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terça-feira, 20 de março de 2012
Melhor Reinar no Inferno que Obedecer no Paraíso
Paulo Jacobina
“Que importa onde eu esteja, se eu o mesmo
Sempre serei, — e quanto posso, tudo?...
Tudo... menos o que é esse que os raios
Mais poderoso do que nós fizeram!
Nós ao menos aqui seremos livres,
Deus o Inferno não fez para invejá-lo;
Não quererá daqui lançar-nos fora:
Poderemos aqui reinar seguros.
Reinar é o alvo da ambição mais nobre,
Inda que seja no profundo Inferno:
Reinar no Inferno preferir nos cumpre
À vileza de ser no Céu escravos.”
Este é o grito de guerra de Satanás no inferno, segundo John Milton, no seu “Paraíso Perdido”, livro 1, tradução de Antônio José de Lima Leitão. Este tem sido o grito de guerra de muitos, hoje em dia. É melhor reinar no inferno do que servir no paraíso, dizem. Não é um grito original: aos que gritam assim, diz-nos John Milton, antecedem-nos o grito de Satanás. Mas será que é assim mesmo? Será que este grito por liberdade, vindo da boca de Satanás, é sincero? Será que se ele se opõe, como um grande lutador pela liberdade, a um Deus tirano, que usa sua onipotência como prepotência, para construir um reino tirânico no qual a obediência cega é recompensada pelos prazeres paradisíacos, enquanto no inferno, privado de todo conforto, o Diabo luta heroicamente pela sua própria liberdade, renunciando, em favor dela, aos confortos do céu com o qual o divino tirano compra a obediência dos conformistas?
Não é assim. E digo porque:
1. Deus não é um tirano onipotente, mas um pai todo amoroso. Assim Ele se revela. E devemos confiar na revelação divina sobre Deus, não no retrato que o Diabo faz dele.
2. A revolta do Diabo não busca a liberdade, mas o poder. Por isso, ele não o dividiria com os sequazes, ou mesmo com os que, iludidos com a natureza de sua busca, renunciam ao amor de Deus imaginando que este grito se aplica a eles. O inferno não é uma democracia, e o diabo não ama: manda.
3. Não se trata de uma luta escatológica; a luta pela possessão das pessoas não se dá no pós-morte, mas aqui e agora. Normalmente aqueles que, seduzidos pelo grito de guerra de Satanás, renunciam a viver no amor de Deus em busca da “liberdade” que o Diabo prega começam a viver no inferno aqui mesmo. Por outro lado, os que se entregam ao amor de Deus têm aqui mesmo a posse antecipada do que se espera, ou seja, como diziam os antigos, os que se entregam ao amor de Deus têm o privilégio de prelibar o céu – não como um prêmio, mas como uma consequência.
4. Deus corrige, o Diabo não. Mas isso se dá porque as palavras têm valor diferente, quando pronunciadas na Revelação de Deus, e quando pronunciadas no grito demoníaco. Deus corrige porque quer que seus filhos sejam excelentes no que fazem, livres sem restrições, e não os deixa nunca caminhar no caminho do auto-aprisionamento. Ele sabe que a liberdade é o amor irrestrito, e não o poder sem limites. O Diabo, por outro lado, não ama, e por isso é complacente com quem busca a autodestruição.
Voltando, portanto ao item 01 supra. O retrato que o Diabo faz de Deus no poema de John Milton é o retrato que muitas pessoas têm, hoje, de Deus. Deus é “mais poderoso do que nós”, diz o segundo verso do poema acima, e é esta a característica que o Diabo pinta de Deus, e é isto que o Diabo inveja em Deus: Deus é odiável porque é mais poderoso do que nós! Assim somente no inferno nos livraremos de um Deus assim onipotente, ou melhor, prepotente. Cabe-nos resistir a ele com todas as nossas forças, e mesmo à custa de todos os nossos confortos com que Deus nos seduz para nos conquistar e escravizar: cabe resistir à “vileza de ser no céu escravos”.
Ora, esta é exatamente a demanda moderna por uma “moral pura”. Nest sentido, a proposta do Diabo, em John Milton, é mais “ética” (num sentido kantiano) do que aquilo que o Diabo aponta como sendo a proposta de Deus.
Explico: o Diabo aponta Deus como um déspota todo-poderoso que oferece o paraíso ao preço da vil escravidão da vontade. Neste paraíso, portanto, o homem renuncia à vontade para usufruir das delícias divinas. Quer dizer, o homem é como um escravo corrompido pelo conforto supremo, um verme submetido ao déspota arrogante que é Deus, à troca do prazer fácil.
