sexta-feira, 12 de março de 2010

matrimônio sacramental cristão e PEC do divórcio instantâneo

É séria esta questão da Pec que quer introduzir, no nosso país, o chamado “divórcio instantâneo”. Há aspectos bastante interessantes sobre a intercessão entre casamento, matrimônio sacramental e liberdade religiosa no país que devem ser refletidos. Inicio com quatro pontos:

Primeiro: Como se sabe, há um princípio constitucional bastante forte, que é o princípio da liberdade religiosa; a Constituição chama-o de inviolável (art. 5º, inciso VI) e garante o “livre exercício dos cultos” e “a proteção aos locais de culto e suas liturgias”. Nesse diapasão, ninguém pode ser privado de direitos por motivo de crenças religiosas (inciso VIII).

Segundo - Como se não bastasse, é vedado ao Estado imiscuir-se no próprio âmago do ato religioso, de modo a embaraçar-lhe o funcionamento (art. 19, inciso I), vale dizer, a Constituição garante que o Estado deve deixar à religião a liberdade de estabelecer, dentro dos limites do bem comum, o conteúdo da própria fé e a forma do seu exercício.

Terceiro – A família é a base da sociedade e tem a especial proteção do Estado, conforme art. 226. Essa proteção relaciona-se com outro pilar do direito constitucional brasileiro, o direito à educação, que é dever do Estado e da família. Assim, certamente qualquer convicção religiosa que venha a aumentar ainda mais essa “especial proteção” devida pelo Estado é uma convicção plenamente conforme ao bem comum, e deve ser, portanto, de livre exercício e de proteção efetiva pelo Estado brasileiro.

Quarto – As convicções religiosas deste tipo, vale dizer, que estabelecem, por convicções religiosas, uma proteção especialíssima ao casamento, superior àquela concedida pela própria lei estatal, se por um lado não devem ser impostas a quem não aderiu ao respectivo credo, por outro, não devem ser impedidas a quem o fez. A lei não deve, creio eu, impedir que um casal, por convicções religiosas profundas, dê ao seu matrimônio mais proteção do que aquela estabelecida pelo ordenamento.

Postas essas quatro premissas, eu posso afirmar que, para muitas religiões professadas efetivamente no Brasil, de modo significativo em termos populacionais, como a religião cristã católica, por exemplo, o casamento constitui mais do que uma simples instituição humana, revelando-se como uma aliança de natureza sagrada. O matrimônio sacramental católico, com seu fundamento bíblico e seu rito litúrgico tradicional, é um ato que pode perfeitamente caber na noção do art. 5.º VI da Constituição como ato religioso strictu sensu. É da natureza desse ato religioso de culto, que tem uma liturgia própria (a ser protegida pelo mesmo inciso VI) e gera um dever de consciência (a ser protegido na forma do inciso VIII) a grande rigidez no que diz respeito à sua dissolução. No caso dos católicos, existe até mesmo uma nulidade matrimonial se os contraentes não estiverem, de pleno coração, cientes e aderentes a esse princípio sagrado de proteção contra a dissolução imotivada, muito mais protetivo do que a lei civil.

No entanto os que professam esse credo, embora sejam parte expressiva da população e expressem um credo perfeitamente ajustado ao bem comum, não são livres para faze-lo civilmente. Em outras palavras, o Estado brasileiro não reconhece, no sistema atual, a liberdade aos cristãos de contrair núpcias de modo conforme à sua liberdade de crença, no exercício da sua liberdade de culto e liturgia (inciso VI do art. 5) – muito embora essas núpcias tragam uma proteção mais ampla à família, pela sua proteção ao vínculo (art. 226, caput). É que, ao promover o reconhecimento civil do seu matrimônio religioso, nos termos do art. 226, § 2º, esses cidadãos têm que submeter o seu vínculo, na forma do § 2º do art. 226, aos efeitos civis “nos termos da lei”. E essa mesma lei é estritamente balizada pelo § 6º do mesmo artigo, ou seja, o ordenamento pátrio está, atualmente, constitucionalmente impedido de reconhecer a liberdade religiosa de dar-se um regime de proteção ao vínculo matrimonial que não seja o da submissão absoluta à dissolubilidade imotivada, pelo divórcio.

