segunda-feira, 1 de março de 2010

Ateísmo, direito e intolerância

Estamos assistindo ao desenvolvimento de uma ateísmo radical, agressivo, com dificuldades para conviver numa sociedade plúrima, respeitando a opção religiosa do outro.
Digo “opção religiosa do outro” porque trato aqui do ateísmo no sentido forte, como uma das opções religiosas disponíveis ao ser humano, que é a de negar a existência de qualquer transcendência. Vale dizer, quem professa o ateísmo, no sentido forte da palavra, não é apenas um agnóstico (sentido fraco), não é indiferente à questão de Deus. Tampouco é um simples deísta sem religião, como, por exemplo, os maçons. Um ateu forte é alguém que tem partido, o partido de quem acredita que fora do sensível, visível e palpável, não há nada. Nega qualquer possibilidade de transcendência, e considera como missão denunciar a contradição de quem não compartilha sua posição. Mas combater a religião é, indiscutivelmente, colocar-se no plano religioso.
Assim, vê-se que o ateísmo, atualmente, é uma das posições religiosas mais proselitistas e agressivamente intolerantes no campo das relações humanas e desses com Deus. Exemplifico. Se um católico escrevesse um livro denominado “Allah, um delírio”, ou “Brahmah, uma ilusão” (coisa que, aliás, se for um verdadeiro católico, dificilmente fará) seria possivelmente ameaçado, publicamente denunciado e reprovado, perseguido e tido por obscurantista e intolerante. Mas quando um ativista ateu proselitista escreve um livro cujo título é “Deus, um delírio”, não é visto como intolerante, senão como esclarecido. Se debato sobre uma religião com base na minha, sou um fanático. Se ridicularizo todas com base no ateísmo, sou tido como um grande pensador.
Ocorre que há pelo menos uma grande conseqüência social para a qualificação de Deus como delírio. Se afirmo que Deus é um delírio, então considero todos os que professam o teísmo como delirantes - vale dizer, não têm o uso adequado das faculdades racionais. Se não têm o uso das faculdades racionais, não podem e não devem ser ouvidos, na formação do consenso social. Louco não legisla. Nem sequer deve influir no legislador. Veja-se, portanto, o resultado social e político dessa afirmação, bem como as respectivas conseqüências, para a esmagadora maioria da sociedade, que professa uma crença em Deus de uma forma ou de outra. Essa maioria crente não tem nenhum problema, hoje, nas sociedades ocidentais, em conviver com o ateísmo radical. O contrário parece não ser verdadeiro.
Ao qualificar a crença pessoal básica da maioria como delírio, estou afirmando implicitamente que o consenso social não fornece subsídio de legitimidade para o Estado de Direito, vale dizer, não se forma consenso quando a maioria é delirante. Em resumo, estou calando o outro.
Sim, porque toda legislação cuja formação democrática tenha tido por conteúdo um fundamento axiológico reconduzível a uma posição teísta, mesmo que pertinente simplesmente a relações sociais, não passaria da cristalização de uma alucinação, de um delírio. Da formação do consenso social estaria então excluída qualquer axiologia, mesmo racional e coerente, cuja origem reconduza a uma opção teísta. Nesse caso, os ateístas querem ser os únicos juízes de racionalidade e fundamento de validade para o consenso. Pois, se Deus é um delírio, os teístas são delirantes, e qualquer aparente racionalidade, por parte deles, é, no fundo, uma racionalidade de delirantes. Racionalidade, portanto, suspeita a priori.
Pensam, então, esses ativistas ateus, ter o dever de denunciar e resistir, retirando o fundamento social de legitimidade dessas normas, até que sejam validadas por sua própria razão independente e livre de delírios. Se o teístas são filhos de Adão que comeu o fruto, ateístas vêem-se como a própria árvore do bem e do mal. Denunciar o teísmo seria, assim, defender o direito das minorias atéias, únicas que, por princípio, seriam pensantes, racionais, iluminadas, contra o irracionalismo fundamentalista da imensa maioria ignara, insana porque delirantemente teísta. Uma minoria atéia que não quer apenas ser respeitada: quer condicionar qualquer consenso social em matéria de valores à sua concordância pessoal.
