer, de querer comparar-nos com a perfeição absoluta do homem, mas é incapaz de conhecer integralmente o modelo, de conhecer integralmente a si mesmo e de, apenas por suas próprias forças, adaptar sua conduta a esse modelo. É nesse sentido que São Paulo, na Epístola aos Romanos, expressa sua dor:
“15 Não entendo, absolutamente, o que faço, pois não faço o que quero; faço o que aborreço. 16 E, se faço o que não quero, reconheço que a lei é boa. 17 Mas, então, não sou eu que o faço, mas o pecado que em mim habita. 18 Eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita o bem, porque o querer o bem está em mim, mas não sou capaz de efetuá-lo. 19 Não faço o bem que quereria, mas o mal que não quero. 20 Ora, se faço o que não quero, já não sou eu que faço, mas sim o pecado que em mim habita. 21 Encontro, pois, em mim esta lei: quando quero fazer o bem, o que se me depara é o mal.”
Neste sentido, um homem plenamente conformado a Jesus é um homem que não precisa de um ordenamento jurídico para realizar o plano de perfeição e amor de Deus para a humanidade. É por isso que o próprio São Paulo afirma tanto que não é a lei que salva, mas a graça. Somente a graça permite que eu contemple a perfeição de Jesus, a minha própria imperfeição, e que eu deseje profundamente assemelhar-me a ele, reconhecendo que sou incapaz para tanto apenas pela força da natureza, e implore a ajuda de Deus para aperfeiçoar-me. Para o homem que vive em tal graça, a lei é útil, como são úteis os sinais de trânsito para os que têm um ponto de destino, mas não é salvífica, como uma sinalização de trânsito não pode lhe fornecer um objetivo, um ponto de chegada, um destino final.
É o Espírito Santo, enviado por Jesus Cristo Ressuscitado, aquele que nos permite conhecer o pecado em nós e a santidade em Jesus, bem como a culpabilidade do mundo a respeito do pecado (Jo 16,8), ao revelar-nos Jesus como redentor.
A lei, portanto, é necessária para uma humanidade que vive sem a graça, e importante para os que, embora vivendo na graça, sentem ainda em si os efeitos do pecado original. Mas não é suficiente para devolver-nos a perfeição perdida.
Neste sentido, o conhecimento da realidade do pecado original é o reverso da Boa Nova de que Jesus é o salvador de todos os homens. Todos têm necessidade de salvação, porque todos foram maculados por esta mesma condição humana, maculada e decaída, transmitida pelos nossos pais comuns. Por isso é que se pode falar de uma ”solidariedade” do ser humano no pecado, na medida em que essa condição é compartilhada por todos, indistintamente.
O relato da queda dos nossos pais comuns utiliza-se de uma linguagem imagética para afirmar um acontecimento primordial, um fato que ocorreu no interior da história humana, mais precisamente nos seus inícios, de modo a condicionar todos os acontecimentos posteriores. A revelação dá-nos certeza, pela fé, de que toda a história humana está marcada pelo pecado original cometido livremente por nossos pais.
Falando de fé, poderíamos falar dessa força sinistra que está por trás da desobediência dos nossos primeiros pais. Trata-se de uma inteligência agente, cujos efeitos tantas vezes vemos atuando na história humana de modo maléfico e sistemático. Aquilo que chamamos de “anjo destronado”, ou seja, uma pessoa, optou livremente por rejeitar, de modo completo, radical e irrevogável, a Deus e seu Reino. Mistério da iniquidade. Falar da árvore do bem e do mal e da opção irrevogável dos anjos – e dos homens após a morte – é importante, não por qualquer sedução maléfica, mas porque essas realidades são essenciais para se conhecer o tamanho do amor de Deus por nós. Somente uma liberdade que chega ao ponto de permitir uma irrevogável opção contra Deus pode ser considerada uma liberdade subsistente e real, na criatura. Sim, porque, se fôssemos livres para tudo, menos para optar pela rebeldia contra o Criador, tampouco seríamos livres para amá-lo por pura escolha. Constrangidos a amá-lo, jamais chegaríamos a amar de verdade, por um movimento nosso em direção a ele. Somente pode haver paraíso, para os seres livres, quando há uma árvore proibida, nesse paraíso. Senão, sem poder escolher contra Deus, eu jamais seria livre para escolher Deus. Sem poder escolher Rejeitar a Deus total e irrevogavelmente, tampouco se poderia amar a Deus total e irrevogavelmente. Somente a possibilidade de existir Satanás torna possível existir Maria.
