sábado, 27 de fevereiro de 2010

aborto, eugenia e sistema de cotas

Sei que nesta questão do aborto as posições são, muitas vezes,
irredutíveis. Mas faço algumas
ponderações.

Não se trata apenas de uma questão religiosa. Há religiões abortistas.
Há religiões anti-abortistas. Algumas até buscam fundamento num
pensamento predestinacionista, de fundo calvinista, defendido, por
exemplo, pelos anglicanos da low church e pela Universal do Reino de
Deus, de que, uma vez nascido, é muito tarde para salvar uma pessoa,
sendo mais garantido mandá-lo por céu direto do ventre - vale dizer, há
pessoas “religiosas” que chegam a defender o aborto como caminho de
salvação! Por outro lado, religiões tão frontalmente incompatíveis entre si como
o espiritismo e o catolicismo têm circunstancialmente a mesma posição
anti-abortista no particular, embora por razões completamente
diferentes.

Tampouco a questão do aborto é uma questão “avançada” ou
“moderna”. Muitas sociedades antigas, pagãs, conheceram o aborto
e o infanticídio, tanto como meio de controle populacional, quanto como
seleção racial e eugênica. Neste sentido, o aborto é, de fato, um
retrocesso a um momento pré-cristão da humanidade. Não estou fazendo um
julgamento de valor quanto a isso: somente estou argumentando que voltar
a adotar como política pública uma prática antiga, que ficou afastada
tantos séculos da nossa sociedade, não pode ser considerado
“evolução”, no sentido spenceriano do termo.

Pessoalmente, creio que para o aborto ser considerado um “direito”,
ele teria que ser possível retroativamente, meio à moda daquele filme do
Benjamin Button, que o sujeito nasce velho e morre bebê: a gente devia
poder avaliar qual adulto defende o aborto, qual adulto acha que a sua
própria geração e gestação pode ter sido um erro, qual adulto acha que
alguém pode escolher manter ou não uma criança no útero, em seguida,
voltar lá na gestação do referido indivíduo e só então garantir à
respectiva mãe o direito de abortar. Para o aborto ser democrático, só
assim: ficaria obrigatório, nesta hipótese, que os abortistas voltassem
aos úteros das próprias mães para serem abortados...

Na impossibilidade prática de que os próprios abortistas sejam
abortados, é covardia: qualquer um que possa agora defender o aborto só
o faz porque a própria mãe não o abortou e nem pode mais fazê-lo.
Portanto, quem defende o aborto sempre o faz em detrimento de outro:
daquele que ainda pode ser abortado e, portanto, nunca vai chegar a
estar aqui para defender-se. Nada democrático.

Pondero, ainda, que qualquer "direito" ao aborto transformar-se-ia,
rapidamente, num dever de aborto, pelo menos para as mulheres mais
pobres ou vulneráveis. A menos que todas as mulheres do mundo fossem
profissionais altamente instruídas e excelentemente remuneradas,
emocionalmente independentes e absurdamente auto-suficientes, maduras e
estáveis, o que seria de admirar é como uma gestação de uma moça humilde
e de poucas luzes poderia prosseguir, mesmo com o desejo dela, contra a
vontade de quem a sustenta ou suporta, como os seus pais ou o
companheiro, num contexto em que o aborto fosse um "direito", inclusive
assistido pelo planejamento estatal da rede pública de saúde.

Qualquer resistência que a mulher pobre, vulnerável ou insegura (qual
mulher grávida não fica insegura?) pudesse opor, num contexto assim,
seria tido apenas como um "capricho pessoal" econômica e racionalmente
insustentável, contra uma pretensão jurídica legítima que assistiria aos
que a querem obrigar ao aborto. A gestação e o parto, bem como o
sustento da criança, são altamente custosos e trabalhosos. O aborto é
grátis na rede pública. Haveria uma possibilidade de escolha livre?

Vale dizer, trata-se de uma prática altamente eugênica: somente as
mulheres auto-suficientes pertencentes às classes dominantes do primeiro
mundo (ou às classes absurdamente mais favorecidas do resto do mundo) é
que seriam efetivamente livres para decidir pela manutenção ou
interrupção da gravidez. As outras, as pobres, as solteiras, as
trabalhadoras, as dependentes em geral, dificilmente resistiriam à
pressão dos chefes pelo não gozo da licença maternidade, dos maridos,
companheiros ou namorados irritados com as despesas e transtornos da
paternidade.
Isso para não mencionar o padrão de beleza pornográfico que exclui do
mercado econômico ou afetivo as mulheres com estrias ou cicatrizes de
parto ou com obrigações maternas. Ou as famílias "tradicionalistas" ou
simplesmente pouco dispostas a tolerar uma pessoinha inesperada. Bom, as
mulheres ricas, inteligentíssimas e lindas teriam o direito de abortar.
As outras teriam, na prática, o dever, repito, o dever social de
fazê-lo.
É claro que as leis abortivas poderiam criar "vantagens legais" para a
mulher que estivesse disposta a não abortar, ou seja, a levar sua
gravidez a termo voluntariamente, mesmo sendo lícito, mais barato, mais
confortável e mais conveniente não fazê-lo. Cada gravidez seria, assim,
algo como um "serviço público" populacional prestado pela mulher ao
Estado, resultante de uma política oficial de estímulo estatal.
Como se sabe, as políticas públicas decorrem de decisões políticas e de
recursos (bem limitados) a serem direcionados num ou noutro sentido, em
função dos interesses do governante ou do grupo detentor do governo num
determinado Estado, num determinado momento. Isso em todos os países do
mundo, em todos os tempos. Então, na verdade, cada ser humano, daí por
diante, só nasceria quando: 1) fosse filho de alguém economicamente
independente que quisesse e pudesse bancar a aventura de ter e criar um
filho ou 2) quando a sua mãe estivesse incluída numa política pública de
incentivo à gravidez. Política de cotas para gravidez! Imaginemos a
política de cotas para o vestibular, que hoje se está implantando no
país, sendo aplicada a uma eventual “política de incentivo à
gravidez!”
Quem decidiria quais etnias e populações seriam candidatas a incentivos
assim? As ONGs? Os grupos de pressão? Os partidos políticos? E quando o
mundo vivesse uma crise econômica como agora, perderíamos uma geração da
humanidade por falta de recursos públicos? Pode-se imaginar um anúncio
do Ministério da Saúde, mais ou menos assim: “Em função da crise
econômica internacional, este ano haverá recurso somente para a
gestação de mulheres jovens, comprovadamente afrodescendentes,
nordestinas, oriundas da rede pública de ensino ou analfabetas de
nascimento. As outras podem encaminhar-se à Rede Pública de Saúde para a
interrupção gratuita da gestação. Em função de cuidados ambientalistas,
as mulheres grávidas na Amazônia Legal que se encaminharem à rede
pública de saúde para abortar nas próximas vinte e quatro horas
receberão um bônus de cota de carbono! O Ministério da Saúde adverte: a
gravidez pode gerar adolescentes malcriados!”
Ou talvez a gestão dos recursos públicos de “estímulos
populacionais” seria análoga ao processo de reforma agrária: em
caso de necessidade, desapropriaríamos úteros por utilidade pública,
contra "títulos da dívida uterina" recebíveis a longo prazo, digamos em
vinte anos, quando o moleque estivesse pronto para trabalhar e se pagar à
própria mãe. Quem estabeleceria o valor do aluguel de um útero? O
mercado? O governo? A etnia da mulher?