Com isso, a questão, passa para o plano dos valores. Se a mera possibilidade de que uma axiologia teísta seja expressada numa norma jurídica retira em abstrato (para eles) o fundamento consensual do direito, de onde viria então a deontologia atéia que fundamentaria o ordenamento, sabendo-se que este é essencialmente axiológico em seu conteúdo?
Bom, crer no ateísmo, como foi dito no início do texto, é crer que nada pode transcender a realidade nua e crua. A questão é que é muito difícil estabelecer qual a “realidade” que não pode ser transcendida. A filosofia estancou aí há milênios. Seria a matéria ou o ego?
Aparentemente, há ateus materialistas e ateus solipsistas. Os primeiros veriam na matéria eterna e auto-organizadora (ou dialeticamente evolutiva) o fundamento da realidade, chegando mais perto do panteísmo. A matéria, o cosmo, o universo, o que quer que esteja no princípio, para eles, funda o homem e todas as coisas. O homem é claramente transitório, mas esse princípio não passa, ainda que impessoal, caótico ou fundamento do mero acaso. Algo como o rio de Heráclito parindo o banhista.
Os segundos crêem num individualismo feroz, confundido por alguns com um humanismo radical, mas que representa, na verdade, um anti-humanismo, como todo individualismo. Crer na impossibilidade radical da autotranscendência individual, como deve crer um ateu conseqüente, é o verdadeiro e mais puro solipsismo. Sendo ateu, não tenho nenhum fundamento fora de mim para crer na racionalidade do outro, ou, em verdade, para crer em qualquer possibilidade de que fora de mim não seja simplesmente o caos. O rio de Heráclito nunca é o mesmo rio, e eu só percebo isso porque sou o banhista intransitório.
O ateísmo militante vem tentando extrair uma axiologia a partir de posições científicas, no mais puro cientificismo. A ciência, ou melhor, o cientificismo, vem sendo amoldada e espremida para fundamentar essa nova pauta de valores sociais de extração atéia. Mas é empreendimento impossível: sabe-se, no bê-a-bá da filosofia do direito, que não se passa diretamente do ser ao dever-ser sem um ato de vontade humana no meio. O cientificismo, então, é apenas a tentativa de encobrir esse ato de pura escolha num biombo pseudo-científico, sem revelar os verdadeiros fundamentos intelectuais que a presidiram - se é que houve algum. Cientificismo não é ciência, é encobrimento de um ato de vontade.
Falo de biombo pseudo-científico porque a verdadeira ciência lida com fatos, não com valores. Como cientista, conheço um átomo de carbono e um de urânio, sei que são diferentes, mas jamais poderei afirmar, de um ponto de vista estritamente científico, que o urânio é melhor que o carbono. Um cientista sabe disso. Um cientificista, não. Examinando uma barata e um elefante, um cientista descreve as suas diferenças, estabelece as variações e pressões seletivas que sofreram ao longo das eras geológicas, registra a complexidade dos respectivos organismos e mostra a quais realidades ambientais esses organismos estão mais adequadamente adaptados. Um cientificista afirma que o elefante é mais “evoluído” que a barata, no sentido de que um é “melhor” que o outro - o que é impossível de estabelecer cientificamente. Um elefante é “melhor” que uma barata se o assunto é resistir a um pisão. Mas a barata é “melhor” que o elefante quando se trata de sobreviver a uma explosão atômica. E ficamos mais uma vez sem saída, do ponto de vista axiológico.
Poderíamos ser ateus coerentes e atribuir a alguma coisa diferente do nosso próprio cérebro o fundamento para aquilo que pode me obrigar, vale dizer, a norma jurídica? Bom, ser ateu é não acreditar em transcendência. Um verdadeiro ateu não tem “ideais” a compartilhar, porque “ideais” são meros estados químicos no seu cérebro material. Então não há nenhum ponto de vista “externo” em que lastrear a possibilidade de compelir ou convencer o outro, salvo a força ou o engano.
