quarta-feira, 17 de março de 2010

Família, heterossexualidade e homofobia

Ontem, tratei de Freud como um "messias" da contemporaneidade, em sua proposição de que a pulsão básica do homem é sexual. Mas ele não é o único messias assim. Temos um outro profeta, Marx (e seus correligionários Engels, Lenin e Gramsci) para quem toda conduta humana pode ser descrita como uma expressão superestrutural de uma outra pulsão básica, a pulsão econômica, que divide a humanidade, dialeticamente, entre exploradores e explorados.
No que diz respeito à família, os marxistas partem sobretudo de um texto de Engels, na sua obra “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado”. Nessa obra, a família é avaliada dentro da ótica opressor-oprimido. Engels afirma expressamente que "o primeiro antagonismo de classes da História coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre o homem e a mulher unidos em matrimônio monogâmico; e a primeira opressão de uma classe por outra, com a do sexo feminino pelo masculino". A partir daí, as portas ficaram abertas para a afirmação de que a heterossexualidade predominante ocultava uma relação de dominação, de fundo classista, de um dos sexos sobre o outro.
E como toda exploração oculta-se sob um discurso ideológico, passou-se a denunciar a própria heterossexualidade predominante como opressão da minoria masculina sobre a maioria feminina. Denunciou-se que o “papel feminino” atribuído ao indivíduo mulher era uma afetação artificial de fundo econômico, dialeticamente contraposto ao “papel masculino” dominador e opressor atribuído aos indivíduos machos e mantido pela sociedade baseada na exploração . Isso conduziria, para os grupos sexistas de base marxista, à necessidade da própria superação dialética da atribuição da identidade sexual masculina e feminina a indivíduos machos ou fêmeas, com a denúncia de que o substrato corporal masculino ou feminino seria biologicamente neutro para a identidade sexual, e as relações econômicas injustas é que seriam as responsáveis pela manutenção da hegemonia heterossexual que atribui ao sexo a finalidade reprodutiva e à mulher o papel oprimido de hospedeira de embriões da injustiça. A gravidez seria a exploração masculina da mais-valia feminina no casamento.
Neste contexto, um “feminismo” no sentido clássico do termo, quer dizer, a luta para conquistar a plena dignidade das relações entre os sexos, respeitadas as suas diferenças, nada mais seria do que uma estratégia “reformadora” por parte de conformistas burgueses - portanto, apenas um discurso para encobrir, adocicando, uma situação essencialmente má, pertencente a um momento injusto que precisa ser superado, não corrigido. O único feminismo legítimo é o que denuncia a família, aquela que subsiste nos moldes tradicionais, como modelo essencialmente injusto.
Para quem pensa assim, a orientação heterossexual não é mais nem menos artificial do que as orientações homossexuais, bissexuais, pansexuais ou zoófilas: apenas corresponde, no atual quadro econômico, ao interesse das classes opressoras: as orientações heterossexuais seriam apenas uma forma vil de dominação à mulher, transformando-a em objeto de reprodução dos exércitos industriais proletários e da ideologia capitalista, valendo-se de um discurso religioso ou moralista.
O desvalor do homossexual para a classe dominante, nesse contexto, estaria em que sua identidade sexual minoritária, quando “assumida”, tornaria exposta a fragilidade da conexão ideológica entre homem e mulher, de um lado, e “masculinidade e feminilidade”, do outro. O homossexual seria, então, uma espécie de “intelectual orgânico” (no sentido gramsciano). Alguém que, numa situação de patente opressão de classe, colabora para minar os papéis opressores em favor dos oprimidos.