Quem vence, me parece, é Margaret Sanger, porque, afinal, ela tinha
razão em defender publicamente o que hoje se escamoteia. A eugenia e
o abortismo são indissociáveis.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

O professor de biologia e a perda da fé

Outro dia meu filho chegou da escola confuso. Ele me disse que o
professor de Biologia havia ensinado aos alunos que cientistas estavam
conseguindo criar seres vivos em laboratório, a partir de elementos
químicos, e que isso era o fim da idéia de um deus criador, como o
cristão. Ideia que a ciência estava conseguindo destronar e soterrar
de vez. O professor lhe ensinara que a vida é resultado de forças
cegas, que fortuitamente juntam os elementos numa ordem evolutiva, ao
longo de bilhares de anos de seleção e evolução casual e impessoal.
Hum, parei. Então contei uma historinha ao meu filho.
“Imagine, filho amado, que uma criança está andando pela sua escola,
num sábado sem aula, e descobre uma caixinha cheia de peças de lego no
chão. Ao lado, está a tampa da caixa, com a foto de um robô de lego,
bem bonito. “
“Imagine, então, que a criança sentasse ali e, olhando para aquela
foto e usando aquelas pecinhas, montasse um robô igualzinho ao da
foto. Depois, a criança saísse gritando pela escola: ‘gente, a
fábrica de lego não existe!’”
“Mas o que ele fez não prova que a fábrica de lego não existe, prova
apenas que o menino descobriu a ordem certa em que as pecinhas
deveriam ser juntadas para atingir o resultado que o engenheiro do
brinquedo visava para ele”, completou meu filho.
“Exato. Esta é a verdadeira questão. Por que existe algo, ao invés de
nada? E que este algo seja dado ao cientista, uma vez que ele não
consegue criar “algo” do “nada”? E porque este algo, quando juntado em
determinada ordem, e não em outra – ordem esta que não é determinada
pelo cientista, mas sim por ele descoberta – poderia resultar em
criar um ser vivo em laboratório? Isso, se admitirmos que se pode criar um ser vivo em laboratório, o que, ao que eu sei, ainda não foi feito.”
“Entendi, pai”, disse meu filho. “Somente Deus cria algo do nada”.
“Há mais uma coisa”, eu disse a ele. “No laboratório, há um cientista
genial, cercado de equipamentos altamente tecnológicos e um ambiente
cuidadosamente estudado. Como o resultado de pesquisas assim pode
comprovar a ação do acaso? Como se pode comprovar que as coisas
surgiram na natureza fortuitamente, que não há um ser transcendente,
inteligente e previdente por trás da natureza, através de
experiências conduzidas por cientistas, que são seres pessoais, pensantes, inteligentes e metódicos, num laboratório sofisticado? Se a ciência comprova que um
cientista, usando os mais altos recursos da inteligência humana, pode
produzir vida em laboratório utilizando-se de matéria inerte
preexistente, contando com um modelo para copiar, como pode daí
concluir que a vida que existe fora do laboratório surgiu do nada sem
o concurso de uma causa inteligente? “
“Para provar isso”, disse o meu filho, “seria necessário que
documentássemos o surgimento casual e espontâneo da vida, fora de
laboratório?”
“Nem assim”, respondi. “Neste caso, apenas provaríamos a geração
espontânea, nunca a casual, porque a casualidade não é um fato, para
ser provado. A casualidade é exatamente a impossibilidade de
explicação metódica...”
“E contradiríamos um grande cientista, Louis Pasteur”, concluí. “Não contradiríamos a
Bíblia, nem a fé. Sabia que os maiores teólogos, como Santo Agostinho e São Tomás, acreditavam na possibilidade da geração espontânea da vida? Seguiam Aristóteles, neste particular. Foi Pasteur, um cientista, quem provou o contrário...”.
“E o tempo?” perguntou meu filho. “O acaso não poderia funcionar, se
esperássemos bilhões de anos?”
“Qualquer pessoa pode acertar, por mera sorte, uma tacada no bilhar.
Mas quando o jogador faz uma série de cem, é uma justificação muito
fraca dizer que ele teve sorte. Agora, o que seu professor está
dizendo é que a explicação para uma série perfeita de bilhões de
tacadas certeiras é o fato de que não existe jogador e todas as
chances estão contra, mas mesmo assim as tacadas certeiras aconteceram! Não importa se passa um ano ou um bilhão de anos. A matemática da probabilidade não muda com a passagem do tempo...”
“Não é uma boa explicação, não é, pai? Acho que meu professor exagerou, tirou conclusões que não cabiam nas premissas que ele adotou.”
Meu filho saiu menos angustiado. Mas eu não posso deixar de pensar em
quantos jovens não tiveram a oportunidade de ter esta conversa, e
perderam a fé...

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

A capa do livro "Cartas a Probo - uma conversa cristã sobre o espiritismo"


Para quem quiser comprar, está à venda pelo site da livraria Comdeus, http://www.livrariacomdeus.com.br/
Um trechinho do livro está lá embaixo, no primeiro post deste blog.
Na contracapa, há o seguinte texto:
"Estas cartas representam um debate real, com pessoas reais, que ajudaram-me a superar momentos difíceis, resolver antigos conflitos de fé e a rever questões espirituais que sempre foram muito confusas em minha vida. por meio delas, pude entender melhor a relação entre a fé cristã em Jesus, com toda a sua dimensão de esperança e caridade, por um lado, e coutrinas como a da reencarnação, do carma e da mediunidade, por outro.
Todos os nomes e situações que permitissem a identificação dos envolvidos foram deviamente trocados. No mais, o texto é plenamente fiel às cartas originais. espero que a leitura desta correspondência seja útil para outras pessoas como o debate que as originou foi útil para mim."
O Autor
Darwinismo, malthusianismo e pobreza
Um bom texto sobre o mesmo assunto, cientificismo e religião, é um trecho do imperdível livro "From Aristotle to Darwin and back Again", de Etienne Gilson. Mostrando que as ideias fundamentais de Darwin vieram de Malthus (economista) e não dos biólogos da época, Gilson diz (em tradução minha do original inglês, bem livre):

