No capítulo I, a encíclica estuda a passagem evangélica conhecida como do “jovem rico” (Mt 19, 16-21). A perícope é abordada como uma pista válida para a resposta de Jesus Cristo à questão moral.
O “jovem” representa cada homem que se aproxima de Jesus e lhe coloca a questão moral: “Mestre, o que farei de bom para ter a vida eterna?”. Mais do que inquirir sobre “normas a observar”, trata-se da questão sobre a plenitude da vida, impulso último, profundo, inquieto e aspiração que move a liberdade: é o apelo ao bem absoluto que nos atrai, eco da vocação de Deus, origem e fim da vida do homem e único modo de saciar seu coração.
Para possibilitar esse “encontro com Cristo” é que existe a Igreja, sendo esta sua única finalidade!
A pergunta do jovem rico é a um só tempo essencial e irresistível, que diz respeito ao bem moral a praticar e à vida eterna, intuindo que há um nexo entre ambas. No caso concreto, talvez não se trate, por parte do jovem, de um desconhecimento da lei nem deste nexo, mas o fascínio de Jesus, que fez nascer nele novas interrogações acerca do bem moral, perante o anúncio que faz Jesus sobre a proximidade do Reino.
Também o homem de hoje precisa voltar-se novamente para o Cristo e obter dele a resposta sobre o bem e o mal. Ele, mestre presente, desvenda aos fiéis as escrituras e revela a vontade do Pai. Para compreender-se integralmente, o homem deve aproximar-se de Cristo, levando suas inquietudes, incertezas, fraquezas e pecaminosidade. Somente mergulhando no mistério da encarnação e redenção o homem produzirá frutos de adoração a Deus e maravilha perante si próprio.
A nossa tarefa, portanto, é procurar o sentido da pergunta do jovem rico e deixar-nos guiar docemente pela resposta de Jesus.
“Um só é bom”, diz Jesus, em resposta à questão do bem. Jesus quer que o jovem se esclareça sobre o motivo pelo qual interroga. Indica ao interlocutor que essa questão só pode ser respondida dirigindo o coração e a mente para o único “bom”. Só Deus pode responder a questão sobre o bem, porque Ele é o Bem. Jesus mostra que a pergunta é, no fundo, religiosa. A bondade é deus, único digno de ser amado plenamente, fonte de felicidade para o homem. Jesus reconduz a ação moralmente boa ao seu fundo religioso: o reconhecimento de Deus como única bondade, plenitude da vida, termo último do agir humano e felicidade perfeita.
A Igreja, instruída por seu Mestre, crê que o homem vive para que, redimido e santificado por Cristo, cada uma das suas ações irradie o esplendor divino. Conhecer a si mesmo, neste contexto, é conhecer e purificar a imagem de Deus.
O que o homem é e deve fazer manifesta-se no momento em que Deus revela a si próprio. As “dez palavras” são a revelação que deus faz de si mesmo, como aquele que é o único bom, e que segue sendo o modelo, apesar do pecado do homem. Trata-se do restabelecimento da harmonia original.
Assim, a vida moral do homem é uma resposta devida à iniciativa gratuita de Deus em favor dos homens. Resposta de amor ao Amor. A vida moral, implicada no amor de Deus, é chamada a refletir Sua glória; trata-se de agradar a quem se ama. A maior recompensa de amar é o amor. A caridade provém de Deus de um modo tal que o próprio deus é caridade.
O primeiro mandamento já nos aponta que um só é bom, só Deus é o Senhor. É o coração da lei, do qual decorrem os preceitos particulares. E daí decorre que nem a observância rigorosa de Lei a cumpre plenamente. Mesmo cumprindo rigorosamente a Lei, o homem jamais é bom em si mesmo. O cumprimento, a satisfação da lei é um dom, oferta de participação na bondade divina presente em Jesus: vem e segue-me!
A primeira resposta de Jesus é : “Se queres entrar para a Vida, guarda os mandamentos”. Ao criar o homem, e ordená-lo com amor e sabedoria ao bem como fim, Deus responde à questão do bem: Ele próprio é o Bem. Inscreveu a “lei natural” no coração do homem, na forma da luz da inteligência em nós infundida.
Também nos deu o decálogo no Sinai, fundando o Povo da Aliança. O dom do Decálogo é promessa e sinal da nova aliança,. Quando a lei for nova e definitivamente inscrita no coração do homem, substituindo a lei do pecado que se tinha instalado ali. Haverá um coração novo, um “espírito novo”, o Espírito de Deus (cf. Ezequiel).
