sábado, 13 de março de 2010

Ainda o matrimônio cristão sacramental e a Constituição

Ontem, eu discuti a intercessão entre matrimônio sacramental e liberdade religiosa, mostrando que, aos católicos deste país, há uma liberdade religiosa que a Constituição Federal nega: a liberdade de estabelecer a sua família sob bases mais estáveis do que as fornecidas pelo direito constitucional hoje em vigor, vale dizer, falta-nos a liberdade jurídica de contrair núpcias indissolúveis.
Engraçado como hoje se discute, por exemplo, o pleito gay de criar-se um "casamento homossexual", como uma "conquista" no campo dos "direitos humanos". Discute-se o casamento aberto, as famílias alternativas, enfim, existem várias propostas de união entre duas pessoas que pleiteiam o reconhecimento jurídico pela Constituição. Bem, todos têm o direito de pleitear tal reconhecimento. Aliás, com a eventual aprovação da PEC 28, chamada do "divórcio instantâneo", vai fazer pouca diferença formar família por meio do casamento civil: o casamento civil vai ser tão frágil que poderá ser rompido unilateralmente por uma mera comunicação via internet.
Mas a forma familiar consistente em uma família formada por um casal que recebeu o sacramento indissolúvel do matrimônio pela Igreja é uma forma familiar não reconhecida pelo Estado, e vejo pouca gente gritando a seu favor. É exatamente isso que proponho: uma mudança constitucional para que aqueles que optarem por este modo de organizar sua família, diante da própria liberdade religiosa, possam ter reconhecimento legal.
Há quem queira questionar essa proposta sob o fundamento de que haveria um “direito ao abandono da fé”, ou da conversão a outro credo, que impediria o cidadão de estabelecer compromissos de longo termo em nome da sua própria religião. Em debates, cheguei a ouvir o seguinte questionamento: “atualmente, um cônjuge casado no religioso e no civil, uma vez separado, poderá se divorciar e contrair novo casamento civil. Isto significa que ele abandonou sua anterior convicção religiosa e pode ter ou não adotado outra. De acordo com a sua proposta, ele não poderá se casar novamente, mesmo no civil, porque optara pela indissolubilidade do seu casamento. Mas agora que a sua nova religião permite, não estaria ele sendo “punido” por convicção religiosa, ao arrepio da Constituição?”

Não, a resposta é negativa, porque esse questionamento é falacioso, como demonstraremos em seguida.

Atualmente, não existe, para o estado, um “casamento religioso” e um civil. Existe apenas um casamento civil, que pode ser celebrado religiosamente. É o teor do art. 226, § 1º. Ali, está afirmado peremptoriamente: “o casamento é civil”.

Assim, hoje, o cidadão pode, quaisquer que sejam as suas convicções – indiferentes, neste aspecto, para o Estado – divorciar-se e contrair novo casamento civil, por mero ato de vontade. Isso não significa, de modo algum, que ele tenha abandonado sua anterior convicção religiosa ou que tenha adotado outra. Portanto, pelo regime atual, o divórcio é um ato religiosamente neutro, não tem nenhuma relação com a liberdade religiosa. Mais ainda com a eventual aprovação da PEC 28.

O que estou propondo é que os efeitos civis do matrimônio religioso levem em conta a liberdade religiosa de viver o seu credo até o fim, inclusive quando esse credo exige a adoção de votos religiosos perpétuos, como é o casamento para algumas religiões. Assim, a adoção de requisitos mais rígidos para a proteção do vínculo, em nome das convicções religiosas, podem envolver a livre adoção de efeitos permanentes para este mesmo vínculo, se a religião livremente assumida pelo cidadão assim o exigir.

Neste caso, três situações surgem:

1. Após a livre adoção de um regime matrimonial mais rígido em razão da fé, uma das partes deseja romper o vínculo matrimonial por motivos alheios à perda da fé.

2. Após a livre adoção de um regime matrimonial mais rígido em razão da fé, uma das partes deseja romper o vínculo matrimonial por motivos de perda da fé ou mudança de religião.

3. Após a livre adoção de um regime matrimonial mais rígido em razão da fé, uma das partes, que não deseja mais o matrimônio, por motivos alheios à perda da fé, converte-se a uma nova religião que lhe permite repudiar a antiga esposa e tomar outra.

Em nenhum desses casos, imagino, existiria uma “punição” constitucional ao cidadão que mudou de fé, quando ele enfrentasse dificuldades em contrair novas núpcias por ter usado a liberdade constitucional de, em razão do seu credo anterior, ter contraído previamente núpcias indissolúveis. Haveria apenas o respeito constitucional ao exercício anterior de sua liberdade religiosa, que licitamente o colocou nessa situação.