"Na “Descendência do Homem” Darwin referencia ao seu leitor o memorável ensaio “Sobre o princípio das Populações, no que afeta a melhoria futura das sociedades” pelo reverendo T. Malthus. Que tipo de interesse ele encontrou ali?
A primeira edição desse ensaio data de 1798. Seu autor, o reverendo Malthus, pertencia, então, ao clero e se apresentava como tal. Sendo ele próprio um homem excelente, sem dúvida até mesmo um cristão correto, ele não gostava, no entanto, de pobres. Ele nunca subscreveria o celebrado sermão de Bossuet “Da Eminente Dignidade dos Pobres na Igreja”. Alguns dos seus contemporâneos ficavam atônitos com seus sentimentos; “Vigário”, William Cobbett se dirigia a ele desdenhosamente, “durante a minha vida eu detestei muitos homens, mas nunca detestei alguém tanto como a você”. Ele não era um homem detestável, ele era simplesmente um homem com uma teoria, qual seja, que os pobres não deveriam existir, e se existirem, eles não têm um direito à assistência. Talvez ele tenha cometido o erro de se expressar como se os próprios pobres pudessem fazer alguma coisa sobre a sua própria pobreza. Seu consolo estava em que, ao confiá-los desde o nascimento às creches paroquiais, parte do problema estava resolvido, porque 99 por cento deles morriam por lá no curso do seu primeiro ano.
Malthus não negava o fato, mas essa maneira de livrar-se dos futuros pobres parecia custosa, para ele. A causa imediata do mal era a Lei dos Pobres. Os detalhes dessa lei não nos dizem respeito. É suficiente saber que as taxas impostas aos não-pobres para a assistência aos pobres atingiram um tal nível que os respectivos contribuintes estavam aflitos. As casas de assistência paroquiais requeridas pela lei estavam naturalmente a cargo dos clérigos, e não se poderia estar muito enganado, talvez, caso pensássemos que a reação pessoal de Malthus contra a existência dos pobres e a necessidade de ajudá-los não lhe veio apesar do fato de ser clérigo, mas exatamente em razão disso.
Se, como pensava Malthus, a existência de pobres é prejudicial ao futuro bem-estar da sociedade, o que faz com que alguém venha a precisar da assistência, mesmo que seja indubitavelmente algo humanamente inevitável, termina por prejudicar a comunidade. Malthus não afirmou não ser necessário assistir aos pobres; ele só insistia que eles não tinham o direito de ser mantidos, e, verdadeira ou não, sua proposição não soa lá muito evangélica...
A demonstração dessa matéria, segundo Malthus, é muito simples. Repousa sobre dois postulados e um fato. Os postulados são que (1) os alimentos são necessários ao homem e (2) a atração sexual é necessária e permanecerá como ora se apresenta. O fato é o de que “a capacidade que o homem tem de povoar a terra é indefinidamente maior do que a capacidade da terra de produzir sustento ao homem.” Meditando sobre esse fato, Malthus chegou a propor inclusive uma fórmula matemática a esse respeito: “A população, quando livre de controle, cresce em uma proporção geométrica; a subsistência cresce apenas numa proporção aritmética”.
É difícil dizer se Malthus tomou sua fórmula matemática de modo completamente sério; ao menos era, para a sua mente, uma maneira veemente de expressar a verdade, para ele incontestável, de que, deixada ao jogo natural das forças conflituosas, a população cresce mais rapidamente do que os meios de sua subsistência. Em qualquer grau ele inferiu daí que a Lei do Pobre deveria ser abolida porque qualquer lei desse tipo somente perpetua e multiplica os mal-adaptados para cuja existência ela quer encontrar remédio. As medidas adotadas em virtude dessa lei trabalham contra a natureza, cuja lei é simplesmente que as pessoas para as quais não há sustentabilidade não têm o direito de existir. Daí vem a sua conclusão, logicamente correta nesta linha de pensamento (mas não o que se poderia esperar de um homem da igreja e um Cristão) de que “nós estamos adstritos por justiça e honra a formalmente negar que os pobres tenham o direito a ser socorridos”. Seguramente, Malthus não aconselha o extermínio dos pobres, mas ele solicita que um esforço seja feito para assegurar que os próprios pobres concordem voluntariamente a se abster da procriação.
Vale dizer que vivemos hoje a era de Malthus. Ele certamente estaria a favor de todos os procedimentos contraceptivos; provavelmente a favor do aborto livre ou mesmo obrigatório, em resumo, de todos os meios legais de limitação de nascimento."

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Dawkins, ateísmo, milagres e impossibilidades