Há, portanto, uma relação estreita entre a salvação e a obediência aos mandamentos, sublinhada, nesta passagem, por Jesus. Ele entrega, como um novo Moisés, os mandamentos. Mas a terra prometida agora é o Reino dos Céus. Confira-se o Sermão da Montanha.
A realidade mesma do Reino refere-se à expressão “vida eterna” , ou seja, participação na vida de deus após a morte, luz da verdade e fonte de sentido, ainda em vida: quem abandonar os próprios interesses mundanos para seguir Jesus receberá muito mais e terá por herança a vida eterna (Mt 19, 29).
O Jovem insiste, e quer saber quais mandamentos seguir. Jesus lhe aponta os mandamentos que dizem respeito ao próximo. Não se trata de esgotar os mandamentos, mas de chamar a atenção para a centralidade dos mandamentos, fundamentados na noção de que foram dados por aquele que é “o Senhor teu Deus”.
Os mandamentos citados por Jesus nesta passagem são majoritariamente aqueles da chamada “segunda tábua”, fundamentadas no amor ao próximo. Exprimem a dignidade singular da pessoa humana, única criatura querida por Deus por si mesma. Protegem o bem da pessoa, pela proteção dos seus bens materiais e espirituais: a vida, a família, a propriedade, a veracidade e a boa fama.
Os mandamentos são retomados como condição básica para o amor ao próximo e sua confirmação. São a primeira etapa necessária no caminho para a liberdade: não ter faltas é o início da liberdade, dizia Santo Agostinho, mas ainda não a liberdade perfeita.
Não se trata de separar o amor de Deus e o amor ao próximo. Ao doutor da lei que o interpela, Jesus alerta que os mandamentos resumem-se a dois: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo”. A parábola do bom samaritano é contada exatamente em resposta ao questionamento do Doutor da Lei, sobre quem é o próximo.
Os dois mandamentos estão indivisivelmente unidos entre si, como Jesus demonstra por palavras e atos. São sinais indistintos do amor ao Pai. Sem o amor ao próximo, o amor a Deus não é autêntico. Sem o amor a deus, o amor ao próximo é mera filantropia.
No Sermão da Montanha, Jesus a um só tempo ratifica a lei e apresenta-se como a sua chave. Ele é o elo vivo entre o antigo e o novo Testamento. Jesus é o fim, não como carência, mas como plenitude. O que no antigo era figura, torna-se verdade, realiza-se no novo por Jesus.
Jesus leva a lei à plenitude, interiorizando e radicalizando os mandamentos. A atitude do cristão deve nascer de um coração que ama, que está disposto a viver as exigências mais radicais. Os mandamentos não são limite mínimo a não ultrapassar, mas estrada aberta para o amor. Por exemplo, a ordem “não matarás” traz o apelo a um amor solícito que resgata e dignifica o outro. O mandamento contra o adultério vira um convite ao olhar puro.
Jesus é o cumprimento vivo da lei, torna-se ele mesmo a lei viva e pessoal, e seu seguimento dá, mediante o dom do Espírito, a graça de partilhar na vida e amar e testemunhar nas opções e nas obras!
“Tenho cumprido tudo isto. Que me falta ainda?” é o questionamento do jovem a Jesus. Não é fácil afirmar isto, quando se pensa no verdadeiro alcance das exigências da lei. Mesmo que eventualmente pudesse fazê-lo, o jovem rico sabe que ainda está longe da meta.
Valendo-se da “nostalgia de plenitude” que supera as interpretações legalistas, Jesus convida-o á perfeição, “se queres ser perfeito, vende o que tem, dá aos pobres e terás um tesouro no céu. Depois vem e segue-me.”
No contexto evangélico, a fala de Jesus remete à bem-aventurança da pobreza. As bem-aventuranças dizem respeito, mais do que a condutas, a “atitudes” e “disposições de fundo” e por isso não coincidem perfeitamente com os mandamentos. Mas não há oposição ou separação entre eles. Ambos referem-se ao bem e à vida eterna. O Sermão da Montanha começa com as bem-aventuranças, mas refere-se aos mandamentos, orientando-os à perfeição em Jesus. As bem-aventuranças são promessas com indicações normativas indiretas para a vida moral. São um auto-retrato do Cristo, convite ao seu seguimento e á comunhão de vida com ele.