Ao descrever-se, porém, o Diabo mostra-se como um libertário: renuncie a todos os confortos burgueses que Deus oferece no Paraíso e venha ser livre aqui no inferno, onde Deus não tem poder porque não pode corromper-nos com sua oferta de conforto em troca de obediência. Aqui não prometemos confortos, mas não há nenhuma exigência de obediência; portanto, todos os seus atos serão livres, isto é, terão sua origem na sua consciência, na sua autonomia, e não em promessas de confortos pós-vida. Renuncie ao paraíso, livre-se da tentação divina e seja livre; seja forte o suficiente para ser livre, mesmo infeliz, e seja mais ético do que quem é escravo da própria felicidade. Diz Pinckaers, num texto que se aplica ao que estamos agora refletindo:
“Do século catorze em diante a perspectiva mudou radicalmente. A questão da felicidade foi rapidamente posta de lado, e a análise moral foi cada vez mais focada nas obrigações impostas pela lei como expressão da vontade divina. Os manuais de teologia moral já não contêm um tratado sobre a felicidade, como São Tomás tinha, embora ele permaneça como a grande autoridade. Consequentemente, na visão dos manualistas, pode-se construir uma ética e viver uma vida moral sem sequer se considerar a questão da felicidade. Kant, por seu turno, critica o que ele chama de “eudemonismo” (do termo grego “eudemonia”, que significa felicidade), criticando qualquer sistema que introduzisse nas intenções morais uma consideração da felicidade vista como um fim. Ele sustenta que “todos os eudemonistas são egoístas práticos” e assevera que “fazer do eudemonismo o fundamento da virtude é praticar eutanásia na moralidade”. Ele estava reagindo contra o utilitarianismo, que estava surgindo na Inglaterra nessa época, e que propunha a felicidade como o fim da ética moral, mas uma felicidade que era vista como o bem-estar do maior número. Ele queria resguardar a excelência do ato de intenção transformando-o em pura obediência ao imperativo categórico.”
Assim, a proposta do Diabo, no Paraíso Perdido de Milton, é bem kantiana: faça aquilo que lhe parece o bem, mas não em troca das doces promessas de Deus; faça-o porque lhe parece bem, e você será tão mais ético quanto mais renunciar ao paraíso como causa de suas ações boas.
Mas não é assim. A causa das ações boas não é a recompensa do paraíso, como o Diabo acusa Deus de propor, nem, por outro lado, a afirmação de uma completa autonomia do Eu à custa de qualquer promessa de conforto, como o Diabo promete no poema de John Milton. A fonte de qualquer ética cristã é o próprio amor. E isso o Diabo não conhece.
Eu disse acima que Deus é o próprio amor, e não um tirano onipotente, como o diabo o retrata no poema de Milton – que é o retrato que temos de Deus na maioria dos nossos debates contemporâneos. As nossas boas ações, as nossas ações verdadeiramente livres vêm do amor, não da autonomia indiferente da vontade. Neste ponto, lembro=me de uma discussão que tive, certa feita, com um amigo cristão, mais íntimo do amor de Deus do que eu. Eu me queixava com ele, dizendo-lhe que eu sempre achei estranho que o primeiro atributo ligado a Deus, no nosso credo apostólico, era a onipotência. Eu dizia: “acho ruim que a primeira coisa que se fale de Deus no credo seja: 'creio em Deus Pai todo-poderoso'. Será que o primeiro atributo de Deus é ser todo-poderoso, ou ser todo amoroso? Deveríamos falar: 'creio em Deus Pai todo amoroso!'”.
Para minha surpresa, ele me respondeu: “você está enganado. Ser todo poderoso não é o primeiro atributo de Deus no credo. Olhe de novo”. Eu olhei, e disse: “é sim! Veja: “creio em Deus Pai Todo Poderoso!”
“Pois é”, ele me respondeu. “O primeiro atributo de Deus é ser pai. Ser pai vem antes de ser 'todo poderoso', e é indissociável dele. Assim, Deus é um pai todo poderoso, e é todo poderoso para ser pai, e é como pai que ele é todo poderoso. Ser todo poderoso não é um fim, como o diabo pensa. O fim é ser pai, não no sentido simplesmente masculino do termo, mas no sentido familiar mesmo: a paternidade aí é usada como atributo neutro de geração, não atributo masculino de dominação”.