Aliás, falando em deixar o Deus pessoal e vivo para acreditar num deus que é uma força impessoal é exatamente o que parece fazer Richard Dawkins, ateu mor cuja missão autoatribuída é acabar com o "delírio" que (ele acredita) consiste na fé num Deus vivo, pessoal e capaz de amar como é o Deus cristão.
Para isso, ele utiliza argumentos pseudocientíficos que acabam convencendo muita gente que não para e pensa no que está lendo nos seus livros. Como a ideia de que um aceno de mão de uma estátua da Virgem Maria poderia acontecer, como um evento quântico altamente improvável, mas não impossível. “Um milagre é algo que acontece,
mas que é surpreendentemente incomum. Se uma estátua de mármore da Virgem Maria de repente acenasse para nós, nós trataríamos o fato como um milagre, por causa de toda a nossa experiência e conhecimento, que nos assegura que o mármore não tem tal comportamento”.(“O Relojoeiro Cego”, pág. 159). Dawkins continua:
“No caso da estátua de mármore, as moléculas do mármore sólido estão continuamente chocando-se entre si em direções randômicas. Os choques das diferentes moléculas cancelam-se reciprocamente, portanto a mão inteira da estátua permanece rígida. Mas se, por mera coincidência, acontecer de todas as moléculas moverem-se na mesma direção no mesmo momento, a mão se moveria. Dessa forma, é possível para uma estátua de mármore acenar para nós. Poderia ocorrer. As chances contrárias a tal coincidência são inimaginavelmente grandes. Um colega físico as calculou para mim. O número é tão extenso que o tempo inteiro de existência do universo até agora não é suficiente para escrever todos os algarismos! É teoreticamente possível para uma vaca pular até a lua com uma improbabilidade parecida com esta. A conclusão para esta parte do argumento é que podemos calcular através das regiões da improbabilidade miraculosa com muito mais facilidade do que podemos imaginar como plausível” (O Relojoeiro Cego, 159-160).
Esta afirmação de Dawkins vai contra o preceito filosófico definido pelo insuspeito Hume, que afirma: “Nenhum evento que seja mais milagroso do que o milagre que ele
procura desacreditar pode ser usado como uma explicação para negar um milagre realmente ocorrido”. Isto está no livro “Investigação sobre o Entendimento humano”. Mas Dawkins defende que qualquer explicação, ainda que mais miraculosa do que o próprio evento que pretende explicar(por infinitamente improvável, isto é, impossível), é mais satisfatória do que a aceitação do caráter miraculoso do próprio fato. Passo a citar Scott Hahn e Benjamin Wiker (Answering the New Atheism), neste particular:
"Para ser mais preciso, Dawkins manifesta uma confusão seletiva entre o possível e o impossível quando isso atende aos seus propósitos, e algumas vezes a confusão chega a configurar um verdadeiro ilusionismo intelectual que engana diversos dos seus leitores (e, acreditamos, o próprio Dawkins). Observemos um exemplo particularmente interessante do livro “Deus, um Delírio” sobre o “milagre” do aparecimento da vida na terra, que Dawkins propõe para demonstrar que um Deus Criador é desnecessário.
De acordo com Dawkins, podemos seguramente estimar que há, em algum ponto do vasto universo, um “bilhão de bilhões” de planetas que seriam adequados para a vida. Ele supõe, então, o que supõe ser uma chance contrária extensa de um em um bilhão de que a vida surja por acaso (embora ele não se refira à vida, mas somente “ao surgimento espontâneo de algo equivalente ao DNA”).
Bem, então Dawkins conclui: “mesmo com tal improbabilidade absurda, a vida ainda surgiria em um bilhão de planetas – dos quais a terra, obviamente, é um deles” (Deus um Delírio, pág. 137-139). Essa é uma conclusão muito surpreendente, Dawkins acrescenta. “Eu direi de novo. Se as probabilidades contrárias de que a vida se origine espontaneamente num planeta fossem de um bilhão para um, ainda assim esse evento impensavelmente improvável teria ocorrido em um bilhão de planetas”. (idem).
Essa é uma conclusão surpreendente, exatamente porque não decorre das premissas. O argumento inteiro é falacioso. Trataremos mais especificamente sobre física e química
em outro lugar mas, neste momento, chamamos atenção para um problema na argumentação de Dawkins que é uma questão de lógica. Você não pode assumir como verdadeiro aquilo que quer provar. Isso é chamado de raciocínio circular ou, mais elegantemente, de petição de princípio. Ele cai na falácia porque assume, sem argumentos suficientes, que a montagem espontânea de DNA é como obter uma mão perfeita num jogo de bridge, e não como conseguir os quatro naipes num furacão. É isso que ele tinha que provar, ao invés de assumir como pressuposto.
A questão real e fundamental é de possibilidade e impossibilidade, e não de maior ou menor probabilidade. Se obter os quatro naipes num furacão é impossível porque as cartas continuariam sempre a esvoaçar no vento, isso não teria a sua impossibilidade diminuída pela adição, no cálculo, de bilhões de bilhões de planetas favoráveis, ou mesmo de trilhões de trilhões.
Se o surgimento espontâneo de DNA é simplesmente impossível, então não importa quantos bilhões ou trilhões de planetas existam. Isso não iria nem poderia acontecer. Portanto, temos que estar bem atentos sobre se Dawkins não está simplesmente assumindo que o que é impossível é apenas bastante, bastante improvável.
Mesmo admitindo a possibilidade do “surgimento espontâneo de algo equivalente ao DNA”, está completamente equivocado imaginar meramente que isso ocorreria com uma probabilidade tão baixa como um bilhão para um. Se as chances fossem assim tão favoráveis, então não haveria tanto ceticismo entre os cientistas sobre os cenários de origem da vida.
