sexta-feira, 19 de março de 2010

Gene egoísta, um delírio

Todo homem é livre. Não sendo livre, não é homem, é bicho. O que faz de
um homem um homem, para qualquer corrente filosófica consistente, é a sua liberdade,
a sua contingência, a possibilidade de optar entre o que lhe determinam
os instintos e o que lhe dispõe a consciência. Sem essa liberdade, não
conheceríamos as normas jurídicas, mas apenas as leis implacáveis dos
instintos que nos determinariam inapelavelmente as condutas.
É certo que alguns cientistas, arvorando-se de filósofos, procuram,
hodiernamente, negar até mesmo essa liberdade, defendendo que tudo o que
fazemos, somos, sentimos ou queremos está determinado pelos nossos
genes. É o caso de um geneticista de nome Richard Dawkins, autor de
alguns livros de caráter pseudo-científico, entre os quais destacam-se
“O Gene Egoísta” e “Deus, uma Alucinação”. Pseudo-científicos
porque, embora escritos em linguagem acadêmica, tratam de assuntos que,
ontognoseologicamente, estão além da fronteira científica – Deus e a
liberdade humana. Ambos os temas são insuscetíveis de conhecimento sob o
prisma da metodologia científica estrita.
No mundo do direito, tivemos o determinismo jurídico, personalizado por
Ferri, Garofalo e Lombroso, que negava a liberdade e fundamentava a
sanção na necessidade de, em defesa de uma sociedade mais
“evoluída”, eliminar indivíduos atávicos, que representariam
um atraso evolutivo. Essas posições encontram-se superadas, no mundo da
ciência, pelas descobertas de cientistas como Stephen Jay Gould
(paleontólogo) e Werner Karl Heisemberg (físico).
O primeiro, Gould, derrubou a ideia de “evolução” como a de um
abstrato progresso em direção a um ponto utópico de perfeição no futuro,
o que é uma concepção, afinal, idealista, e como tal, meta-científica.
Na verdade, diferentemente do que se diz em manuais escolares, não se
pode, a rigor, falar em “evolução” como uma utópica saída de um
mecanismo orgânico idealmente imperfeito para um mecanismo orgânico
idealmente perfeito, que seria “melhor” do que aquele último.
Pode-se falar apenas em “adaptação” de organismos a determinadas
condições ambientais, o que, do ponto de vista estritamente científico,
transformaria a barata num ser mais “evoluído” que o ser humano, já
que ela é capaz de se adaptar e sobreviver em situações que seriam
impensáveis para um primata. Não há como, cientificamente, dizer
absolutamente que um homem é melhor que uma barata, o que tira todo o
lastro científico às concepções jurídicas deterministas do
“positivismo penal” de Lombroso. Se alguém com hábitos homicidas
consegue adaptar-se melhor à vida em determinada situação - de grave
turbação social, por exemplo - não há porque puni-lo com lastro numa
“teoria da evolução”, porque não há nenhum aspecto, sob o prisma
estritamente científico, que o torne “pior” do que um tímido
servidor público incapaz de fazer mal a uma mosca, e que certamente não
sobreviveria em tais condições, ficando, portanto, incapacitado de
transmitir seus genes à próxima geração. Portanto, estabelecer
ponderação de valores com base na teoria evolucionista é, no
mínimo, impossível (porque implicaria saltar da ontologia para a
deontologia, o que escaparia aos limites científicos) e, no limite,
cruel (pense-se no nazismo, cujo lastro ideológico era exatamente este).

Heisemberg, por outro lado, desenvolveu o chamado “princípio da
incerteza”, que explica que nem as partículas mais elementares da
matéria seguem um padrão absolutamente previsível nas suas
deambulações. Ele anota que não há como determinar simultaneamente
a posição e a velocidade de uma partícula, já que a determinação de uma
torna a outra necessariamente indeterminada. Ora, se nem as partículas
comportam-se de forma determinística, muito menos o ser humano, formado
de incontáveis partículas interagindo entre si sob o pálio da teoria
matemática do caos. Estabelecer, portanto, um determinismo cuja origem é
o gene é menosprezar a inteligência alheia e deificar o DNA,
concedendo-lhe onipotência. Vale dizer, ao descartar a existência de
Deus como pessoa, liberdade e vontade, deificou-se uma proteína,
concedendo-lhe capacidade de tornar a nossa própria vontade uma mera
ilusão em prol dos seus próprios planos de perpetuação. Entra pela
fresta da janela o delírio divino corporificado numa fita química, ao
expulsar-se pela porta quatro mil anos de discussão filosófica e
teológica decente. Dawkins expulsa Platão e Aristóteles, Agostinho e
Tomás de Aquino, Averrois e Avicena, Descartes e Kant, Pascal e Anselmo
de Canterbury, Bergson, Spinoza, Leibniz e Kiekegaard, só para citar, de
cabeça, algumas das mentes mais brilhantes, dentre cristãos ou não, como
“delirantes”, e em seguida quer nos convencer que na verdade somos
simples escravos de um “gene todo-poderoso” que torna ilusória nossa
liberdade ao manipular-nos para a sua própria perpetuação. Onde está o
delírio?

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