Essa opressão somente seria plenamente vencida com a declaração do prazer sexual como um fim em si mesmo - aliás, como o fim último do ser humano. A superação da hegemonia da heterossexualidade e a consequente desvinculação do ato sexual com a ideia de que o sexo tem qualquer coisa a ver com a reprodução e a responsabilidade com a prole, ou mesmo com o parceiro. Este, ao fim e a cabo, nem precisaria ser singular, ou mesmo ser humano ou até estar vivo para ser objeto de legítima atração sexual, desde que satisfaça a pulsão tida como fundamental para a plena
realização individual. O sexo numa futura sociedade livre não envolveria, portanto, um outro como pessoa, mas como objeto de satisfação do impulso sexual que me dá identidade existencial. Um relacionamento afetivo que já não exaure a minha pulsão seria um obstáculo à minha realização pessoal e, portanto, já não tem fundamento. Todas as relações afetivas são casuais e voluntaristas, nesta “nova sociedade” liberada.
Assim, o travesti passa a ser uma espécie de “vanguarda social”, na categoria gramsciana de “intelectualidade orgânica”. Denuncia a “alienação” burguesa consistente em identificar sexo biológico com “gênero” social, libertando-se e incentivando outros a libertarem-se de tal “opressão”. A mãe abandonada, outrossim, seria sofredora apenas porque ainda não se deu conta de que a própria maternidade que lhe extrai mais-valia resulta de uma estrutura “perversa” que lhe faz acreditar que a ocupação de seu útero por um embrião é um dado natural e não um modelo opressor. Sofre porque ainda não teria rompido com seus condicionamentos, que a fazem crer-se responsável pelo seu filho, aliás colaborando, ao deixá-lo nascer, para a própria perpetuação do modelo injusto. O aborto seria visto, então, dentro dessa lógica, como uma prática altamente libertadora e desalienante!
O próximo passo de uma ciência engajada seria desvincular a reprodução humana da dependência dos elementos gonadais - uma gravidez fora do útero, ou mesmo do próprio corpo humano, a partir de uma célula clonada, seria a destruição final da opressão da classe hegemônica. A possibilidade final de que as crianças não fossem mais fruto exclusivo de uma relação conforme às superestruturas dominantes. Um filho não seria mais um fim em si mesmo, mas outro objeto de produção individual, desvinculado de qualquer condicionamento biológico ou afetivo entre os
pais.
O transexual seria o ápice da vitória sobre a opressão sexual; alguém que constrói a sua própria conformação biológica em razão da sua “identidade de gênero”, invertendo a opressão “masculina” que faria crer falsamente que o biológico e o espiritual são indissociáveis na construção da identidade pessoal. O transexual provaria, ao invés, que a pulsão sexual, livre da opressão dominadora, é quem determinaria o biológico. O custeamento da sua cirurgia pelo Estado é a vitória do intelectual orgânico na construção a “sociedade mais justa”, porque quebra, desde dentro, a lógica do estado burguês, inserindo-o numa contradição que fatalmente o implodirá..
Para esses grupos, qualquer ponderação de que um transexual, mesmo tendo conquistado a mudança de nome e de sexo no registro de nascimento, não deixa biologicamente de ser um indivíduo do sexo masculino, mutilado cirurgicamente e intoxicado com doses maciças de hormônio feminino artificial, é simplesmente homofóbica, discurso de opressão de quem quer alienar o trabalhador do seu próprio corpo.
Para os que pensam assim, homofóbico não seria apenas quem agride verbal ou fisicamente a pessoa com atração homossexual, mas quem colabora, de qualquer forma, com a perpetuação do modelo familiar tido como opressor, baseado na heterossexualidade e na ideia de que sexo e reprodução são essencialmente indissociáveis, ainda que acidentalmente nem sempre coincidam.
Dentro do contexto de tal pensamento, a “lei de repressão à homofobia” será uma boa arma para a destruição da “família burguesa”, e não o estabelecimento jurídico da tolerância. Trata-se, para estes, de uma estratégia controle ideológico de pensamento pela tipificação criminal da opinião de quantos consideram a família, definida como fundada no casamento de um homem e uma mulher, como célula básica da estrutura social, para forçá-los a adotar a categoria marxista da indiferença biológica dos gêneros e de denúncia do modelo de “família opressora”. A simples defesa, por alguém, de um modelo familiar assim pode ser, no limite, denunciado como “homofóbico” pelos que estão envolvidos com tais ideologias. A lei de repressão à homofobia pode acabar sendo simplesmente autoritária, e parece designada para tanto.

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