Discutiremos em outra oportunidade qual a razão de que tal ceticismo seja tão bem fundado. Mas por agora, podemos ao menos notar que não seria difícil piorar tanto as chances de modo a fazer a “prova” de Dawkins falhar. Isso é fácil, pelo modo com que as probabilidades crescem matematicamente. A probabilidade de de obter um cinco num dado ordinário de seis lados é de uma em seis. Mas a probabilidade de obter dois cincos seguidos é de 1/6 x 1/6, ou uma em trinta e seis. Dez seguidos: uma em 60.466.176. Vinte seguidos: uma em 3.656.158.440.062.976. Vinte e cinco seguidos: 8.430.288.029.929.701.376. Não demora muito, portanto, ultrapassar uma chance de um em um bilhão, nem ultrapassar uma chance em um bilhão de bilhões, como vimos aqui. Como consequência, mesmo a introdução de de um número relativamente pequeno de fatores adversos afetariam a assunção generosa de Dawkins de “um bilhão para um” da produção espontânea do DNA e logo eliminaria sua conclusão leviana de que “a vida ainda surgiria em um bilhão de planetas – das quais a terra, obviamente, é um deles”. Daí, não podemos nos permitir pensar que Dawkins pode resolver a questão simplesmente adotando uma chance de “um bilhão para um”. Ele deve primeiro mostrar que isso é possível, que não está "chutando" um número injustificavelmente baixo, e depois dar uma conjectura razoável a respeito das probabilidades. Veja que estamos tratando de dados de seis faces, objetos enormemente menos complexos do que moléculas de DNA, ao menos tanto quanto estas são menos complexas do que a vida em si.
Antes de abordarmos as questões especificamente científicas, vamos concluir com algumas observações. Acreditamos que é justo dizer que a fé de Dawkins nos poderes do acaso é ao menos tão forte do que a fé da maioria das pessoas nos poderes de Deus. Quer dizer, talvez seja ainda mais forte. Sentimo-nos autorizados a chamá-la de fé por duas razões. Primeiro, o próprio Dawkins admite que a existência de Deus é “altamente improvável”, e não absolutamente, demonstradamente impossível. Assumimos que ele não é agnóstico quanto à existência de um triângulo de quatro ângulos.
É claro que o próprio Dawkins não aprovaria a nossa classificação do seu alegado “ateísmo de fato” como um tipo de fé. “Ateístas não têm fé”, ele assegura ao leitor; é correto que “apenas a razão não poderia impelir alguém à total convicção de que algo não existe” (Deus, um Delírio, pág. 51). Mas se a razão sozinha não tem esse poder, então é a razão e mais o que? Ele não estaria dizendo “eu acredito que Deus não existe mesmo se não consigo prová-lo apenas pela razão”?
Obviamente, Dawkins pretende fugir desse questionamento asseverando que a razão, por sua própria natureza, não pode “impelir alguém à convicção total de que algo definitivamente não existe”. Como ele próprio ressalta, nessas bases, a existência de fadas no fundo do quintal não pode ser definitivamente descartada apenas pela razão.
Isso parece racional? O que impele Dawkins a admitir tal absurdidade? Precisamente o seu desejo de demonstrar ao leitor que Deus não existe – o que é um tanto paradoxal, para dizer o mínimo. Uma vez que Dawkins quer afirmar que o miraculoso não requer
uma causa sobrenatural, ele deseja afirmar que qualquer coisa é possível, de modo a permitir que o acaso forneça uma explicação materialística para qualquer milagre aparente, como os acenos da estátua de mármore ou o “surgimento espontâneo” de algo como o DNA na terra. Dessa forma, ele pode dispensar ao mesmo tempo o Deus que faz milagres e o deus criador com uma só tacada. Mas, uma vez que qualquer coisa é possível, então “apenas a razão não poderia impelir alguém à total convicção de que algo não existe”.
É uma armadilha interessante, não? O desejo de eliminar Deus faz Dawkins admitir um absurdo – que qualquer coisa pode acontecer. Mas, tendo se jogado nos braços do
absurdo, ele percebe que não pode eliminar inteiramente a Deus, que é a própria razão de ele ter se jogado nos braços do absurdo. Ao menos ele é consistente, mas essa consistência leva-o a uma posição do agnosticismo que transforma a sua descrença num tipo de fé. Ele admite que leva a sua vida com base numa opção fundamentada numa mera presunção que a razão nunca poderá confirmar: “eu acredito que Deus é extremamente improvável, e vivo minha vida na presunção de que ele não existe”(Deus um delírio, pág. 51). É isto é um ato de fé, que ultrapassa, confessadamente, os limites que ele próprio estabeleceu para a razão.
Isso nos leva a uma segunda razão pela qual podemos chamar o agnosticismo de Dawkins de “fé”. Seria difícil imaginar uma fé mais ardorosa nos poderes do acaso do que alguém que pode, com a cara mais limpa, falar da probabilidade real de uma estátua de
mármore acenar, ou uma vaca pular para a lua. Por que tal devoção ao grandioso e inconstante deus, o Acaso? Simples, Ele prefere acreditar em qualquer coisa, menos em Deus.
Mas quem é esse deus, o Acaso? Como ele pode ser uma causa tão poderosa, tão poderosa que pode substituir a necessidade de um Deus vivo, ativo, inteligente e criador? Como Aristóteles apontou, há muito tempo, para os materialistas do seu tempo, que de igual maneira adoravam no altar do Acaso, o Acaso não é uma causa real porque o Acaso não é uma coisa. Há uma chance de que uma coisa ocorra, mas esse “de que” é o mais importante, porque nos revela o que realmente existe e define o verdadeiro significado da palavra “chance”. Assim, mesmo aqui, o “acaso” não é uma coisa.
Para usar um exemplo familiar, há uma chance em seis de obter um cinco num dado com seis faces, mas, aqui, “chance” não é nem uma coisa, nem uma causa. O que causa a “uma chance em seis” é o fato de que há um dado de seis faces , que é feito de tal maneira que possa rolar, que é feito de tal maneira que o rolamento venha a parar, e assim por diante. Assim, a chance de um sexto não é uma “coisa” adicional ao próprio dado, mas um atalho para descrever a verdadeira coisa e as condições que permitem que existam seis probabilidades diferentes, mas rigorosamente iguais, de um evento particular ocorrer. Podemos eliminar a “chance de um sexto” mudando o dado ou as condições, por exemplo, preenchendo os furinhos do dado ou atirando-o num alto-forno. Isso reduz o grande deus Acaso ao seu justo tamanho, revelando-o não como uma
causa primária e poderosa, mas como uma sombra secundária de outros seres e causas. O próprio Dawkins realmente compreende esse ponto claramente no que diz respeito à seleção natural. Como ele assinala em muitas passagens, a seleção natural (uma vez que ela é cumulativa, como a progressão gradual do acúmulo de caracteres favoráveis) é o “oposto” do acaso. Eis o seu ponto. Se a seleção natural tivesse que produzir um olho num único passo gigante de mutações randômicas, estaríamos fazendo da evolução uma questão inteiramente relacionada com o acaso, e assim próxima do impossível, porque as partes materiais (os vários átomos) não têm nenhuma tendência a estruturarem-se espontaneamente de forma multifacetada, numa estrutura biológica ultracomplexa.
