De tudo, o que mais parece incomodar os ouvidos modernos é a pretensão católica à verdade religiosa. Parece ofensivo sustentar a possibilidade de “provas da existência de Deus” hoje em dia sem parecer um medievalista, um arrogante ou um desinformado, quando não um ingênuo obscurantista.
Assim, a afirmação, feita na Constituição “Dei Fillius”, do Vaticano I, de que a Mãe Igreja “sustenta e ensina que Deus, princípio e fim de todas as coisas, pode ser conhecido com certeza pela luz natural da razão humana, a partir das coisas criadas, 'pois o invisível dele é divisado, sendo compreendido desde a criação do mundo, por meio do que foi feito' (Rom 1,20)” parece anacrônica, diante de todo o idealismo pós-kantiano, que veda o acesso a Deus pelas chamadas “vias” ou “provas”, como a clássica de Santo Anselmo e as cinco vias de São Tomás.
Na verdade, há uma raiz, nessas afirmações anti-intelectualistas modernas, de uma piedade a meu ver distorcida, que surgiu dentro do pensamento de homens da Igreja, homens piedosíssimos. Cito São Boaventura, que afirmava que “a característica da alma verdadeiramente piedosa é que não atribui nada para si, mas atribui tudo a Deus”. Com isso, negando a subsistência da alma humana com sua autonomia relativa perante Deus, não se podia senão negar o próprio valor da razão humana, especialmente no que diz respeito à relação entre o homem e Deus.
Foi em busca dessa subsistência que Descartes empreendeu sua “dúvida metódica” e nos aprisionou todos dentro de nossas próprias mentes. Como se sabe, ele empreendeu a resolução de duvidar de tudo aquilo que não fosse absolutamente claro e evidente para si, para tentar estabelecer um fundamento ao “ser” do homem, depois do rompimento da noção de “analogia do ser”, tão precisa, vinda de Aristóteles e tão bem reconstruída pela Alta Escolástica. A noção da analogia do ser foi rompida exatamente por pensamentos piedosos como o de São Boaventura, que não podiam admitir qualquer subsistência humana, ainda que autônoma apenas de modo relativo com relação a Deus.
Assim Descartes chegou ao tão famoso “cogito, ergo sum” (penso, logo existo). E, com isso, tudo aquilo que não era pensamento estava excluído da existência. Houve uma repartição profunda entre o pensar e o existir, já que o existir fora da mente a rigor não podia ser pensado. Por isso, para Descartes, Deus foi reduzido a um relojoeiro que pôs o universo em movimento e que agora já não interessa mais, ou interessa muito pouco.
Quero fazer um parêntese para lembrar que, séculos antes, Santo Agostinho já havia afirmado que o pensamento é indicativo da existência: ele tinha dito que, se penso, não posso não existir. Isso é claramente diferente de dizer “penso, logo existo”, como fez Descartes. Uma coisa é afirmar que meu pensamento é um sinal indiscutível da minha própria existência. Outra, muito diversa, é afirmar que somente o meu pensamento pode assegurar a existência.
Se somente aquilo que posso pensar de modo claro e distintamente me assegura a existência tout court, então jamais posso associar Deus e a existência, uma vez que Deus, certamente, é impensável para mim de forma clara e distinta. Quer dizer, se Deus, por conceito, supera a minha possibilidade de pensá-lo clara e distintamente, então não se pode afirmar a existência de Deus. Do que não posso pensar, não posso afirmar a existência, no interior do pensamento cartesiano.
A questão da prova racional de Deus passou, assim, a ser apenas uma questão de linguagem e conceito – veja-se Hume. E daí para que Kant pusesse em dúvida, de forma bem elaborada, a consistência das provas ontológicas da existência de Deus, foi um passinho.
Vamos lembrar: Kant negou que a existência fosse uma perfeição, um atributo que completasse o ser. Na verdade, toda existência fora do pensamento – fora do fenômeno – é irracional por definição, está além da possibilidade da cogitação válida. Está no reino encantado do númenon, incognoscível por definição. Tudo que nos resta é pensar nos fenômenos, para Kant.
Voltemos, então, à prova ontológica de Santo Anselmo: posso pensar em Deus como o ser mais perfeito, mais completo, mais pleno que se apresenta a mim. Ora, se posso pensar num ser assim perfeito, estou certo de que se ele existir será mais perfeito do que se ele não existir. Por isso, pensar em Deus é pensar num ser cuja existência é necessária, se impõe, já que um Deus não existente seria necessariamente menos perfeito do que um Deus efetivamente existente. Daí, Santo Anselmo conclui: Deus tem que existir.
Mas Kant refutou: a existência não é uma qualidade que aprimore o ser: na verdade, para Kant, a existência é algo para além da razão, é o contingente, o impensável, o inapreciável. E ele exemplifica, dizendo que, do ponto de vista estritamente racional, cem milhões de dólares conceituais valem exatamente a mesma coisa que cem milhões de dólares existentes. Portanto, não se pode simplesmente pensar num conceito e daí extrair a sua existência, como fez Santo Anselmo.
