sábado, 27 de fevereiro de 2010

aborto, eugenia e sistema de cotas

Sei que nesta questão do aborto as posições são, muitas vezes,
irredutíveis. Mas faço algumas
ponderações.

Não se trata apenas de uma questão religiosa. Há religiões abortistas.
Há religiões anti-abortistas. Algumas até buscam fundamento num
pensamento predestinacionista, de fundo calvinista, defendido, por
exemplo, pelos anglicanos da low church e pela Universal do Reino de
Deus, de que, uma vez nascido, é muito tarde para salvar uma pessoa,
sendo mais garantido mandá-lo por céu direto do ventre - vale dizer, há
pessoas “religiosas” que chegam a defender o aborto como caminho de
salvação! Por outro lado, religiões tão frontalmente incompatíveis entre si como
o espiritismo e o catolicismo têm circunstancialmente a mesma posição
anti-abortista no particular, embora por razões completamente
diferentes.

Tampouco a questão do aborto é uma questão “avançada” ou
“moderna”. Muitas sociedades antigas, pagãs, conheceram o aborto
e o infanticídio, tanto como meio de controle populacional, quanto como
seleção racial e eugênica. Neste sentido, o aborto é, de fato, um
retrocesso a um momento pré-cristão da humanidade. Não estou fazendo um
julgamento de valor quanto a isso: somente estou argumentando que voltar
a adotar como política pública uma prática antiga, que ficou afastada
tantos séculos da nossa sociedade, não pode ser considerado
“evolução”, no sentido spenceriano do termo.

Pessoalmente, creio que para o aborto ser considerado um “direito”,
ele teria que ser possível retroativamente, meio à moda daquele filme do
Benjamin Button, que o sujeito nasce velho e morre bebê: a gente devia
poder avaliar qual adulto defende o aborto, qual adulto acha que a sua
própria geração e gestação pode ter sido um erro, qual adulto acha que
alguém pode escolher manter ou não uma criança no útero, em seguida,
voltar lá na gestação do referido indivíduo e só então garantir à
respectiva mãe o direito de abortar. Para o aborto ser democrático, só
assim: ficaria obrigatório, nesta hipótese, que os abortistas voltassem
aos úteros das próprias mães para serem abortados...

Na impossibilidade prática de que os próprios abortistas sejam
abortados, é covardia: qualquer um que possa agora defender o aborto só
o faz porque a própria mãe não o abortou e nem pode mais fazê-lo.
Portanto, quem defende o aborto sempre o faz em detrimento de outro:
daquele que ainda pode ser abortado e, portanto, nunca vai chegar a
estar aqui para defender-se. Nada democrático.

Pondero, ainda, que qualquer "direito" ao aborto transformar-se-ia,
rapidamente, num dever de aborto, pelo menos para as mulheres mais
pobres ou vulneráveis. A menos que todas as mulheres do mundo fossem
profissionais altamente instruídas e excelentemente remuneradas,
emocionalmente independentes e absurdamente auto-suficientes, maduras e
estáveis, o que seria de admirar é como uma gestação de uma moça humilde
e de poucas luzes poderia prosseguir, mesmo com o desejo dela, contra a
vontade de quem a sustenta ou suporta, como os seus pais ou o
companheiro, num contexto em que o aborto fosse um "direito", inclusive
assistido pelo planejamento estatal da rede pública de saúde.

Qualquer resistência que a mulher pobre, vulnerável ou insegura (qual
mulher grávida não fica insegura?) pudesse opor, num contexto assim,
seria tido apenas como um "capricho pessoal" econômica e racionalmente
insustentável, contra uma pretensão jurídica legítima que assistiria aos
que a querem obrigar ao aborto. A gestação e o parto, bem como o
sustento da criança, são altamente custosos e trabalhosos. O aborto é
grátis na rede pública. Haveria uma possibilidade de escolha livre?