Mas o mal não é um ser. Explico-me. Satanás é uma pessoa, poderoso porque é puro espírito, mas a sua maldade não é um ente. A maldade é a privação de um bem esperado. A privação não é uma coisa, mas a falta de algo.
Voltemos ao homem. Essa criatura de Deus tem duas características fundamentais: é a imagem de Deus e foi criado em amizade com Ele. Deus não é uma imagem antropomórfica idealizada: ao contrário, o homem é teomórfico.
Mas, no seu ser de criatura, o homem somente poderia viver essa amizade a Deus pela livre submissão ao seu criador. Senão o homem já não seria um amigo, mas um escravo, ou pior, um bichinho de estimação ou um robô. Assim, a imagem da árvore do conhecimento do bem e do mal evoca simultaneamente o limite intransponível que o homem deve respeitar, como criatura livre, bem como a confiança e a liberdade com que se aproxima de Deus, a fidelidade que toda amizade pressupõe, enfim. A existência de um limite para o homem, no centro do próprio paraíso, é o marco da abariedade, do respeito à lei da criação e do reconhecimento, por parte do ser humano das normas morais que regem a liberdade.
Tentado, no entanto, o homem deixou morrer em seu coração a confiança no seu criador e, abusando da liberdade, desobedeceu ao mandamento de Deus. Por isso, o primeiro pecado foi a desobediência. Todo pecado, daí por diante, será, no fundo, uma desobediência e falta de confiança na bondade divina. O ser humano, no pecado, tira Deus do centro e põe ali a si mesmo. Trata-se de rejeitar a deificação como dom, para elevar-se, sem Deus, à autodeificação, antepondo-se ao criador.
As consequências do pecado original são graves, e são evidentes para todos. Perdida a graça de santidade original, surge o medo de Deus. Note-se que o temor de Deus é uma virtude, mas o medo de Deus, não. O medo de Deus faz com que as pessoas tornem-se adversários de Deus. Cria-se uma imagem falsa de um deus ciumento de suas prerrogativas, um adversário do ser humano, e contra essa imagem o homem passa a combater Deus.
A harmonia da graça original foi destruída. O domínio das faculdades espirituais da alma sobre o corpo é rompida. Surge algo como uma “sombra” na realidade espiritual do homem, que os psicanalistas chamarão de id, subconsciente, duplo, enfim, toda essa nomenclatura que se usa para descrever a vida espiritual que decorre sem controle nas camadas mais profundas da psique humana. A união entre homem e mulher sofre tensão, está submetida à cupidez e à dominação. A harmonia com a natureza fica lesada, e o homem passa a ser um estranho frente a uma natureza hostil e submetida à servidão da corrupção. Graças ao pecado, a morte entra na história humana.
O pecado de nossos primeiros pais inunda o mundo. Somos todos filhos desses mesmos pais humanos, somos “solidários em Adão”, ou seja, solidários no pecado. Mas essa, como sabemos, não é a última palavra. Pois somos capazes de Deus, ou seja, de receber a salvação universal em Jesus.
A imensa miséria que oprime os homens e sua inclinação para o mal são incompreensíveis sem esta noção do pecado original e de sua transmissão por propagação. Expliquemo-nos. O gênero humano inteiro é, em Adão, como que um só homem. Assim, independentemente de culpa pessoal, estamos todos implicados no pecado do primeiro casal; a boa notícia é que, independente de mérito, estamos também todos implicados na justiça de Cristo. A diferença é que, embora Cristo tenha proporcionado objetivamente a salvação para todos os homens, somos livres para rejeitá-la, porque, se o pecado original transmite-se por propagação, a salvação em Cristo depende de adesão. Ou, como dizia Santo Agostinho: Deus, que te criou sem ti, não quer te salvar sem ti. Em Cristo, portanto, abre-se para nós a vida, como em Adão abriu-se a morte pela desobediência.
