domingo, 21 de fevereiro de 2010

A liberdade, a tentação, o bem e o mal

Amigos,
O Evangelho de hoje,domingo, sobre as tentações de Cristo, fez-me lembrar uma passagem do livro de Servais Pinckaers, "Las Fuentes de la Moral Cristiana", sobre a inclinação humana para o bem e a questão do mal e do pecado. traduzi e transcrevi:

O Bem Verdadeiro e o Bem Aparente
Servais Pinckaers
Apesar das diferentes fontes de conhecimento moral das quais dispomos, pode ocorrer que a nossa avaliação do bem não coincida com o bem real, e que inclusive se oponha a ele. Na realidade, podemos tomar como um bem o que é mau e como um mal o que é bom. As causas deste erro podem ser tão numerosas quanto os componentes do juízo e da eleição prática. São os limites de uma inteligência que pode se equivocar em seus raciocínios, tanto em moral como em outras coisas, dado o limite do seu campo de visão, ou por causa de um defeito de atenção ou de penetração, inclusive por inexperiência. Também podem ser as disposições da vontade e do sentimento, pois as coisas são julgadas segundo a disposição em que se está: as paixões, como a cólera, influem a seu modo na percepção do bem e causam a precipitação e a confusão no juízo. A própria vontade pode se deixar perverter por um afeto excessivo, como na avareza, ou pelo repúdio do que lhe contraria, como na inveja ou no ódio.
A distância que se pode estabelecer assim entre o bem conhecido e o bem real está na origem do pecado, e pode expressar-se na distinção entre o “bem verdadeiro” e o “bem aparente”. Ganhar dinheiro e fazer fortuna cometendo injustiça é um bem aparente, que possui um certo peso de realidade e exerce uma poderosa atração sobre o coração do homem; mas é um mal verdadeiro e muito mais real, porque a injustiça corrompe o coração sem que o dinheiro possa jamais compensá-lo. Toda a força da tentação reside precisamente na aparência de bem, que reverbera e cativa o espírito e o coração. O maior perigo da ação malvada é contribuir para fortificar essa aparência, pois se acaba por pensar como se agiu. A injustiça repetida deforma o juízo tanto quanto perverte o querer.
Sem embargo, qualquer que seja o pecado do homem, sempre subsiste no fundo dele esta inclinação natural ao bem e à verdade sem a qual não se poderia formar-se em nós esta aparência de bem que o mal precisa para nos afetar e enganar. Assim, uma divisão, uma contradição inevitável se instala no fundo da vontade pecadora, entre o atrativo do bem, que se encontra na sua própria natureza, e o mal que faz, entre o sentido da verdade, que vem da razão, e o jogo de aparências que a tornam prisioneira. Não há paz para ela.
Apesar de toda a complexidade do problema do pecado, apesar do atrativo do mal que a paixão e o vício podem engendrar, nem por isso a razão e a vontade do homem deixam de estar profundamente orientadas ao bem verdadeiro, e não poderiam jamais ficar satisfeitas sem ele. Por conseguinte, o bem conhecido, que é próprio do homem, permanece sempre ordenado ao bem real, por mais oculto que esteja sob as capas do mal.
A eleição moral não se efetua, portanto, nesta concepção, como na “liberdade de indiferença”, entre o bem e o mal tomados como coisas contrárias segundo a determinação da lei, mas entre dois bens, um dos quais é real e o outro, aparente. [A "liberdade de indiferença" é a corrente de origem nominalista que prega que a verdadeira liberdade consiste em poder escolher indiferentemente entre o bem e o mal]. A escolha moral reclama um juízo de realidade e de verdade sobre a natureza do bem que se apresenta, uma vez que o mal não pode introduzir-se senão pela mentira e duplicidade. A lei intervém aqui para esclarecer a razão sobre a natureza e a qualidade das coisas.
Notemos, por fim, que a afirmação de que o bem próprio do homem é o bem enquanto conhecido não deve ser entendida num sentido subjetivo, como se o bem se identificasse com nossa idéia, com nossa opinião sobre o bem. Isto seria diretamente contrário, para São Tomás, à própria noção de verdade, que designa a realidade a ser captada em si mesma pela razão; contrário também ao amor de amizade, que nos inclina a amar por e em si mesmo. O sujeito humano não faz nem cria a verdade nem o bem; na verdade, cria apenas a si mesmo ao abrir-se à verdade pela razão e ao bem pelo amor justo. A concepção subjetiva da verdade e do bem é, sem dúvida, uma das tentações mais sutis e mais insidiosas para a inteligência. Aprisiona e amarra o espírito, frequentemente em nome da razão, num universo de puras aparências. (Las Fuentes de La Moral Cristiana, pag. 489-491).

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