terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Um documento muito interessante, recentemente divulgado pela
Pontifícia Comissão Bíblica, foi o documento “Bíblia e Moral: Raízes
Bíblicas do Agir Cristão”. Retomando o desejo de felicidade como
fundamento da moral cristã – na linha do Sermão da Montanha e suas
bem-aventuranças, como lido na Igreja desde o princípio, como atestam
Santo Agostinho e por São Tomás – o documento reconstrói a moral
cristã em fundamentos positivos, vale dizer, como itinerário de
bem-aventurança, e não como rol de obrigações. Trata-se de
eudemonismo, é claro, mas não do eudemonismo utilitarista já criticado
por Kant de modo tão preciso. O eudemonismo das bem-aventuranças é
muito mais profundo, passa eventualmente pelo prazer, mas o ultrapassa
e algumas vezes até se opõe a ele. Como diria Servais Pinckaers, “O
prazer é o oposto da dor, como seu contrário. Os dois são
essencialmente incompatíveis. A alegria da bem-aventurança, por outro
lado, nasce da provação, da dor enfrentada, do sofrimento aceito com
coragem e amor. O prazer é breve, variável e superficial, como o
contato que o causa. A alegria verdadeira é duradoura, como a
excelência, a virtude que o causa. Sentir prazer é individual, como a
própria sensação que a causa. Ela diminui quando o bem que a causa é
compartilhado e utilizado mais intensamente; ela cessa totalmente
quando esse bem não está disponível. A alegria da bem-aventurança é
comunicável; ela cresce com o compartilhamento e recompensa os
sacrifícios assumidos livremente. Tal alegria pertence à pureza e à
generosidade do amor.” Para Servais, portanto, o prazer é apenas uma
sensação agradável, uma paixão causada por algum bem exterior. A
alegria da beatitude, no entanto, é algo interior, como o ato que a
causa. A alegria é o efeito direto de uma ação excelente, como o
saborear de uma tarefa longa finalmente completada. Ela também é o
efeito, em nós, da verdade compreendida e da bondade amada. Assim,
associamos a alegria com a virtude, tendo-a como um sinal da
autenticidade virtuosa.
O documento da Pontifícia Comissão Bíblica traz, seguindo essa linha,
uma versão pastoral do decálogo (os dez mandamentos) que preserva sua
axiologia com fidelidade, mas que se expressa de um modo estritamente
positivo, sem os “nãos” que remetem muito às obrigações e pouco à
bem-aventurança. É assim:
“1. Prestar culto a um único Absoluto.
2. Respeitar a presença e a missão de Deus no mundo.
3. Valorizar a dimensão sagrada do tempo.
4. Honrar a família.
5. Promover o direito à vida.
6. Manter a união do casal, marido e esposa.
7. Defender o direito de cada um de ter a própria liberdade e
dignidade respeitada por todos.
8. Preservar a reputação dos outros.
9. Respeitar as pessoas (que pertencem a uma casa, uma família, uma empresa).
10. Deixar aos outros as suas propriedades materiais.”
Isso daria, segundo o documento da Pontifícia Comissão Bíblica que
estamos comentando, um fundamento claro para uma carta dos direitos e
liberdades, válida para toda a humanidade, nos seguintes termos:
“1. Direito a um relacionamento religioso com Deus.
2. Direito ao respeito das crenças e símbolos religiosos.
3. Direito à liberdade da prática religiosa e, em segundo lugar, ao
repouso, ao tempo livre, à qualidade de vida.
4. Direito das famílias a políticas justas e favoráveis, direito dos
filhos ao sustento por parte dos seus progenitores, ao primeiro
aprendizado da socialização, direito dos progenitores anciãos ao
respeito e ao sustento por parte dos filhos.
5. Direito à vida (a nascer), ao respeito da vida (a crescer e morrer
de modo natural), à educação;
6. Direito à pessoa à livre escolha do cônjuge, direito do casal ao
respeito, ao encorajamento e ao sustento por parte do Estado e da
sociedade em geral, direito do filho à estabilidade (emocional, ativa,
financeira) dos progenitores.
7. Direito ao respeito das liberdades civis (integridade corporal,
escolha da vida e carreira, liberdade de locomoção e de expressão).
8. Direito à reputação e, em segundo lugar, ao respeito da vida
privada, a uma informação não deformada;
9. Direito à segurança e à tranqüilidade doméstica e profissional e,
em segundo lugar, direito à livre iniciativa.
10. Direito à propriedade privada (nela incluída a garantia da
proteção civil dos bens materiais).”
Em boa hora, o documento acrescenta que, à diferença dos “direitos
humanos” e “fundamentais” baseados em consensos eventuais, estes
direitos humanos inalienáveis são absolutamente subordinados ao
direito divino, isto é, à soberania universal de Deus. Não pode haver
fraternidade humana, acrescento eu, se não há um Pai... E não há um Pai para a
humanidade fora do cristianismo.
Excelente o documento da Igreja.

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