A transmissão do pecado original é um mistério. Não entendemos plenamente esse processo. Tive um querido professor que costumava dizer: mistério não é aquilo que não se entende, mas aquilo que não se esgota. O fato é que o pecado original não tem caráter pessoal. Não é uma culpa. É uma condição: é como se o molde de uma fábrica de bonequinhos de plástico adquirisse um pequeno defeito, e todos os bonequinhos produzidos ali saíssem com esse mesmo de feito. O pecado original é, no campo da graça, a privação da santidade e da justiça originais. No campo da natureza é a natureza humana lesada, mas não completamente corrompida. Somos capazes do bem natural. Mas estamos submetidos à ignorância, ao sofrimento, à morte, e inclinados ao pecado. Mas essa inclinação não é total nem irreversível, porque senão seríamos irresponsáveis perante Deus e perante os outros.
Como breve parêntese, eu diria que o batismo apaga o pecado original, mas não suas consequências sobre a natureza humana enfraquecida. Continuamos com a natureza lesada, sujeita à dor e à doença, à ignorância e à morte, bem como à concupiscência, que é a inclinação para o pecado. A persistência dessas consequências nos incita ao combate espiritual.
É interessante lembrar a discussão sobre o pecado original ao longo da história da Igreja. Pelágio da Bretanha, escritor antigo (cerca de 360-435), sustentava que o homem podia, pela força de sua vontade livre, sem a ajuda da graça de Deus, levar uma vida moralmente boa. Para ele, Adão era só um mau exemplo. Pelágio teve suas posições fortemente refutadas por Santo Agostinho, em obras ainda hoje importantíssimas para a correta compreensão da doutrina da Igreja.
Os primeiros reformadores partiram para o extremo oposto, com relação ao pelagianismo. Defendiam que o pecado original teria pervertido completamente a natureza humana, e a liberdade teria ficado anulada por ele. O pecado herdado seria uma insuperável tendência para o mal: haveria uma identidade entre concupiscência e pecado. Isso comprometeria, também, qualquer doutrina jurídica: naturalmente incapazes para o bem, somos também absolutamente incapazes de legislar bem. É só pensar um pouco para perceber as consequências dessa doutrina para uma teoria do direito. Tanto se pode justificar, por ela, o totalitarismo teocrático, em nome da incapacidade natural humana de se governar, quanto a autonomia absoluta e a anarquia, em nome do mesmo princípio. Imagino que não seria difícil negar qualquer consistência aos direitos naturais e aos direitos humanos, à possibilidade de uma ética racional ou até mesmo a quaisquer reconhecimentos de valores estritamente naturais ou humanos. Uma visão da natureza humana como totalmente corrompida não parece ser o melhor fundamento antropológico para um ordenamento jurídico, do mesmo modo que a santidade natural pelagiana (ou rousseauniana) não é.
É necessário, portanto, um discernimento lúcido sobre a situação do homem no mundo. A partir do pecado original, há, de fato, uma certa dominação do homem pelo diabo, o que é ignorado em determinadas antropologias otimistas, como a rousseauniana, bem como superestimado nas pessimistas, como as predestinacionistas de origem calvinista, causando graves erros na educação, na política, na ação social e nos costumes.
O pecado original, os pecados pessoais e suas consequências conferem ao mundo em seu conjunto uma condição pecadora (Jo 1, 29), que a Bíblia chama de “o pecado do mundo”. Com essa expressão, se bem compreendida, exprime-se também a influência negativa que as situações comunitárias e as estruturas sociais, frutos dos pecados pessoais do homem, exercem sobre os outros homens, induzindo-os ao sofrimento e ao próprio pecado.
A luta incansável contra o poder das trevas é, portanto, parte da realidade da humanidade decaída. Neste espaço é que se encontra a necessidade, premente para o cristão, de influir nos ordenamentos jurídicos positivos. É que, embora não sendo salvíficos em si, eles podem servir de instrumentos para a implementação das estruturas sociais de pecado (imaginemos uma rede de clínicas abortistas, por exemplo). O homem, e em especial o cristão, deve lutar sempre para aderir ao bem, e não o consegue sem grandes esforços e principalmente a graça de Deus, condições necessárias e suficientes para recobrar a unidade interior (e social) perdidas pelo pecado original. Quando essa unidade estiver refeita, tampouco o ordenamento jurídico positivo terá mais qualquer significado ou importância. Estaremos sob a lei do amor.
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