Eis aí. Enquanto o Diabo está lutando pelo poder absoluto, Deus está vivendo o amor absoluto. Não há um Deus tirano e ditador arrogante, subvertendo-nos pela promessa de um paraíso pós-morte. Isto é o retrato que o Diabo faz de Deus, para que nos revoltemos contra Deus e caiamos no inferno, onde o Diabo, cuja sede é pela onipotência, pode “reinar seguro” sobre nós, sem qualquer temor de que o amor de Deus venha nos resgatar da situação irremediável que é estar no inferno, isto é, submetido àquele que tem sede de poder absoluto e despreza completamente o amor absoluto.
Não podemos acreditar no que o Diabo diz sobre Deus: ele pinta um retrato falso de Deus para que nos revoltemos contra o Deus verdadeiro e caiamos no inferno, onde o Diabo, que não ama, reinará onipotente sobre nós.
Sobre as mentiras do Diabo, nada melhor do que uma advertência de C. S. Lewis no prefácio de suas “Cartas do Inferno”: “Os leitores são advertidos a conceituar o Diabo como um mentiroso; nem tudo que o Screwtape [o nome do diabinho que Lewis retrata em seu livro] diz poderia ser assumido como verdade, mesmo do seu próprio ponto de vista.” Ou seja, ainda que o Diabo soubesse – e de fato ele sabe – que Deus é o puro amor, e não o déspota arrogante que ele procura retratar – ele não nos diria. É claro que nesta história há apenas um lugar em que caímos nas mão de um déspota arrogante e sedento do poder absoluto, onde esta déspota exerce tal poder ilimitadamente sobre nós, seguro de que o Amor jamais intervirá em nosso favor: e tal lugar é o inferno.
Eis porque o grito do Diabo, de que apenas no inferno exercemos nossa liberdade plenamente, porque somos plenamente autônomos, livres da sedução eudêmica do amor de Deus, é falsa. Sem o amor, ou seja, sem o bem, não há diferença entre o Estado e uma quadrilha. E quem diz isso não sou eu: é o grande Agostinho de Hipona, no seu livro “Cidade de Deus”.
Uma cidade em que o poder fosse exercido como um fim em si mesmo, uma ética em que o único imperativo é doar a si mesmo as normas a seguir e segui-las a qualquer custo apenas porque se está convencido de que elas são a expressão autônoma da própria vontade individual livre, ou seja, uma expressão da liberdade individual, como fins em si mesmas, sem preocupações com o amor, com o bem, com a felicidade no sentido mais profundo, mais profundamente espiritual do termo, é uma cidade infernal. Explico-me.
Afirmar que é preciso estar totalmente a salvo do amor de Deus, que é preciso excluir-se completamente de tal amor para se poder ser realmente livre, é exatamente a estratégia do verdadeiro tirano supremo, aquele que é faminto pelo poder absoluto, de conseguir os escravos perfeitos para a sua dominação: aqueles escravos que, desprezando conscientemente o amor, creem que a sua liberdade perfeita consiste em ter sempre adiante de si, indiferentemente, todas as escolhas ao mesmo tempo. Este é exatamente o conceito de liberdade contemporâneo: mais livre é aquela pessoa que pode escolher mais alternativas, e não aquele que, escolhendo bem, usufrui dos benefícios da sua boa escolha e renuncia às seduções que a má escolha lhe traz. A pessoa contemporânea, neste conceito indiferente de liberdade, nem sequer pode admitir que há boas escolhas e más escolhas: ela está paralisada no próprio ato de escolher, e vê nisso sua única liberdade. Por isso jamais escolhe: cada escolha lhe faria ter uma opção a menos (aquela que foi preterida em favor da escolhida) e portanto, cada vez que escolhe, o homem contemporâneo se sente menos livre. Assim, escolhe não escolher, na ilusão de que, não escolhendo, terá sempre todas as escolhas diante de si como possibilidades abertas, e portanto, será sempre sumamente livre. Na verdade, ele está apenas sumamente paralisado, e por isso é o objeto perfeito para a dominação absoluta que o Diabo pretende sobre ele. Chesterton já disse com genialidade no seu livro “Ortodoxia”: “adorar a própria escolha é recusar-se a escolher”. E exemplifica:
“Todos os adoradores da vontade, de Nietzsche ao sr. Davidson, estão na realidade completamente vazios de volição. Eles não podem querer; eles mal podem aspirar. E se alguém precisa de uma prova disso, ela pode ser achada muito facilmente no seguinte fato: eles sempre falam da vontade como algo que se expande e se liberta. Mas é exatamente o contrário. Cada ato de vontade é um ato de autolimitação. Desejar uma ação é desejar uma limitação. Nesse sentido todas as ações são ações de sacrifício de si mesmo. Quando você escolhe uma coisa qualquer, você rejeita tudo o mais.