Com a aprovação da emenda constitucional 28, que cria o chamado "divórcio instantâneo", a situação ficará ainda mais grave, porque mesmo aquela tênue proteção consistente na dilação prazal para a concessão do divórcio deixará de ter previsão constitucional, deixando ao arbítrio do legislador estatal do momento o estabelecimento e a alteração das regras atinentes ao próprio cerne de um ato profundamente religioso para os cristãos como é a contração do sagrado matrimônio, vale dizer, competirá ao legislador estatal estabelecer e alterar, ao alvedrio das maiorias momentâneas, o próprio mérito de um ato religioso, ou embaraçar-lhe o exercício, o que a própria Constituição já havia sinalizado como indesejável, no art. 19, I.

Em suma, os cidadãos brasileiros com fé religiosa não terão a liberdade de realizar seu culto a Deus pelo sacramento do matrimônio protegido contra a indissolubilidade arbitrária; Se, por um lado, aqueles cidadãos sem fé dispõem da liberdade de constituir ou dissolver famílias ao sabor da legislação do momento, por outro lado, os cidadãos com fé religiosa não têm a liberdade de proteger seus próprios matrimônios na conformidade da sacralidade que eles, na sua liberdade religiosa, atribuem às suas famílias. São obrigados, portanto, a submeter-se a um modelo de instabilidade familiar que viola seus próprios princípios religiosos, apenas porque a Constituição, no seu art. 226, § 2º, submete-os rigidamente ao mesmo e único regime civil matrimonial instável em vigor.

Em nome da liberdade dos cidadãos agnósticos de desproteger as famílias, o direito brasileiro não reconhece aos cidadãos crentes a liberdade religiosa de proteger as suas próprias, mesmo quando os os credos são mais estáveis e seguros que o próprio ordenamento. Em nome da liberdade dos agnósticos de não serem submetidos aos credos religiosos, o Estado brasileiro, em contradição com o art. 5º, não está reconhecendo a liberdade fundamental do cidadão religioso de se submeter plenamente à sua fé, como lhe impõe sua consciência, mormente num caso, como este, em que o credo é mais protetivo ao princípio constitucional do art. 226 do que a própria exceção do seu § 6º.

Por isso, o que proponho, diante do avanço da emenda ao § 6º do art. 226, que torna o regime matrimonial sujeito à instabilidade legislativa, submetendo convicções religiosas estáveis ao capricho do legislador do momento, é uma mudança no § 2º do mesmo art. 226, de modo a reconhecer uma liberdade religiosa fundamental ao brasileiro de fé: a liberdade de que o cidadão religioso possa dar à sua família mais proteção, mais estabilidade, do que aquela estabelecida pelo legislador de plantão.

Isto está em perfeita consonância com os princípios constitucionais que já citei acima, e realiza de modo mais perfeito tanto o princípio da liberdade religiosa, quanto o princípio da liberdade de não ter crenças religiosas, quanto a separação que o Estado deve manter, observado o bem comum, do próprio mérito do ato religioso. Proponho, portanto, que o referido § 2º do art. 226 tenha a seguinte redação:

§ 2 º - O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei, respeitada a liberdade religiosa de estabelecer requisitos mais protetivos quanto à sua dissolução.

Com isso, o cidadão que contrai casamento religioso adquire uma liberdade inédita no nosso sistema jurídico, de exercer plenamente suas convicções quanto à estabilidade do seu matrimônio. Sem, por outro lado, invadir a liberdade dos agnósticos de não crer na família estável. Mas a liberdade que pleiteamos para os religiosos, além disso, atende ainda melhor, o escopo do § 3º do mesmo artigo, porque, enquanto o regime de instabilidade laico torna bem fácil a dissolução das famílias reunidas pelo vínculo do matrimônio e favorece o surgimento das uniões estáveis, os credos mais protetivos dificultam a conversão dos casamentos religiosos em uniões estáveis, estabelecendo uma clara vantagem àqueles em segurança jurídica e tornando-o mais atrativo do que as uniões estáveis para os que desejam que as famílias concedam ao Estado, de fato, uma “base” (art. 226) segura, além de um lastro firme para a educação da prole (art. 205).

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