Terá o jovem compreendido a profundidade das exigências dos mandamentos? O certo é que o compromisso com os mandamentos é o terreno fértil onde a graça germinará e amadurecerá o desejo de perfeição. Sobre tal fundamento (o cumprimento dos mandamentos) o convite ao livre seguimento pede uma resposta amparada pela graça. Neste contexto, a perfeição é a maturidade no dom de si, como resposta livre ao chamado de Cristo. O cumprimento aos mandamentos é, nesse contexto, o pressuposto para a vida eterna.
O abandono te tudo é a proposta de perfeição que Jesus faz ao jovem. Trata-se da dinâmica da liberdade em direção à maturidade. Da relação entre liberdade e lei divina. Não a liberdade como “pretexto para servir a carne” de que trata São paulo, mas como cumprimento dos preceitos por amor.
O cumprimento dos preceitos é a primeira e imperfeita liberdade. Sente-se a influência da “outra lei” mencionada por São Paulo, a lei da carne, nos membros, em contraste com a lei da razão. O ser humano é assim, na sua peregrinação terrestre: liberdade parcial, parcial escravidão.
A liberdade só será completa na eternidade. Conservamos em parte a fraqueza, em parte alcançamos já a liberdade. Os pecados foram destruídos no batismo, mas não a fraqueza, senão já não haveria pecado entre os cristãos. É esta fraqueza que nos mantém escravos.
Para quem vive “segundo a carne”, a lei de Deus é peso, negação ou restrição. Para quem vive “segundo o Espírito”, é caminho para a prática do amor, livre e consciente. Não se detém nas exigências mínimas da lei, mas vive-a em plenitude. É caminho incerto e frágil na terra, só possível pela graça que nos faz filhos de Deus.
O chamado à perfeição não é uma vocação restrita a um círculo estreito de pessoas, mas dirige-se a todos, como radicalização do mandamento de amor ao próximo. O “vem e segue-me” é a forma concreta do mandamento do amor de Deus. É uma única e indivisa caridade que tende à perfeição, cuja medida é só Deus, o perfeito e misericordioso.
O caminho e o conteúdo dessa perfeição é o seguimento de Jesus, depois de ter renunciado aos próprios bens e a si mesmo. A profundidade de tal convite só será compreendida depois da essurreição de Jesus e da vinda do espírito.
Jesus sempre toma a iniciativa, chamando para o seu seguimento. Chama aqueles em quem confia, os que envia, os apóstolos, mas todo aquele que crê recebe o chamado, pois o seguimento de Jesus é o fundamento essencial e original da moral cristã. Antes, o povo no deserto seguia Deus. Agora, os cristãos seguem Jesus, atraídos pelo Pai.
Mais do que obedecer mandamentos ou seguir ensinamentos, ser cristão é aderir à pessoa do cristo, tornar-se discípulo de Deus. Imitar o Filho para imitar o Pai. Seguir no caminho do amor, doar-se plenamente ao irmão por amor a Deus. Amar o outro como Jesus amou, eis a medida, expressada no lava-pés. As ações e palavras, e principalmente a Paixão, morte e ressurreição, são revelação viva de seu amor pelo pai e pelos homens.
O “como” de “como vos amei” é a medida do amor que os discípulos de Jesus se devem. Amar como Jesus, até o fim, dando a vida por seus amigos.
A proposta de Jesus ao jovem rico é a de amar totalmente, “até o fim”, renegar-se, tomar sua cruz e segui-lo (Mt 16, 24). Não como uma imitação exterior, mas um “conformar-se” profundamente a ele, pela graça. Tornar-se membro do seu corpo, que é a Igreja, pelo batismo, que nos conforma, nos reveste de Cristo. O batizado torna-se Cristo. Morto para o pecado, recebe a vida nova. A participação na eucaristia é o ápice dessa configuração.
“A Deus tudo é possível”. O jovem rico, e com ele muitas pessoas, assustam-se com o nível de exigência do seguimento de Jesus. Tais exigências superam a condição humana. “Quem poderá se salvar?”, perguntam os discípulos. O que aos homens é impossível, a Deus é possível, diz Jesus.
Ao examinar a lei mosaica, Jesus rejeita o direito ao divórcio com base num “princípio” mais original e autêntico que a lei de Moisés. Esta chamada principiológica assusta os discípulos. Ao homem, não é possível imitar por suas próprias forças o amor de Jesus. Somente por dom, o dom do Espírito, essa caminhada é possível. Santo Agostinho diz que é o amor que faz cumprir os mandamentos, e não o cumprimento dos mandamentos que faz surgir o amor.
