Segundo uma opinião generalizada, vivemos na era dos direitos. Fala-se muito em direitos humanos, direitos coletivos, direitos difusos, direitos sexuais, enfim, uma pletora de novas declarações e movimentos que aglutinam pessoas, mobilizam entidades e fazem correr rios de tinta
sobre toneladas de papel. Enfim, tudo o que se refere a novos direitos, novas tutelas, novas proteções, entusiasma e mobiliza as pessoas. Paradoxalmente, vivemos também na era da impunidade, do mega-crime organizado, do colarinho branco, do tráfico de mulheres e de crianças,
da escravidão e semi-escravidão, da prostituição infantil, dos genocídios diuturnos, das famílias destruídas, das crianças e velhos abandonados, do terrorismo e enfim, a exata sensação de dissolução das condições básicas para a sobrevivência coletiva da humanidade.
Nesse contexto, vale ouvir uma advertência pertinente de João Paulo II:
“Uma observação se impõe ainda: a comunidade internacional, que possui desde 1948 uma carta dos direitos da pessoa humana, na maioria das vezes não tem insistido adequadamente sobre os deveres que daí derivam. Na realidade, é o dever que estabelece o âmbito dentro do qual se hão-de conter os direitos para que o seu exercício não se transforme em arbítrio. Uma maior consciência dos deveres humanos universais seria altamente benéfica para a causa da paz, porque lhe forneceria a base moral dum reconhecimento sempre mais compartilhado de uma ordem das coisas que não depende da vontade dum indivíduo ou dum grupo. (Mensagem de João Paulo II no Dia Mundial da Paz, 1º de janeiro de 2003)
Nessa linha, seria interessante começar a discutir mais sobre deveres humanos, não para sobrecarregar os ombros de quem, já oprimido e espoliado pelo Estado, deva agora resignar-se em fazer por si aquilo que o Estado deveria fazer por todos e não faz, apesar de multiplicar a cobrança de tributos e exigências burocráticas. Mas para deixar claro que a melhoria na qualidade de vida e das relações sociais poderia, sim, passar pela clarificação de alguns deveres gerais a que estaríamos
mundialmente obrigados. Num exercício aligeirado, proponho alguns tópicos para reflexão, como itens que deveriam constar de uma “carta de deveres humanos” eficaz e capaz de levar as comunidades a uma vida melhor.
Num primeiro momento, proponho como dever humano básico o de viver“Etsi Deus daretur” (como se Deus existisse). Ninguém pode ser obrigado a crer em Deus, mas todos têm o dever de exercer qualquer múnus, função, autoridade, mando ou poder como se tivesse, a cada momento, de prestar contas a um ser superior, pessoal e onisciente, pleno em justiça e caridade.
Note-se, no entanto, que não se trata necessariamente de um exercício de fé, mas no mínimo de imaginação: trata-se de imaginar que um ser assim existe, ainda que se imagine que ele existe apenas hipoteticamente, e viver na conformidade do que seria a presumível vontade desse ser maior do que si mesmo. Acreditando-se, outrossim, que esse hipotético ser poderia aparecer a qualquer momento para tomar-lhe contas da sua própria conduta, de modo onisciente.
Claro que seria muito mais fácil atender a esse dever quando já se acredita na existência de um ser assim, mas isso não deve ser um obstáculo para os que não acreditam – mesmo desprovido de fé, não há um só homem mentalmente saudável que não seja capaz de um exercício de imaginação.
A formulação escrita desse dever seria complexa, mas muito mais complexo é fazer uma bomba atômica, e a humanidade já se superou nesse quesito há tempos.
No entanto, o limite para tal declaração seria a expressa consideração de que essa cláusula não poderia jamais ser utilizada por alguém para o julgamento da dignidade de outrem, com o fim de utilizar-se de meios coativos ou violentos contra esse próximo apenas com base nesta cláusula. Vale dizer, ninguém teria o direito de, valendo-se dessa cláusula “etsi Deus daretur”, julgar um outro ou uma coletividade indigno da vida ou da liberdade, para lastrear atos de guerra, terrorismo ou afins. Vale dizer, o exercício de imaginação seria para forçar o sujeito a fazer um auto-exame de consciência, e não um exame da consciência do próximo. Por isso, um dos atributos a ser imaginado nesse presumível ser onisciente a quem todos deveriam contas seria a de que, sendo onisciente, ele estaria encarregado de tomar as contas da consciência do próximo. Em caso de dúvidas, por parte de alguém, sobre o cumprimento deste enunciado por um próximo, caso não implique por si só em ilícito, o remédio seria a correção fraterna, por meio do diálogo ou da exortação.
Enfim, o indivíduo que não conseguir, nem mesmo como um exercício de imaginação, admitir que pode existir alguma coisa acima do seu próprio ego, e em consequência desenvolver um mínimo de responsabilidade pessoal e respeito ao semelhante é, sem dúvida, uma ameaça humana ambulante. É por isso que esse dever foi colocado por mim em primeiro lugar.
Tentarei desenvolver outros “deveres humanos” aqui, gradualmente, na medida em que me ocorrerem e que eu tiver tempo de elaborá-los.
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