Por outro lado, considerar-se um ateu radical implica necessariamente em reconhecer a si mesmo como o doador de sentido para o mundo. Negada a possibilidade da autotranscendência, não se tem como colocar sentido no mundo a partir de um ponto de vista exterior ao próprio indivíduo sem cair ou no panteísmo (divinizar o mundo, a matéria ou o cosmos ou outro princípio arbitrário) ou no irracionalismo. De fato, ser ateu (sem cair no panteísmo) e negar, ao mesmo tempo, que o único sentido possível do mundo é aquele dado por sua própria individualidade é cair no mais absoluto irracionalismo. Se não confiro sentido, se não há autotranscendência, se não vejo um ponto doador de sentido fora de mim mesmo, não vejo sentido em lugar nenhum. Se não vejo sentido em mim mas o vejo em algum ponto fora de mim, estou deificando um logos, e já não sou ateu, pelo menos não no sentido forte da palavra. Panteísta, solipsista, irracionalista, teísta mal resolvido, eis as opções para o ateísmo extremado.
Ora, se o rio de Heráclito não é o mesmo a cada vez que me banho, e se não há Heráclito para, de fora, me ver mergulhar nas duas vezes no rio que muda, tenho que afirmar que eu mesmo sou o banhista e que eu permaneço o mesmo a cada mergulho, e que sou eu que estou testemunhando que o rio mudou. Ou então a própria cena não faz sentido: se o rio nunca é o mesmo, o banhista tampouco e não há observador para descrever a cena, a frase de Heráclito já não comunica nada. O rio, o banhista ou o observador. Um dos três, pelo menos, tem que permanecer, para dar sentido ao quadro. Ao ateu, na impossibilidade de substancializar o rio e de acreditar em Heráclito, só resta afirmar-se como único doador de sentido à cena.
Ocorre que, se caio inadvertidamente no panteísmo ou num teísmo mal resolvido, não posso mais denunciar a idéia de Deus, que compartilho irrefletidamente, vendo, por exemplo, a matéria como eterna e o acaso como doador de sentido. Se caio no irracionalismo, por outro lado, não posso denunciar o delírio de ninguém, porque o delírio é o que resta, excluída a possibilidade da razão. Qualquer denúncia ateísta de um “delírio” alheio parte do pressuposto de que eu estou absolutamente seguro da minha própria razão.
Por isso, se escrevo uma obra chamada “Deus, um delírio”, não posso me considerar panteísta (o que me impede de enxergar no mundo material um sentido independente de mim mesmo) nem irracionalista (pois tenho que crer que o delírio não é o estado humano cotidiano, mas uma exceção a ser denunciada). Em ambos os caso, se não me posicionasse assim, eu estaria sendo contraditório, e minha razão já não seria confiável como ponto de partida para julgar a razão do outro.
É que, presos na impossibilidade de dar sentido ao mundo independentemente de si mesmos (para não cair no panteísmo), e de autotranscender, pela falta de referência externa, os ateus radicais têm como fundamento da sua racionalidade somente a si próprios. Sinto-me tentado a considerar que, na defesa de sua razão individual, são os únicos advogados da própria causa. Ora,um velho promotor que conheci costumava dizer, jocosamente, que quem defende a si próprio costuma ter um imbecil como cliente.
Se sou o único advogado da minha própria racionalidade, por um princípio (o ateísmo) que eu mesmo livremente escolhi, e que me impede de transcender, estou impedido de ser o juiz da racionalidade alheia. Senão coloco-me ao mesmo tempo como advogado da minha racionalidade, como única testemunha dela e como juiz auto-designado da racionalidade do outro.
Para ser perfeitamente coerente, tal ateu sequer pode acreditar num “gene egoísta”. Ao estabelecer que uma molécula orgânica tem vontade ou sentimentos, e que essa vontade supera a própria aparente vontade do indivíduo humano, o ateu está deificando. Deificando uma molécula, a quem concede poderes sobre-humanos e sentimentos de natureza pessoal. Por essa deificação, ele passa a construir uma axiologia de fundo teísta, vale dizer, estabelecer valores baseados nesse pressuposto. Se a existência da molécula, supera a minha própria vida biológica, por me preceder e sobreviver a mim, além de guiar-me cegamente em razão dos seus próprios interesses egoísticos, a minha vontade individual é sobrepujada por ela, e isso torna minha liberdade ilusória. Assim, qualquer norma que vise contradizer a reprodução da molécula é desprovida de sentido, e portanto ineficaz - regulamenta uma liberdade que reconheço não ter. Tanto quanto uma lei que proíba uma pedra de cair, quando solta a determinada altura do solo. Qualquer lei que me impeça de possuir o corpo mais perfeito do sexo oposto que eu possa encontrar, de modo a garantir que meus próprios genes egoístas transmitam-se da forma mais eficaz possível, é ilógica, e, portanto, desnecessária.
