terça-feira, 23 de março de 2010

Ainda a teologia da libertação marxista

Escrevi o presente texto para expressar a minha posição de cristão católico sobre fatos públicos ocorridos com filhos da Igreja. Não expressa o julgamento da fé (ou da falta de fé) de ninguém, apenas defendo o que acredito. Tampouco quero ofender a ninguém, peço perdão de antemão se inadvertidamente o faço.
A Igreja é “una, santa, católica e apostólica". Assim reza o credo niceno-constantinopolitano. Não há pluralidade na fé da Igreja em si. Embora a pluralidade de opiniões sobre assuntos outros, chamados opináveis, como política, economia ou ciência, seja não somente admitida como desejada.
Quanto a essa pluralidade de opiniões dentro da Igreja, "levando-se em consideração a liberdade de consciência frente à verdade, qualquer um é livre para pensar o que for capaz de pensar e de dizer a partir dessa responsabilidade. Mas não é livre para afirmar que o que ele diz representa a teologia católica". É o que ensina Ratzinger (Bento XVI), em "Natureza e Missão da Teologia" (2008).
Todos os teólogos, leigos, padres ou bispos, que cometeram o erro de ensinar como sendo católicas as suas próprias doutrinas de fundo marxista da teologia da libertação foram devidamente advertidos, notificados formalmente de forma pessoal pela Igreja de que não devem mais fazê-lo. Se ainda o fazem, ensinam apenas em nome próprio, e não o fazem inadvertidamente. São eles (nomes e datas das notificações):
Jacques Pohier (1979)
Hans Küng (1980)
Leonardo Boff (1985)
Edward Schillebeckx (1986)
Charles Curran (1986)
Tissa Balassuriye (1997)
Anthony de Mello (1988)
Reinhard Messner (2000)
Jacques Dupuis (2001)
Marciano Vidal (2001)
Roger Height (2004)
Jon Sobrino (2007)
Para não restar dúvidas de que essas notificações não valiam apenas para as pessoas dos notificados, mas para todos os fiéis, a Igreja publicou dois documentos gerais (Libertatis Nuntius, 1984, e Libertatis Conscientia, 1987), que deixam bem claro o quanto a Teologia da Libertação de fundo marxista não é cristã, e que quem quer que a ensine o faz em nome próprio, e nunca em nome da Igreja.
Por não saber da verdadeira posição da Igreja, muitas pessoas - eu sou um exemplo disso - afastaram-se do verdadeiro cristianismo por acreditar que a Igreja agora era uma espécie de "internacional socialista", com a teologia da libertação. Essa teologia realmente empolgou inúmeros padres e bispos católicos e os conduziu ao erro. Em alguns países, como o Brasil, chegou a encantar eventualmente um número muito grande de padres e bispos, infelizmente. Isso deu a muita gente na América Latina (que desconhecia a posição correta do Magistério) a idéia de que a teologia da libertação passou a ser doutrina “oficial” pela Igreja. Foi o meu caso. Eu era vítima de uma percepção errada, mas só me dei conta depois de muito prejuízo. Três fatos atrapalharam minha compreensão: 1) a quantidade de bispos envolvidos com a teologia da libertação de vertente marxista, o que dava a impressão de licitude e hegemonia desse pensamento com o qual eu nunca concordei, 2) o fato de que os teólogos da libertação ocuparam a direção das grandes casas publicadoras católicas latino-americanas e 3) a insistência de alguns "intelectuais" de destaque nacional de falar da TL e seu marxismo gramsciano retocado com citações cristãs como se falasse pela Igreja. Alguns documentos eclesiais brasileiros dessa época são bem característicos, parecem mais com atas de assembleia estudantil ou com conclusões de encontros de órgão de defesa de "direitos humanos"...
Reafirmo logo que não se pode ser cristão sem estar preocupado com a questão da pobreza. É o que sempre nos ensinou a Doutrina Social da Igreja, com base nos ensinamentos bíblicos de Jesus. Mas levei tempo para perceber que a significação do que é ser "pobre", na Bíblia, não se confunde com a categoria de "oprimido" ou de "proletário" do marxismo. Pobre, no sentido bíblico e cristão, é a pessoa que põe toda sua confiança em Deus e considera secundários os bens do mundo, que respeita os irmãos como a si mesmo e se solidariza com sua dor. Sua pobreza não é um simples desapossamento, mas um verdadeiro desapego. Seguir a Jesus é ser pobre, viver na pobreza e ser solidário com o irmão pobre que sofre (Mt 19, 24). Isso nos será cobrado no juízo final (Mt 26, 21 a 46).
