Sexo, Drogas, Rock e Direito.
Paulo Vasconcelos Jacobina
Há um individualismo feroz defendendo que alguns tipos penais do nosso direito são ilegítimos, porque representam apenas “intromissões de fundo religioso” num direito que devia ser laico e, portanto, ateu.
Não quero tratar da relação entre laicidade (estado neutro frente à opção religiosa, ou sua falta, dos cidadãos) e ateísmo (o combate a qualquer ideia religiosa). Reflito apenas que, às vezes, o que é apresentado como “laicismo” é apenas um individualismo extremado, não compartilhado nem mesmo pelos cidadãos agnósticos. Registrando a origem da ideia do individualismo e tratando da filosofia grega clássica, Alain Renault, citando Aubenque, registra que na Grécia Antiga, aos homens livres “é menos lícito agir ao acaso”, e que “são os escravos que são livres no sentido moderno da palavra, ao passo que a liberdade do homem grego e sua perfeição são medidas de acordo com a determinação maior ou menor de suas ações” (2004:12)
Os delitos mais questionados pelos fautores dessa ideologia são os atinentes à proteção da liberdade sexual, da família e do uso de drogas psicotrópicas.
O nosso direito não tipifica a prostituição em si, reconhecendo a distinção entre o jurídico e o simplesmente imoral ou pecaminoso. Mas em todos os casos em que há uma tipificação de fundo sexual no nosso direito, sempre envolve a anulação da vontade de uma das partes ou a vedação de que um terceiro valha-se de alguém como objeto sexual, para favorecer-se ou à lascívia de outrem, por vantagem financeira ou mera luxúria. Quem se vende à prostituição não pratica ato típico. Mas quem se utiliza de pessoas como objetos para a lascívia de terceiro comete crime, avilta o sujeito, torna-o res in commercium, violando a dignidade do outro. Trata-se, portanto, de proteção ao princípio da subjetividade humana, da personalidade irredutível a coisa comerciável.
Na mesma linha está a vedação ao tráfico e uso de fármacos psicotrópicos. A coesão social determina que ninguém tenha o direito de, por recreação, lesar-se gravemente, colocando-se em incapacidade de sustentar-se e cumprir deveres sociais, dispondo indevidamente de sua dignidade. Isso para não mencionar a sobrecarga do sistema público de saúde pelos efeitos colaterais destrutivos das drogas, retirando os escassos recursos médicos do alcance dos que os necessitam não por mera consequência de recreação, mas por fatalidade. Também há sobrecarga para o sistema previdenciário e assistencial, com a progressiva incapacitação do usuário e desamparo da eventual prole. Isso sem mencionar que as drogas causadoras de dependência física ou psicológica grave reduzem ou eliminam o discernimento, tornando o usuário incapaz de decidir pela interrupção do uso, mesmo querendo. Mais uma vez, redução da pessoa de sujeito a objeto, dignidade irrenunciável pelo cidadão. Alain Renault, filósofo francês contemporâneo, deparando-se com a questão da repressão às drogas ilícitas, reconhece que o individualismo feroz alimenta um discurso laxista nessa matéria, pela reivindicação do “direito individual de dispor de sua própria existência, de se auto-dispor, de se auto-explorar e, mesmo, de ir além de si mesmo”. Ele sugere um “fio condutor” para pensar a questão, consistente “na perspectiva segundo a qual uma sociedade fundada sobre os valores do humanismo não pode aceitar a livre circulação de substâncias cujo mero consumo prive o homem de sua dignidade”. A fronteira do ilícito seria, então, ultrapassada, “assim que o abuso ou o simples consumo de um produto suscite, naquele que o faz, efeitos tais, que não se possa mais conceber seus comportamentos como subsumíveis à ideia de tal sujeito ou, o que dá no mesmo, à ideia de liberdade compreendida como autonomia” (2004:109).
Quanto à bigamia, uma pesquisa nos livros de antropologia demonstrará que todas as sociedades humanas restringiram socialmente a parceria sexual. Jamais houve uma sociedade em que as pessoas pudessem fazer sexo com quem quisessem, na hora em que quisessem. “Os homens divergiram quanto ao número de esposas que podiam ter, se uma, se quatro; mas sempre concordaram que você não pode ter simplesmente qualquer mulher [ou homem, acrescentaríamos] que lhe apetecer.” (Lewis, 2005:9). Sempre houve uma limitação normativa ao número e à qualidade dos parceiros. É certo que alguns grupos isolados, dentro de algumas sociedades contemporâneas, viveram a chamada “experiência do sexo livre”, que não ultrapassou os limites do grupo, nem chegou a constituir uma forma expressiva ou duradoura. Não são exceções à regra, senão confirmações do seu valor permanente.
Sociedades pagãs como a Atenas socrática e a Roma imperial eram monogâmicas e puniam a bigamia. Não estou tratando da punição à infidelidade conjugal – sempre mais dura com a mulher - mas à contratação de novo estado nupcial na vigência do outro, em desrespeito aos vínculos anteriores.
Curiosamente, sociedades fortemente religiosas, como a Israel bíblica e a Arábia islâmica, eram poligâmicas. Havia até bons motivos sociais para defender a poligamia entre os árabes, por exemplo. Nem hedonismo, nem luxúria, nem moralismo religioso, como pode parecer aos olhos contemporâneos. Mas nas duras condições do deserto, àquela época, um homem válido era social e economicamente essencial, inclusive para gerar soldados e trabalhadores. No entanto, ao repudiar a primeira mulher, casando-se com outra mais jovem, deixava-a abandonada, à míngua. Por isso, ao instituir a poligamia legal, o islamismo estava atribuindo ao chefe de clã a obrigação de sustentar a mulher outrora abandonada, o que foi um avanço humanístico, naquele quadro.
Quanto aos gregos e romanos, sua organização social era incompatível com a idéia de que a fartura de uns lhes desse a vantagem de um casamento poligâmico (e portanto de um clã mais poderoso e numeroso) contra aqueles que, igualmente cidadãos livres, não podiam sustentar mais de uma mulher. Assim, a vedação da bigamia tinha fundamentos públicos bem razoáveis – a eqüidade e a estabilidade mínima de um lar gerador de novos cidadãos. Somente essa estabilidade era capaz de garantir a formação básica da nova pessoa e a estabilidade patrimonial da unidade familiar, para além dos apetites pansexuais momentâneos.
Todas essas opções do nosso direito estão lastreadas, portanto, em sólidos fundamentos, razoáveis e harmônicos com a dignidade constitucional da pessoa humana. O independentismo ateu, por outro lado, apesar de apresentar-se como libertário, é apenas desumanizante, ofensivo à dignidade essencial da pessoa. “Enquanto indivíduos, estamos submetidos aos astros. Enquanto pessoas, os dominamos” (Maritain, Tres Reformadores. Madrid, Epesa, 1948. Ele acrescenta: “Que es el individualismo moderno? Un mal entendido, un quid pro quo: la exaltación dela individualidad disfrazada bajo las aparencias de la personalidad, y el envilecimiento correlativo de la verdadera personalidad”.)
Em tempo, o sexo, o direito e o rock são coisas muito boas em si, malgrado o uso equivocado que às vezes se faz deles.
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