Raciocinemos no concreto: mesmo que eu parta da certeza de que o ser humano do sexo oposto que cobiço não queira reproduzir-se comigo, e que tenha claramente manifestado sua decisão individual nesse sentido, ele só o fez por achar, em última instância, que meus genes não são bons o suficiente para seus descendentes. Essa pode ser, no entanto, apenas uma idéia ilusória desse outro, inadvertido dos verdadeiros interesses dos seus próprios genes egoístas. Se eu conseguir superar essa resistência de sua vontade ilusória, provando que meus próprios genes egoístas são o que há de melhor no mercado darwiniano, esse suposto parceiro não terá outra saída a não ser reproduzir-se comigo – os interesses dos seus genes estarão em sintonia com a minha vontade, mesmo que ele(a) não perceba isso conscientemente.
Como faço isso? Primeiro, tenho que eliminar eventuais concorrentes, para mostrar que sou o mais apto na corrida para a perpetuação que meus genes intentam, em prejuízo dos genes dos outros pretendentes, superados sem reproduzir-se. Os concorrentes serão, assim, derrotados na corrida da seleção natural. Como a sobrevivência sempre pertence ao mais apto, ao impedi-los de se reproduzir e sobreviver a esse processo, provei na prática que sou o mais apto, e possuo o melhor conjunto de genes que o parceiro desavisadamente resistente poderia desejar, se desse ouvidos aos seus próprios genes. Portanto, mesmo desconsiderando sua vontade humana, estou em presumível sintonia com a vontade dos “genes egoístas” dele, ao estuprá-lo (a) eficazmente e garantir a perpetuação dos seus genes egoístas com os meus. O estupro bem-sucedido seria auto-justificável, num cenário assim.
É aí que chega a teoria cientificista do gene egoísta se chamada a fundamentar uma estrutura jurídica. Prevalece a vontade do gene sobre as nossas, e a sua perpetuação supera a minha razão- e a de qualquer outro ser humano envolvido.
No entanto, estou, claramente, nesse caso, em contradição com o meu próprio ateísmo radical. Ser um ateu radical é negar a existência de Deus, de um deus, de qualquer deus. Filosoficamente, é negar, portanto, a possibilidade da existência de um algo ou alguém que seja uma entidade portadora de fins últimos necessários a serem alcançados por uma vontade irresistível, cuja existência supera minha vida, liberdade e vontade. Essa descrição encaixa-se na descrição de um gene egoísta, na verdade um deus-gene, ainda mais quando portador de sentimentos pessoais.
Um gene egoísta seria, portanto, filosoficamente um deus. Portador do verdadeiro “sentido” (os fins últimos necessários consistentes em sua própria reprodução), onipotente e imortal, ele atua por sobre a “vontade” humana, que seria mera ilusão: caótica, portanto, porque sem sentido em si mesma. Ora, se acreditamos que o “gene” é uma divindade doadora de sentido que atua dando ordem à matéria caótica de que é formado o ser humano, já não somos ateus, mas gnósticos. Provada a contradição.
Posso concluir, então, que, se sou o único advogado e testemunha possível da minha própria racionalidade, mas o quadro que construí para justificá-la é contraditório, então por meu próprio testemunho a minha razão é apenas ilusória. Real seria apenas a razão do gene, porque mais poderosa, mais racional e mais doadora de sentido do que a minha. Minha única testemunha, eu mesmo, acaba de depor contra mim.
Portanto, usando os próprios critérios de julgamento colocados no discurso, só posso concluir que eu sou apenas um iludido, se confesso que não percebi que esse discurso resulta em afirmar que a razão do gene supera a minha. Ou, na melhor hipótese, reconheço-me como um irracional assumido, se o percebi. De qualquer modo, estou em pleno delírio. Se não posso sequer reconhecer o valor da minha racionalidade, não posso impugnar a racionalidade de ninguém.

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