O proletário marxista não se confunde, no entanto, com o pobre bíblico. O conceito de proletário não tem o outro como "pessoa", mas apenas como indivíduo movido pelas forças cegas da dialética econômica, seja como opressor, seja como oprimido. O marxismo põe toda a sua confiança nos bens do mundo, nos chamados "bens de produção", cujo apossamento pela classe oprimida, assim compreendida como a classe operária, abriria as portas escatológicas para o paraíso terrestre imanente do comunismo. Não dá para equiparar com o pobre bíblico. Para os marxistas, o proletário não é pessoa, aliás nenhum indivíduo é pessoa (exceto talvez a vanguarda do proletariado), somos todos meros joguetes nas mãos das forças históricas econômicas irremediavelmente dialéticas. É por isso que um marxista pode defender a irresponsabilidade penal do "proletário", sem se dar conta de que, afastando-lhe a responsabilidade penal, também afasta dele a dignidade de pessoa - que envolve liberdade e, portanto, responsabilidade.
Marx percebeu a ameaça, para o seu pensamento político, que a verdadeira doutrina social da Igreja representava. Sendo a única verdadeira maneira de libertar o homem das consequências sociais da verdadeira opressão, que é o pecado (o afastamento de Deus), o pensamento social da Igreja nunca foi marxista e provocava furores nos marxistas. Marx escreveu a Engels, em 25 de setembro de 1869:
"É necessário lutar energicamente contra os sacerdotes. Vou atuar neste sentido através da Internacional. Eles, como por exemplo o bispo Ketteler de Maguncia, os sacerdotes reunidos no congresso em Dusseldorf, etc., são simpáticos à questão trabalhista em todos os lugares em que é possível sê-lo. (...) Eles são os únicos que têm se beneficiado durante a restauração dos frutos da revolução". Os art. 63 e 119 do código penal soviético fundamentaram inúmeras condenações à morte de cristãos que se recusaram a admitir publicamente que a religião é o "ópio do povo", que era a posição oficial dos marxistas de então.
Mas Gramsci veio ensinar os marxistas que estavam fora da "cortina de ferro" a lutar mais sutilmente, a "romper hegemonias" através da atuação dos chamados "intelectuais orgânicos", que deveriam trabalhar a partir de dentro das instituições, mudando mentalidades para promover o marxismo, ao invés de partir para a luta armada. Assim, a teologia da libertação é muito gramsciana.
Muitos bispos e padres, empolgados com o sopro de doutrina, transformaram-se então em "intelectuais orgânicos", às vezes formando maiorias até em conferências episcopais nacionais e dioceses. Mas, graças ao bom Jesus, a Igreja não trabalha com maiorias nem com "vanguardas de empolgados", mas com a manutenção fiel do depósito da fé (II Tim 1, 14). Quando se apela para maiorias de fiéis, não raro se escolhe Barrabás, como ocorreu numa determinada sexta-feira em Jerusalém.
Não se pode esquecer, no entanto, que todas as grandes apostasias começaram por movimentos de bispos e padres infiéis ao Depósito da Fé. É assim desde que o cristianismo é cristianismo. Os gnósticos, os marcionitas, os montanistas, donatistas, monofisistas, monotelistas, docetistas, jansenistas, galicanistas, tradicionalistas, lefebrianos, todos eram padres e bispos que andaram - como andam hoje os teólogos da libertação - em descompasso com Pedro. A própria Reforma foi, em grande escala, uma luta intestina: Thomas Munzer era padre, Lutero era padre, os anglicanos consolidaram-se através dos padres e bispos católicos que preferiram Henrique VIII ao martírio.
