terça-feira, 27 de março de 2012

Seis dogmas para escrever

Escrever de boa fé é um ato de amor ao próximo. Eis aí um pensamento profundo e considerável. Para que se escreve? Esta deveria ser a primeira pergunta a se fazer, quando se aborda um texto. Para que o autor deu-se ao trabalho de colocar suas ideias em ordem, e, principalmente, o que ele espera de mim, leitor, quando eu finalmente ler o texto? Este é o questionamento que se faz no presente ensaio. Será que todo texto escrito é, de fato, um ato de amor ao próximo, um compartilhar franco de ideias, ou será que há, em alguns textos, um intuito de dominação do outro? Neste caso, o melhor método, como será discutido adiante, é ver se o autor é coerente com os próprios princípios que ensina em seu texto: um autor cético não tem motivos para tentar convencer ninguém, porque ele próprio em nada acredita. Então, o que o leva a escrever? Um autor solipsista sequer acredita na existência real do outro, ou de coisas fora de si mesmo. Então a quem se dirige? O objetivo do presente texto, portanto, é propor alguns critérios para possibilitar o discernimento quanto à boa-fé de quem escreve, de modo a garantir uma abordagem realmente crítica a um texto: crítica, aqui, não no sentido de demolição irremediável, como parece ser o principal sentido da palavra hoje, mas de ter critério para discernir mais profundamente a proposta do autor, e concordar ou discordar com lealdade. (Paulo Jacobina) Não se pode escrever um texto se se duvida de tudo. Quando eu escrevo um texto, eu creio em seis coisas, que julgo serem realmente o mínimo em que se deve acreditar para escrever. I - O primeiro dogma ao escrever um texto é acreditar em si mesmo: Se não acredito em mim mesmo, como posso ter certeza de que estou realmente aqui escrevendo? Para executar qualquer ação, primeiramente eu tenho que acreditar que eu existo. Se eu não existo, que diferença faz eu deitar na cama e ficar ali sem fazer nada ou escrever um texto? Se eu ficar na cama parado eu morrerei. Será? Eu nunca tentei e, afinal, eu não existo mesmo. Se eu morrer, que diferença faria? Eu tenho que acreditar que eu estou aqui, tenho que acreditar que sou um ser vivo, que sou uma pessoa humana para começar a escrever. Tenho que acreditar na minha realidade e na minha materialidade. Estou aqui, presencialmente. Eu existo como corpo, como pessoa. Eu existo no mundo. II - O segundo dogma é acreditar em seu próprio intelecto: Não basta apenas acreditar em mim mesmo. Eu tenho que acreditar na razão e que eu consigo raciocinar. Eu não poderia escrever um texto sobre a irracionalidade humana, salvo se eu não fosse humano, o que não é o caso. Eu sou humano, e sou racional, o que eu penso faz sentido, é inteligível e por isso eu não estou perdendo meu tempo ao gastá-lo pensando. Se eu não tivesse um intelecto, eu não poderia sequer pensar na ideia de texto, quem dirá escrever um. Para eu pensar que penso, eu tenho que crer no meu pensamento. III - O terceiro dogma é acreditar nas palavras e em seus significados: Eu penso, e o que eu penso faz sentido. Mas como eu posso ter certeza que as palavras que eu escrevo refletem esse meu pensamento? Os significantes têm que corresponder com os seus significados, e as estruturas semânticas têm que ser válidas para que qualquer pensamento seja verbalizado, quer seja na escrita ou na fala. Eu não posso falar que as palavras não refletem os pensamentos, pois então estas próprias palavras que eu proferi não refletiriam o que eu pensei. IV - O quarto dogma é acreditar nos outros: Se não houver ninguém para ler, não adianta eu escrever. Só há comunicação quando há interlocutor. Um dos elementos da comunicação é o receptor. Um diálogo precisa de dois interculocutores, e um monólogo, apesar de só uma pessoa falar, é necessário que haja alguém para ouvir. Uma árvore que cai numa floresta onde não há ninguém pra ouvir não faz barulho. V - O quinto dogma é acreditar no intelecto das outras pessoas: Não adianta a pessoa ler o que foi escrito, se ela não entender o que foi escrito. Eu posso até acreditar nos outros, mas não adianta eu escrever se eu achar que os outros não vão entender o que eu escrevi. Eu jamais pagaria um centavo sequer por um livro escrito por Kant: se sou eu que projeto minha mente no livro, então eu não tenho que pagar os direitos autorais pelo esforço que Kant teve para escrever o livro, ele que deveria me pagar pelo meu esforço de projetar a minha mente na página incognoscível do livro. VI - O sexto dogma é acreditar no valor das outras pessoas: O receptor pode até ler e entender o que eu escrevi, mas qual o meu interesse nisso? Se for apenas retorno financeiro, então eu estaria sendo picareta, pois não escreveria para transmitir uma mensagem, mas sim para ganhar dinheiro. É claro que os escritores profissionais têm que ganhar dinheiro do que escrever, para que eles sobrevivam, mas isso é uma consequência. Todos temos que ganhar dinheiro para sobreviver de alguma forma, e o escritor escolheu escrever por sua paixão à escrita ou por uma vocação. Uma pessoa que escrever apenas para ganhar dinheiro não merece que seu livro seja lido. Há várias funções da linguagem, mas todo texto tem, nem que seja um pouco, sutilmente escondido entre as outras, a função referencial, na medida que sempre há uma mensagem, que quer ser transmitida, e que tem um valor em si mesma. Escrever (de boa fé) é um ato de amor ao próximo. Quando eu escrevo, crendo verdadeiramente no que escrevo, eu estou sendo caridoso com os outros, ao difundir na sociedade aquilo quanto ao qual estou certo. Se eu fosse individualista, não adiantaria eu escrever para os outros, uma vez que a única pessoa que importa sou eu. (Pedro Jacobina)

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