Estavam abertas as portas para o fideísmo, que pegou o próprio Kant: Deus é apenas um postulado da razão prática, é mais prático admitir que ele existe, mas nunca, jamais, saberemos de verdade, porque a própria possibilidade de saber ultrapassa a nossa capacidade de pensar.
Eu responderia a Kant que eu saberia exatamente a diferença entre um milhão de dólares conceituais e um milhão de dólares existentes – com o último, eu ficaria rico. Com o primeiro, eu fico apenas encantado.
A refutação de Kant pode ser melhor entendida se colocarmos, na demonstração ontológica de Santo Anselmo, qualquer termo absurdo no lugar que cabe a expressão Deus. Por exemplo, se eu disser: “posso pensar num unicórnio perfeito. Ora, um unicórnio perfeito que exista é mais perfeito do que um unicórnio perfeito que não exista. Logo, o unicórnio necessariamente existe”. E alega-se que semelhante absurdo repete-se também quando se coloca, no mesmo raciocínio, o nome de Deus.
Mas essa possibilidade já havia sido divisada por São Tomás, que refez a prova ontológica de uma maneira muito mais elaborada, nas suas cinco vias. Na verdade, em Deus a existência é um atributo necessário, não uma qualidade que se acrescenta de fora. Em Deus, existir e ser têm a mesma extensão. Deus é o ser necessário, vale dizer, enquanto cada um de nós existe acidentalmente, Deus existe por definição. Não há como pensar em Deus sem o atributo da existência – em Deus, ser e existir são sinônimos.
Para além de toda essa discussão filosófica profunda, eu fico com o mais simples. Em Deus, o existir é absoluto, diferentemente dos seres contingentes, em que o existir é também contingente. O que quero dizer é que, se eu deixar de existir, os seres humanos vão continuar existindo, o mundo continuará existindo, todo será o que sempre foi. Mas se Deus não existir, o que ocupará o lugar do absoluto? O absolutamente nada. Que ainda é um absoluto, de todo jeito. Vale dizer, retirando o absoluto da existência – o que só é possível como um acidente de linguagem – não há como “preencher o lugar” senão absolutizando-o, e lá está o absoluto que queríamos eliminar. Assim, negar o absoluto é afirmá-lo. Mas isso Hegel e Heidegger já haviam percebido.
A questão, então, para o pensamento ateísta moderno, volta para a questão do Deus pessoal. Não se trata de negar o absoluto, que é inegável, nem de destruir quilo que é necessariamente existente, porque, como vimos, para afirmar a existência de Deus essa negativa é autoafirmativa: negar a absolutamente a existência do absoluto é reafirmá-lo, e isso não está fora dos limites da razão.
Assim voltamos à questão já colocada por Jean Guitton, e que eu já citei em outro texto: trata-se de negar o absoluto pessoal, que é o Deus cristão. Transcrevo o texto de Jean Guitton:
“Essas duas palavras [Deus e o absoluto] designam uma realidade idêntica, mas evocam duas idéias diferentes. A palavra Absoluto traz ao nosso pensamento a Origem radical, o Princípio fundamental do ser e do espírito, o absolutamente Primeiro, Aquele que permanece eternamente, imperecível e sem origem, o Ser cuja vida sustenta todas as coisas. Nada mais, mesmo se isso não for pouco. Contudo, a idéia de Deus é ainda mais rica. Ela inclui tudo aquilo que se diz do Absoluto e mais alguma coisa.”
É por isso que Guitton afirma que “para mim, a existência do Absoluto não é o grande problema. Estando fora de dúvida a existência do Absoluto, a verdadeira questão é saber se Deus, em sentido estrito, existe ou não.”
Assim, fazendo essa distinção (que não é uma diferença) entre a noção filosófica de “absoluto” e a noção cristã de “Deus”, vemos que o Deus em que cremos, que nos é revelado contém todo o absoluto, mas o ultrapassa: ele se revela pessoa! Mas é certo que mesmo a pessoalidade de Deus pode ser conhecida, embora não sem confusão, pela razão. E de fato o é, embora sob discussões profundas, inclusive pela ciência especulativa moderna mais profunda. Não é à toa que vemos este assunto, o da pessoalidade de Deus, ser tão importante para a discussão científica que alguns deles reservam tempo precioso da sua pesquisa tão importante para escrever livros bem longos, visando afirmar a pessoalidade de Deus ou negá-la.
Mas, se pensarmos bem, veremos que, se Deus não é pessoa, tampouco nós o somos. E se a pessoalidade de Deus não pode ser conhecida, tampouco o conhecimento da nossa é garantido. Assim, as aventuras autoritárias e os grandes massacres humanos que ocorriam e ainda ocorrem dificilmente podem sofrer juízo de condenação. Mas isso é assunto para um outro texto.
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