Este é o mistério da Igreja: ninguém nega que muitos filhos da Igreja, mesmo os que permaneceram com a fé ortodoxa dos apóstolos, tenham sido, ao longo dos séculos, em sua conduta pessoal, infiéis àquilo em que eles próprios acreditavam. Nós, católicos, filhos da Igreja, muitas vezes fomos uns canalhas - e me incluo aí. Muitas vezes não fazemos o bem que queremos, mas o mal que não queremos. Nem por isso o mal vira bem. A Santa Igreja trouxe, pela força do Espírito Santo, o Depósito da Fé intacto até hoje, quer o que nos foi dado por escrito, quer por palavra dos Apóstolos (2Ts 2,15). Mesmo os Papas mais atrapalhados (graças a Deus foram minoria perante os Papas santos, isto é, os que viveram com fidelidade a sua graça) jamais ousaram alterar o depósito da Fé. Este é o cerne da infalibilidade (que não é impecabilidade. Papas pecam, e às vezes gravemente).
A santidade é toda de Deus. A infalibilidade é do Espírito Santo na Igreja, que se faz ouvir quando o Papa fala de cátedra em matéria de fé e moral. Em matéria de política, economia, ciência, ou quando não fala de cátedra (nos discursos, notas, entrevistas, artigos acadêmicos, etc.), o Papa não é assistido divinamente e pode errar, e de fato o faz muitas vezes. Sem problema. A infalibilidade não é um atributo pessoal do Papa - que é apenas um pecador - mas da Cátedra de Pedro, cujo ocupante serve de instrumento para que se reconheça a verdadeira Igreja de Jesus através dos tempos (Is 22, 22 e Mt 16, 18-20). A agulha da bússola não é o pólo norte. A bússola, no entanto, por mais tosca que seja, sempre aponta para lá.
Mas o cerne da teologia marxista da libertação toca matéria de fé e moral, sobre as quais há manifestação dogmática da Igreja. Não serão uns bispos e padres em apostasia, mesmo que detivessem maioria circunstancial na CNBB (o que já não ocorre), que irão alterar o depósito da fé. Não prevalecerão (Mt 28, 20).
O Magistério é do Papa e dos Bispos "em comunhão com ele", (Catecismo, § 100). Quando bispos, padres, freis ou teólogos leigos ensinam sem comunhão com o Papa, mesmo que em grande número, não fazem magistério. Existe um artigo de Ratzinger (Bento XVI) sobre os erros da teologia da libertação, chamado "eu vos explico a teologia da libertação", disponível na Internet para quem quiser ler. Destaco do texto a seguinte frase do então cardeal, hoje Papa: "A gravidade da Teologia da Libertação não é suficientemente avaliada; não entra em nenhum esquema de heresia até hoje existente."
Vivemos nosso amor pela irmã pobreza de forma cristã. Quem nos salvou foi Jesus, não Marx nem Gramsci. Estamos atentos à legítima doutrina social da Igreja - como Francisco de Assis ou Domingos de Gusmão já faziam setecentos anos antes de Engels, Marx, Lenin e Gramsci. E o fazemos fundados na melhor filosofia, como Tomás já fazia, mais ou menos na mesma época, ou Agostinho, mil e trezentos anos antes de Hegel. Nós optamos pela pobreza, castidade e obediência de maneira cristã, como voto perpétuo, com Santo Antão ou São Bento, mil e quinhentos anos antes de uma determinada "teologia" modernosa inverter indevidamente o sentido dos votos religiosos, saindo dos limites do catolicismo.
Resta aos insatisfeitos, bispos, padres ou leigos, renunciar às ideias não-cristãs e caminhar com a Igreja de Cristo, onde está Pedro, ou sair da Igreja e fundar mais uma seita pseudo-crista para ensinar livremente o que quiser em seu próprio nome. A livre interpretação da Bíblia - que a Igreja Católica sempre condenou - está aí mesmo para possibilitar aos insatisfeitos defender como legítimo todo erro que encontrar um exegeta ousado o suficiente para citar um versículo em apoio e proclamar a inspiração direta pelo Espírito Santo da sua interpretação particular (em desobediência a 1Tim 3, 15 e 2Pd 1, 20-21). Na ausência de Magistério desaparece também o critério para julgar o valor de qualquer exegese. Seja do "bispo" evangélico empolgado que cobra pedágio para entrar no céu, com sua "teologia da prosperidade" arrancada de quatro versículos descontextualizados, seja de alguns defendendo o marxismo com base numa péssima leitura de outros quatro.

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