Vale dizer, trata-se de uma prática altamente eugênica: somente as
mulheres auto-suficientes pertencentes às classes dominantes do primeiro
mundo (ou às classes absurdamente mais favorecidas do resto do mundo) é
que seriam efetivamente livres para decidir pela manutenção ou
interrupção da gravidez. As outras, as pobres, as solteiras, as
trabalhadoras, as dependentes em geral, dificilmente resistiriam à
pressão dos chefes pelo não gozo da licença maternidade, dos maridos,
companheiros ou namorados irritados com as despesas e transtornos da
paternidade.
Isso para não mencionar o padrão de beleza pornográfico que exclui do
mercado econômico ou afetivo as mulheres com estrias ou cicatrizes de
parto ou com obrigações maternas. Ou as famílias "tradicionalistas" ou
simplesmente pouco dispostas a tolerar uma pessoinha inesperada. Bom, as
mulheres ricas, inteligentíssimas e lindas teriam o direito de abortar.
As outras teriam, na prática, o dever, repito, o dever social de
fazê-lo.
É claro que as leis abortivas poderiam criar "vantagens legais" para a
mulher que estivesse disposta a não abortar, ou seja, a levar sua
gravidez a termo voluntariamente, mesmo sendo lícito, mais barato, mais
confortável e mais conveniente não fazê-lo. Cada gravidez seria, assim,
algo como um "serviço público" populacional prestado pela mulher ao
Estado, resultante de uma política oficial de estímulo estatal.
Como se sabe, as políticas públicas decorrem de decisões políticas e de
recursos (bem limitados) a serem direcionados num ou noutro sentido, em
função dos interesses do governante ou do grupo detentor do governo num
determinado Estado, num determinado momento. Isso em todos os países do
mundo, em todos os tempos. Então, na verdade, cada ser humano, daí por
diante, só nasceria quando: 1) fosse filho de alguém economicamente
independente que quisesse e pudesse bancar a aventura de ter e criar um
filho ou 2) quando a sua mãe estivesse incluída numa política pública de
incentivo à gravidez. Política de cotas para gravidez! Imaginemos a
política de cotas para o vestibular, que hoje se está implantando no
país, sendo aplicada a uma eventual “política de incentivo à
gravidez!”
Quem decidiria quais etnias e populações seriam candidatas a incentivos
assim? As ONGs? Os grupos de pressão? Os partidos políticos? E quando o
mundo vivesse uma crise econômica como agora, perderíamos uma geração da
humanidade por falta de recursos públicos? Pode-se imaginar um anúncio
do Ministério da Saúde, mais ou menos assim: “Em função da crise
econômica internacional, este ano haverá recurso somente para a
gestação de mulheres jovens, comprovadamente afrodescendentes,
nordestinas, oriundas da rede pública de ensino ou analfabetas de
nascimento. As outras podem encaminhar-se à Rede Pública de Saúde para a
interrupção gratuita da gestação. Em função de cuidados ambientalistas,
as mulheres grávidas na Amazônia Legal que se encaminharem à rede
pública de saúde para abortar nas próximas vinte e quatro horas
receberão um bônus de cota de carbono! O Ministério da Saúde adverte: a
gravidez pode gerar adolescentes malcriados!”
Ou talvez a gestão dos recursos públicos de “estímulos
populacionais” seria análoga ao processo de reforma agrária: em
caso de necessidade, desapropriaríamos úteros por utilidade pública,
contra "títulos da dívida uterina" recebíveis a longo prazo, digamos em
vinte anos, quando o moleque estivesse pronto para trabalhar e se pagar à
própria mãe. Quem estabeleceria o valor do aluguel de um útero? O
mercado? O governo? A etnia da mulher?

Quem vence, me parece, é Margaret Sanger, porque, afinal, ela tinha
razão em defender publicamente o que hoje se escamoteia. A eugenia e
o abortismo são indissociáveis.

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