Aquela objeção que os homens dessa escola costumavam levantar contra o ato do casamento é realmente uma objeção contra todos os atos. Todos os atos são uma irrevogável exclusão por seleção. Exatamente como quando você se casa com uma mulher desiste de todas as outras, assim também quando você toma um caminho de ação desiste de todos os outros caminhos. Se você se torna rei da Inglaterra, desiste do posto de bedel em Brompton. Se você vai a Roma, sacrifica uma vida rica e sugestiva em Wimbledon.” (Ortodoxia, Chesterton, cap. III, o Suicídio do Pensamento).
Assim, este é um falso dilema, que o Diabo nos propõe, nas palavras brilhantes de John Milton: Escolha o inferno, renuncie às tentações de conforto que Deus antepõe à velada submissão total da sua vontade que Ele exige como condição da sua entrada no paraíso, seja forte o suficiente para sobreviver aqui no gélido inferno que a crueldade divina criou para nós os anarquistas libertários, os que não se submeteram à sua infinita onipotência, e venha ser absolutamente livre: venha poder escolher tudo e qualquer coisa sempre, com total autonomia, submetendo-se apenas à sua vontade pura e livre do arrogante onipotente.
O que o diabo não diz é que a vontade individual pura e absolutamente autônoma, a vontade que sempre pode escolher tudo e nunca se aprisiona por nada, nem pelo amor de Deus, é sempre a vontade paralisada. Cada escolha implica renunciar à alternativa contrária. Mas isto não é diminuir sua liberdade: isto é exercê-la. Somente sou livre para ter uma companheira se também for livre para renunciar a todas as outras. Vale dizer, exemplificando: aquele homem que quiser ser livre para ter todas as mulheres jamais será livre para ter alguma.
Assim, não se trata de renunciar a um paraíso no pós-vida para ser livre no aqui e agora, tomando posição a favor do Diabo “libertário” contra o Deus “arrogante”, com a coragem de escolher o inferno e ser livre ou submeter-se ao Deus prepotente em troca do paraíso e ser um eterno prisioneiro. Trata-se de viver o inferno aqui e agora: quem escolhe contra Deus não escolhe a liberdade suprema de ter todas as opções: escolhe a paralisia suprema de não poder escolher nenhuma sem renunciar imediatamente à outra e ser aparentemente menos livre... Quem escolhe ir para o inferno depois de morto já está no inferno desde agora. E quem quer que tenha um pouco de autoconsciência, quem possui um mínimo de autocontemplação e honestidade pode olhar para si mesmo e ver que isto é uma suprema verdade: paraíso e inferno não são apenas realidades escatológicas: são realidades existenciais imediatas.
Escolha Deus: somente esta primeira escolha permite que você possa caminhar por todas as outras com tranquilidade, sabendo que a quem ama tudo é permitido, como dizia Agostinho de Hipona. A quem ama é dado escolher e viver as suas escolhas com absoluta convicção de que as aparentes renúncias, que se dão quando se escolhe um caminho e não outro, serão repletas do Amor que as plenifica, e não há perdas em escolher e viver até o fim em conformidade com as respectivas escolhas. Será um mestre em cada um dos caminhos que escolheu, porque caminhou neles até o fim e absorveu deles a sabedoria que continham. Reinou em cada caminho, porque os escolheu e percorreu com liberdade: os filhos do rei são reis por direito.
Escolha o Diabo e já não poderá fazer nenhuma escolha, porque cada uma será vista como uma diminuição de liberdade. Chegará ao fim da vida paralisado, encarquilhado, sem ter uma profissão para não renunciar à possibilidade de ter todas as outras, sem ter uma família para não renunciar à possibilidade de ter todas as outras, sem ter uma casa para não renunciar à possibilidade de ter todas as outras, sem ter um deus para não renunciar à possibilidade de ter todos os outros. E, finda a vida, já não há mais tempo nem possibilidade de fazer escolhas: ao não ter feito nenhuma, você renunciou igualmente a todas as alternativas, e o diabo escolheu por você.
Por fim, uma última palavra: se o inferno é o lugar em que vão os que preferem reinar do que obedecer, resta a pergunta: os que vão para lá, se querem todos igualmente reinar, reinarão sobre quem? Da minha parte, acho que o mais poderoso, lá, simplesmente submeterá o menos poderoso, porque a fome de poder, num lugar assim, vai sempre além do bem e do mal. E o mais poderoso, lá, já se sabe quem é. Na ânsia de reinar sem obedecer no aqui e agora, os que escolhem o inferno estão sempre destinados a obedecer sem reinar.
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