Ou seja, a liberdade religiosa de conversão ao novo credo não envolve nem limita a submissão aos efeitos do uso lícito da sua autonomia de vontade anteriormente aperfeiçoada. Vale dizer, do ponto de vista jurídico, a proteção ao ato jurídico perfeito e aos requisitos do tempo (tempus regit actus) não é uma “punição”, mas uma mera consequência. Tanto quanto, se eu assinar um contrato de locação, não posso alegar a mudança de religião para me eximir de pagar os alugueres ou de indenizar os danos que tenha feito ao imóvel, ou, após uma compra e venda imobiliária, não posso usar uma mudança de convicção religiosa para me eximir de entregar irrevogavelmente o imóvel ao novo proprietário. Vale dizer, a conversão religiosa é um direito pleno no nosso ordenamento, mas não tem a extensão de revogar atos jurídicos perfeitos, nem de eximir de consequências jurídicas licitamente relacionadas com uma situação jurídica livremente adotada pelas partes.

Com isso tudo, quero dizer que, desde que o regime de restrição à dissolubilidade tenha sido adotado de forma juridicamente lícita e perfeita, dentro da autonomia de vontade livre e consciente, a liberdade de mudança de religião não é fato capaz de obstar seus efeitos, sob pena de reconhecermos que o próprio ordenamento jurídico brasileiro não tem a menor consistência. Ou, alternativamente, de que a esfera autonomia de vontade do cidadão não tem extensão suficiente para fazê-lo envolver-se em nenhum negócio jurídico que o obrigue irremediavelmente, ou que o impossibilite a mudança futura de opinião. Em suma, em nome de uma liberdade irrestrita de conversão, somos todos relativamente incapazes, civilmente.

Ou a liberdade religiosa constitucional envolve a possibilidade ilimitada de conversão a uma religião que exija ou admita do cidadão o desrespeito às suas obrigações lícitas anteriormente adquiridas por ato perfeito perante a lei civil no uso anterior dessa mesma liberdade religiosa, vale dizer, a escusa de consciência ilimitada perante a sua própria responsabilidade civil, ou essa mesma liberdade religiosa constitucional admite que, no uso dessa liberdade, o cidadão tenha o direito de, dentro da sua esfera de autonomia de vontade, possa adotar compromissos indissolúveis mesmo perante uma futura conversão ou apostasia. As duas visões sobre a liberdade religiosa são incompatíveis.

O que eu quero dizer é o seguinte: se a liberdade religiosa constitucional não admite, em nome da própria possibilidade de apostasia ou descrença, que o cidadão adote obrigações de natureza civil irrevogáveis em nome da sua fé atual, livremente adotada, então a liberdade constitucional religiosa tem um limite intrínseco muito rígido: você é livre para crer numa religião, desde que ela não lhe exija a adoção livre e consciente de atos de consequências civis perpétuas, exigíveis mesmo perante a apostasia. Tal religião estaria fazendo exigências ilícitas, se a liberdade religiosa envolve a possibilidade de desfazer unilateralmente os efeitos permanentes dos atos civis anteriormente assumidos no uso da mesma liberdade.

Por isso, o chamado “direito à conversão”, no âmbito da liberdade religiosa constitucional, não pode ser um impeditivo ao reconhecimento da possibilidade de realizar atos civis de efeitos permanentes no exercício livre e consciente dessa mesma liberdade. Ou então, em nome de um ilimitado direito à conversão, que é uma exceção, o próprio direito ao exercício religioso pleno tem uma limitação intrínseca que o torna, na prática, muito restrito.

É claro que o direito brasileiro, atualmente, diz que nós, católicos, não temos a liberdade de estabelecer a indissolubilidade do nosso casamento. O que estou propondo é que essa liberdade exista, uma vez que, além de não desatender ao bem comum, ela realiza mais perfeitamente a estabilidade familiar, a plenitude do exercício civil da liberdade religiosa e a separação entre o estado e a religião, quanto ao mérito do ato religioso. No entanto, se o Estado reconhecer que, em nome do direito a uma potencial apostasia ou heresia, o nosso direito à liberdade religiosa não nos permite estabelecer esse tipo de obrigação civil de efeitos permanentes, eu me curvo. Não sem reafirmar, neste caso, que a exceção está invadindo a norma, que a minha liberdade de cidadão está sendo “protegida” de mim mesmo e que, portanto, o estado não me reconhece como possuidor de uma vontade autônoma confiável. Se é assim, ou seja, se em nome da possibilidade de que eu venha perder a minha fé, o Estado tem o direito de limitar o meu exercício dessa mesma fé, então não somos tão livres nem tão capazes quanto pensamos.

Quanto aos “requisitos” que menciono na minha proposta de alteração constitucional, creio firmemente que qualquer redação mais específica que esta estabeleceria uma invasão estatal no âmbito da liberdade religiosa, e, por isso, a redação proposta é deliberadamente ampla. Por princípio, creio que não cabe ao Estado fazer, aqui, maiores especificações no âmbito daquilo que, respeitado o bem comum e a dignidade humana, somente aos crentes cabe estabelecer, ainda mais quando se trata de aumentar garantias.

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