Isso seria confiar ao acaso uma tarefa que somente um deus poderia fazer. Mas a evolução constrói o olho em pequenos passos, cada qual envolvendo apenas uma pequena porção de acaso, agindo na conformidade da taxa normal de mutação genética. Aqui, portanto, o acaso não é um deus miraculoso, mas algo que é compreensível em termos de subordinação ao que os genes são, como eles se copiam, e como eles podem influenciar no texto genérico de uma molécula de DNA.
Mas, como vimos, o acaso eleva-se a proporções monstruosas quando Dawkins procura explicar como qualquer coisa pode acontecer. A razão, como vimos, é que Dawkins quer usar o acaso para substituir Deus no que se refere à origem da vida. Já que ele deve
ter os poderes do Deus que substitui, então ele cresce em conformidade com isso, transformando-se num deus que pode fazer qualquer coisa. É claro que Dawkins não precisa que o seu deus faça tudo, mas apenas aquelas coisas que ele percebe que a seleção natural não pode fazer, e que parecem requerer um deus real para acontecerem: criar as primeiras coisas vivas."
Viva Scott Hahn. Seu despretensioso livro "O Banquete do Cordeiro" é uma das melhores coisas que li até hoje.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Um documento muito interessante, recentemente divulgado pela
Pontifícia Comissão Bíblica, foi o documento “Bíblia e Moral: Raízes
Bíblicas do Agir Cristão”. Retomando o desejo de felicidade como
fundamento da moral cristã – na linha do Sermão da Montanha e suas
bem-aventuranças, como lido na Igreja desde o princípio, como atestam
Santo Agostinho e por São Tomás – o documento reconstrói a moral
cristã em fundamentos positivos, vale dizer, como itinerário de
bem-aventurança, e não como rol de obrigações. Trata-se de
eudemonismo, é claro, mas não do eudemonismo utilitarista já criticado
por Kant de modo tão preciso. O eudemonismo das bem-aventuranças é
muito mais profundo, passa eventualmente pelo prazer, mas o ultrapassa
e algumas vezes até se opõe a ele. Como diria Servais Pinckaers, “O
prazer é o oposto da dor, como seu contrário. Os dois são
essencialmente incompatíveis. A alegria da bem-aventurança, por outro
lado, nasce da provação, da dor enfrentada, do sofrimento aceito com
coragem e amor. O prazer é breve, variável e superficial, como o
contato que o causa. A alegria verdadeira é duradoura, como a
excelência, a virtude que o causa. Sentir prazer é individual, como a
própria sensação que a causa. Ela diminui quando o bem que a causa é
compartilhado e utilizado mais intensamente; ela cessa totalmente
quando esse bem não está disponível. A alegria da bem-aventurança é
comunicável; ela cresce com o compartilhamento e recompensa os
sacrifícios assumidos livremente. Tal alegria pertence à pureza e à
generosidade do amor.” Para Servais, portanto, o prazer é apenas uma
sensação agradável, uma paixão causada por algum bem exterior. A
alegria da beatitude, no entanto, é algo interior, como o ato que a
causa. A alegria é o efeito direto de uma ação excelente, como o
saborear de uma tarefa longa finalmente completada. Ela também é o
efeito, em nós, da verdade compreendida e da bondade amada. Assim,
associamos a alegria com a virtude, tendo-a como um sinal da
autenticidade virtuosa.
O documento da Pontifícia Comissão Bíblica traz, seguindo essa linha,
uma versão pastoral do decálogo (os dez mandamentos) que preserva sua
axiologia com fidelidade, mas que se expressa de um modo estritamente
positivo, sem os “nãos” que remetem muito às obrigações e pouco à
bem-aventurança. É assim:
“1. Prestar culto a um único Absoluto.
2. Respeitar a presença e a missão de Deus no mundo.
3. Valorizar a dimensão sagrada do tempo.
4. Honrar a família.
5. Promover o direito à vida.
6. Manter a união do casal, marido e esposa.
7. Defender o direito de cada um de ter a própria liberdade e
dignidade respeitada por todos.
8. Preservar a reputação dos outros.
9. Respeitar as pessoas (que pertencem a uma casa, uma família, uma empresa).
10. Deixar aos outros as suas propriedades materiais.”
Isso daria, segundo o documento da Pontifícia Comissão Bíblica que
estamos comentando, um fundamento claro para uma carta dos direitos e
liberdades, válida para toda a humanidade, nos seguintes termos:
“1. Direito a um relacionamento religioso com Deus.
2. Direito ao respeito das crenças e símbolos religiosos.
3. Direito à liberdade da prática religiosa e, em segundo lugar, ao
repouso, ao tempo livre, à qualidade de vida.
4. Direito das famílias a políticas justas e favoráveis, direito dos
filhos ao sustento por parte dos seus progenitores, ao primeiro
aprendizado da socialização, direito dos progenitores anciãos ao
respeito e ao sustento por parte dos filhos.
5. Direito à vida (a nascer), ao respeito da vida (a crescer e morrer
de modo natural), à educação;
6. Direito à pessoa à livre escolha do cônjuge, direito do casal ao
respeito, ao encorajamento e ao sustento por parte do Estado e da
sociedade em geral, direito do filho à estabilidade (emocional, ativa,
financeira) dos progenitores.
7. Direito ao respeito das liberdades civis (integridade corporal,
escolha da vida e carreira, liberdade de locomoção e de expressão).
8. Direito à reputação e, em segundo lugar, ao respeito da vida
privada, a uma informação não deformada;
9. Direito à segurança e à tranqüilidade doméstica e profissional e,
em segundo lugar, direito à livre iniciativa.
10. Direito à propriedade privada (nela incluída a garantia da
proteção civil dos bens materiais).”
Em boa hora, o documento acrescenta que, à diferença dos “direitos
humanos” e “fundamentais” baseados em consensos eventuais, estes
direitos humanos inalienáveis são absolutamente subordinados ao
direito divino, isto é, à soberania universal de Deus. Não pode haver
fraternidade humana, acrescento eu, se não há um Pai... E não há um Pai para a
humanidade fora do cristianismo.
Excelente o documento da Igreja.