A lei do Espírito de vida de Jesus Cristo nos livra da lei do pecado e da morte. A relação entre a lei e a graça cumpre-se em Jesus. A lei tem papel pedagógico. Mostra a fraqueza e a deficiência do pecador, para que ele invoque e acolha a graça. Só em Cristo Jesus somos justificados. “A lei foi dada para que se invoque a graça; a graça, para que se observe a lei”. O amor e a vida segundo o evangelho não podem ser pensados em termos de preceitos, porque o que pedem supera as forças do homeme. Somente são possíveis como frutos de um dom de Deus, que cura e restaura o homem na graça. O mandamento do amor e da perfeição somente é uma possibilidade aberta ao homem pela raça, pelo amor de Deus como dom. A consciência de ter recebido tal dom gera e sustenta a resposta responsável de um amor total a Deus e entre os irmãos, como insistentemente lembra o apóstolo João na primeira carta: amar a Deus, que não se vê, no irmão que se vê. Só quem ama conhece a Deus, que é amor. A conexão indivisível entre a graça de Deus e a liberdade expressa-se de modo muito claro na frase de Santo Agostinho: “dá-me o que me mandas e manda o que quiseres”.
O dom reforça a exigência moral do amor. Só se pode permanecer no amor quando se guardam os mandamentos. Os Padres, em especial Santo Agostinho, dizem que a “nova lei é a lei da graça do Espírito Santo dada pela fé em Cristo”. Os preceitos externos da lei dispõem o coração para a graça e a prolongam. A nova lei diz o que fazer e dá também a força para tanto. A nova lei não veio do monte como tábua de pedra, mas com o Espírito Santo nos corações, tornados pela sua graça uma lei viva, um livro com vida.
“Eu estarei sempre convosco, até o fim do mundo” (Mt 28,20), é a promessa de Jesus. O diálogo com Jesus se atualiza cada homem faz a ele a mesma indagação do jovem rico, e só ele pode dar a resposta plena. A contemporaneidade do Cristo ao homem de cada época somente se realiza no seu Corpo místico, que é a Igreja. O Espírito Santo foi prometido por ele para “lembrar” e fazer compreender os mandamentos, sendo “princípio fontal de uma nova vida no mundo”.
As prescrições morais reveladas por Deus no AT e cumpridas por Cristo no NT devem ser fielmente conservadas e permanentemente atualizadas na cultura e na história. Isso cabe aos apóstolos e sucessores, com a especial assistência do Espírito Santo.
Os apóstolos, em sua catequese moral, legaram-nos um ensinamento ético com normas precisas de comportamento. Desde o início vigiaram sobre a retidão de conduta dos cristãos, sobre a pureza da fé e sobre a transmissão dos dons divinos pelos sacramentos. Os primeiros cristãos diferenciavam-se pela fé e pela liturgia, mas também pela conduta moral. Havia uma comunhão entre fé e vida.
A Igreja luta contra a dilaceração da harmonia entre fé e vida, recusando rupturas propostas pelos que desconhecem ou alteram as obrigações a que leva a fé evangélica.
Promover e guardar a fé e a vida moral na unidade da Igreja é tarefa dos apóstolos, confiada por Jesus. A Tradição viva, sob a assistência do Espírito Santo, acolhe e transmite as Escrituras, confessa pelos Padres e Doutores a verdade do Verbo encarnado, pratica os preceitos e a caridade nos santos e santas, mártires ou não, celebra a esperança na liturgia; a voz do evangelho ressoa na Tradição como expressão fiel da sabedoria e vontade divinas.
A interpretação autêntica desenvolve-se sob a assistência do Espírito Santo, garantindo que os ensinamentos de Jesus sejam santamente conservados, fielmente expostos e corretamente aplicados nos tempos e circunstâncias. Compreender, à luz da fé, as novas circunstâncias históricas e culturais. Mas a Igreja não pode deixar de confirmar a validade da Revelação perene.
A Igreja é a única encarregada de interpretação autêntica, como coluna e sustentáculo da verdade, inclusive quanto ao agir moral. A ela compete anunciar os princípios morais relacionados à ordem social ou a qualquer realidade humana, na medida em que o exijam a salvação das almas e a dignidade da pessoa humana. Ajudar o homem a discernir os caminhos da verdade.
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