Cultura da morte

De modo analogo à construção de um edifício – embora resguardadas as proporções de complexidade – a cultura também tem os seus arquitetos. É o que nos lembra o livro “Architects of the Culture of Death”, de Benjamin Wiker e Donald deMarco.
A cultura cristã foi construída, ou melhor, fundamentada, sobre a imagem latente do Cristo, como o homem sábio que constrói sua casa sobre a rocha (Mt 7, 24). Foram incontáveis arquitetos, dentre eles Maria Santíssima, os Apóstolos, Papas, Padres e Doutores da Igreja, Bispos, santos (canonizados ou não), enfim, a Igreja tem sido coluna e sustentáculo da verdade (1Tim 3, 15), seguindo os traços deixados pelo próprio Jesus.
Este foi, portanto, o “projeto-mestre” de construção da sociedade cristã: a imagem central de Deus feito homem, que morreu e ressuscitou para salvar cada ser humano. Com isso, ressalta-se o valor infinito de cada pessoa. A cultura cristã, construída sobre este modelo, é uma cultura de vida.
Curioso é anotar o que diz a Didaché, primeiro escrito cristão não-bíblico, catequese das primeiras comunidades. Este documento exortava a comunidade convertida de que existem dois caminhos a escolher: o caminho da morte e o caminho da vida. E acrescentava as seguintes exortações:
“Não matarás, não cometerás adultério; não te entregarás à pederastia, não fornicarás, não furtarás, não exercerás magia, nem bruxaria [necromancia ou mediunidade...]. Não matarás criança por aborto, nem criança já nascida; não cobiçarás os bens do próximo.”
Olhando bem, vê-se que as práticas pagãs das antigas civilizações pré-cristãs, a que os primeiros cristãos foram chamados a renunciar, estão ressurgindo em nossas sociedades como “novidades” ou “evoluções sociais”: a institucionalização das relações homossexuais, o sexo extra-matrimonial, o ocultismo, a contracepção, o aborto, a eutanásia, o infanticídio. Podem ser incluídos também a bestialidade e o incesto, como acréscimos contemporâneos à lista.
Como se deu tal retorno, fantasiado de “progresso”? É o novo paganismo, que vem sendo implantado em nossas sociedades graças ao trabalho de arquitetos muito hábeis: aqueles que rejeitaram a imagem do Cristo, que é a imagem central do cristianismo, e a substituíram por uma visão de humanidade que resultou de forças cegas, ao invés de uma humanidade criada à imagem de um Deus pessoal. Como não resta ao homem senão ser imagem de Deus, essa nova humanidade, construída por esses arquitetos da cultura da morte, é configurada à imagem do seu próprio deus – um deus impessoal, um absoluto que não pensa, que não ama, que não providencia, enfim, que não é pessoa; é um pseudo-ateísmo, que simplesmente troca a noção de deus pessoal por uma noção de absoluto impessoal. Como dizia Jean Guitton, “o ateu é um teísta que deixou de crer em Deus e pensa que não mais acredita no Absoluto. Se ele refletisse, compreenderia que, ao deixar de crer em Deus, ele se pôs automaticamente a crer em uma das formas do Absoluto não Pessoal. Nesse sentido, ele não é ateu em sentido amplo, porque ele não é ateu de Deus no sentido amplo, ou seja, ateu do Absoluto. Ele é apenas ateu em sentido estrito, ou seja, ateu de Deus no sentido estrito”. Claro que há ateus que se recusam a crer em qualquer absoluto, mesmo num impessoal, mas estes são niilistas – não deveriam nem abrir a boca, porque não podem fazê-lo sem contradizer os próprios pressupostos de suas crenças – se eu não creio em nada, não creio também que devo comunicar nada.
Nesta cultura da morte, que rejeitou frontalmente o Deus cristão, o homem deve buscar construir a sua própria salvação. Seja ela:
o puro instinto.
A indulgência sexual.
O império da vontade arbitrária.
O controle populacional.
O cientificismo
A eugenia, etc.
Enfim, a cultura da morte é uma cultura que rejeita, fundamentalmente, a noção de pessoa, assim compreendida como “criatura inteligente feita à imagem de Deus, formada de corpo e de alma imortal e racional.”
Uma humanidade que perde o seu relacionamento com o absoluto pessoal passa a desenvolver-se como imagem do absoluto impessoal – e, por isso, despersonaliza-se. A despersonalização da humanidade é consequência direta da despersonalização de Deus. Essa despersonalização é muito factual, muito evidente nas sociedades contemporâneas, e podem ser constatadas a partir, por exemplo, dos seguintes indicadores:
A sexualidade perde suas dimensões relacionais, unitiva e procriativa, e passa a ser mera recreação. O outro já não é mais a pessoa com quem me relacionar fecundamente, mas o objeto do meu prazer.
A origem da vida humana já não se dá na família, no seio de quem ama e acolhe a dispersão do seu próprio amor. Passa a ser fruto do domínio tecnológico. O homem de proveta deve sua existência à ciência, não ao encontro frutífero de dois seres a si semelhantes.
A morte é despersonalizada. Despersonalizando-se a humanidade, aos moribundos não se deve mais misericórdia do que aos animais doentes. Uma vez que alguém já não possa exercer poder sobre outro – ou ser objeto lucrativo do exercício do poder de outro – já não precisa viver.
Paradoxalmente, a redução do ser humano à condição de animal, de coisa, de mero fruto do acaso seletivo ou de acidentes químicos, não se seguiu a mais humildade por parte dos homens. Foi acompanhada por uma idolatria própria, cuja raiz não é o auto-desprezo, mas o desprezo do outro, lançado fora junto com o Deus pessoal. Sem Deus, tornamo-nos semelhantes a deuses – ou melhor, tornamo-nos deuses nós mesmos, únicos a merecer culto e louvor. A confusão entre criatura e criador leva ao obscurecimento da vontade humana.
Isso gera um círculo vicioso – Rejeição a Deus – rejeição à pessoa – obscurecimento da vontade individual – autoidolatria – rejeição da dignidade do outro – egoísmo e infelicidade. É por isso que Santo Agostinho dizia que o pecado é a punição pelo pecado...
Sendo rejeitado o Deus pessoal, concedemo-nos, não por dom, mas por prerrogativa própria, os seus poderes divinos: definimos nós mesmos o que é bem e mal, controlamos o nascimento, a vida e a morte. Criamo-nos à imagem que desejamos, ainda que isso envolva muito botox e silicone. Os dois mandamentos fundamentais desta cultura da morte: 1. Não terei outros deuses além de mim mesmo. 2. Amarei a mim mesmo sobre todas as coisas.
O resultado é a cultura de morte: libertarianismo sexual, vanglória dos atos homossexuais, contracepção e aborto, tudo isto não apenas consagrado pela lei, mas louvado em verso e prosa na literatura, no cinema, na novela, na música, nas campanhas do Ministério da Saúde...

O livro de Wiker e deMarco é muito bom. Pena que não exista em português.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Servais Pinckaers

Aliás, para quem quiser saber quem é Servais Pinckaers, um resumo da biografia dele em português:

http://www.aquinate.net/revista/caleidoscopio/Entrevistas/Entrevistas-5-edicao/04-servais%20pinckaers.pdf

Um excelente artigo dele sobre a amizade no fundamento da moral em São Tomás de Aquino:

http://www.aquinate.net/revista/edicao%20atual/Artigos-pdf/Artigos-4-edicao/Pinckaers.pdf

E para ter uma noção sobre o que ele chama de "liberdade de indiferença" e "liberdade de excelência", e os limites de uma moral casuística, cujo fundamento é a noção de obrigação, e não de bem-aventurança:

http://www.permanencia.org.br/revista/teologia/Pinckaers.htm

domingo, 21 de fevereiro de 2010

A liberdade, a tentação, o bem e o mal

Amigos,
O Evangelho de hoje,domingo, sobre as tentações de Cristo, fez-me lembrar uma passagem do livro de Servais Pinckaers, "Las Fuentes de la Moral Cristiana", sobre a inclinação humana para o bem e a questão do mal e do pecado. traduzi e transcrevi:

O Bem Verdadeiro e o Bem Aparente
Servais Pinckaers
Apesar das diferentes fontes de conhecimento moral das quais dispomos, pode ocorrer que a nossa avaliação do bem não coincida com o bem real, e que inclusive se oponha a ele. Na realidade, podemos tomar como um bem o que é mau e como um mal o que é bom. As causas deste erro podem ser tão numerosas quanto os componentes do juízo e da eleição prática. São os limites de uma inteligência que pode se equivocar em seus raciocínios, tanto em moral como em outras coisas, dado o limite do seu campo de visão, ou por causa de um defeito de atenção ou de penetração, inclusive por inexperiência. Também podem ser as disposições da vontade e do sentimento, pois as coisas são julgadas segundo a disposição em que se está: as paixões, como a cólera, influem a seu modo na percepção do bem e causam a precipitação e a confusão no juízo. A própria vontade pode se deixar perverter por um afeto excessivo, como na avareza, ou pelo repúdio do que lhe contraria, como na inveja ou no ódio.
A distância que se pode estabelecer assim entre o bem conhecido e o bem real está na origem do pecado, e pode expressar-se na distinção entre o “bem verdadeiro” e o “bem aparente”. Ganhar dinheiro e fazer fortuna cometendo injustiça é um bem aparente, que possui um certo peso de realidade e exerce uma poderosa atração sobre o coração do homem; mas é um mal verdadeiro e muito mais real, porque a injustiça corrompe o coração sem que o dinheiro possa jamais compensá-lo. Toda a força da tentação reside precisamente na aparência de bem, que reverbera e cativa o espírito e o coração. O maior perigo da ação malvada é contribuir para fortificar essa aparência, pois se acaba por pensar como se agiu. A injustiça repetida deforma o juízo tanto quanto perverte o querer.
Sem embargo, qualquer que seja o pecado do homem, sempre subsiste no fundo dele esta inclinação natural ao bem e à verdade sem a qual não se poderia formar-se em nós esta aparência de bem que o mal precisa para nos afetar e enganar. Assim, uma divisão, uma contradição inevitável se instala no fundo da vontade pecadora, entre o atrativo do bem, que se encontra na sua própria natureza, e o mal que faz, entre o sentido da verdade, que vem da razão, e o jogo de aparências que a tornam prisioneira. Não há paz para ela.
Apesar de toda a complexidade do problema do pecado, apesar do atrativo do mal que a paixão e o vício podem engendrar, nem por isso a razão e a vontade do homem deixam de estar profundamente orientadas ao bem verdadeiro, e não poderiam jamais ficar satisfeitas sem ele. Por conseguinte, o bem conhecido, que é próprio do homem, permanece sempre ordenado ao bem real, por mais oculto que esteja sob as capas do mal.
A eleição moral não se efetua, portanto, nesta concepção, como na “liberdade de indiferença”, entre o bem e o mal tomados como coisas contrárias segundo a determinação da lei, mas entre dois bens, um dos quais é real e o outro, aparente. [A "liberdade de indiferença" é a corrente de origem nominalista que prega que a verdadeira liberdade consiste em poder escolher indiferentemente entre o bem e o mal]. A escolha moral reclama um juízo de realidade e de verdade sobre a natureza do bem que se apresenta, uma vez que o mal não pode introduzir-se senão pela mentira e duplicidade. A lei intervém aqui para esclarecer a razão sobre a natureza e a qualidade das coisas.
Notemos, por fim, que a afirmação de que o bem próprio do homem é o bem enquanto conhecido não deve ser entendida num sentido subjetivo, como se o bem se identificasse com nossa idéia, com nossa opinião sobre o bem. Isto seria diretamente contrário, para São Tomás, à própria noção de verdade, que designa a realidade a ser captada em si mesma pela razão; contrário também ao amor de amizade, que nos inclina a amar por e em si mesmo. O sujeito humano não faz nem cria a verdade nem o bem; na verdade, cria apenas a si mesmo ao abrir-se à verdade pela razão e ao bem pelo amor justo. A concepção subjetiva da verdade e do bem é, sem dúvida, uma das tentações mais sutis e mais insidiosas para a inteligência. Aprisiona e amarra o espírito, frequentemente em nome da razão, num universo de puras aparências. (Las Fuentes de La Moral Cristiana, pag. 489-491).

O Livro saiu!

Amigos,



O livro Cartas a Probo finalmente saiu. A editora Comdeus está distribuindo, sei que já existe na Livraria Ave Maria da 505 Sul, aqui em Brasília, e na Livraria Vozes da 704 Norte.

Abaixo, um trechinho para degustar:

21.02
Probo, irmão querido,
A paz de Cristo.
Conversamos ontem por telefone e eu notei que você estava angustiado, porque releu antigos livros espíritas sobre religião e percebeu a impossibilidade de refutar essas doutrinas e estabelecer sua incompatibilidade com o cristianismo.
Eu quero lhe dizer algo sobre isso, mas partindo de algumas premissas que eu irei apontar. Em primeiro lugar, quero lhe expor: vou explicá-las não como um “mapa para converter espíritas”. Não é esse o meu objetivo. Creio que os espíritas, de modo geral, estão muito seguros quanto às próprias crenças, e nisso não há problema. Respeitamo-los. Mas você é cristão, e não pode compartilhar as crenças espíritas.
Vemos, diariamente, alguns irmãos que professam o espiritismo freqüentarem a Igreja Católica, aproximarem-se da mesa de comunhão e receberem os sacramentos. Algumas vezes, vemos ainda pessoas que se dizem católicas professarem doutrinas espíritas como o “carma” e a “reencarnação”, crenças incompatíveis com o cristianismo. Aí, sim, cabe-nos dar as razões da nossa fé a quem as pedir, como nos ordena a Carta de São Pedro, a fim de defender nossa religião.
Este é o nosso verdadeiro problema: como algumas pessoas que se dizem católicas apresentam a doutrina espírita a outros irmãos católicos, alguns destes acreditam que não há problema em aceitar aquela doutrina e continuar a professar a religião católica, porque seriam duas coisas diferentes: o catolicismo seria uma religião, pertencente, portanto, ao campo do sentimento, do irracional, da superstição, e as crenças espíritas (abrangendo a reencarnação e o carma) seriam de natureza puramente racional. Nada mais falso. Isso não seria problema nosso, a não ser pelo fato de alguns, que se declaram cristãos, utilizarem a doutrina espírita para confundir-nos e a alguns dos nossos irmãos.
O que, em verdade, é problema nosso é o infinito amor de Deus. Trata-se de saber como amaremos Deus, mais e melhor. O amor de Deus por nós não pode aumentar. Mas o nosso por Ele pode, não só em largueza, mas também em profundidade. É por isso que, de tudo o que experimentarmos, devemos ficar somente com o que é bom (1Tes 5, 21); e aquilo que é bom é o que nos leva a amar a Deus, mais e mais profundamente. E isso só é possível tendo uma fé retilínea. “A lei de orar é a lei de crer”, diziam os antigos, ou seja, nós oramos para o deus em que cremos. Se creio em Deus Pai Todo-Poderoso, minhas orações são para Ele. Mas se tenho falsas crenças, rezo para falsos deuses.
Assim, vou estabelecer, nestas cartas, alguns pontos que desenvolverei em seguida. Quero discutir o que é fé e qual a fé cristã católica. Quero refletir ainda acerca da divindade de Jesus e a respeito do cristianismo defendido por aqueles irmãos que, dizendo-se cristãos e divulgando o espiritismo, confundem-nos. Quero analisar se eles seriam espíritas que renunciaram mal ao catolicismo, ou se seriam católicos com crenças heterodoxas. Seria bom se tratássemos um pouco de ecumenismo e diálogo inter-religioso.
Queria conversar sobre como eu considero incoerente pensar em caridade e acreditar em reencarnação, até porque, sob qualquer leitura minimamente consistente, a Bíblia não é reencarnacionista, apesar do que defendem alguns. Trataremos disso também, se Deus nos permitir.
É um desafio grande. Você sabe que não me sobra muito tempo para escrever entre os meus afazeres. Assim, vou tentar explicar um ponto de cada vez. Vamos começar com um breve comentário sobre o que é fé, o que é fé católica.

Mais, muito mais, no livro!