terça-feira, 30 de março de 2010

Pio XII e a lenda negra

Antes de ontem foi domingo de ramos. Num domingo assim, em 1937, mais precisamente em 21 de março de 1937, foi lida a encíclica Mit Brennender Sorge (Com Enorme Preocupação), em todas as igrejas católicas da Alemanha. Escrita em alemão, e não no tradicional latim com que o Papa escreve suas encíclicas, foi a primeira condenação pública ao nazismo feita por um Estado, de forma oficial, bem como a primeira posição pública contra o nazismo tomada por uma religião organizada. Lida no interior da Alemanha, foi a maior manifestação pública em território alemão contra o regime que depois seria o que foi. Não há dubiedade nem hesitação nesse documento, escrito por Pio XI com a colaboração do então Cardeal Eugênio Pacelli, mais tarde Pio XII.
Não deve ter sido com pequena dor no coração que o Papa exortou os católicos de que o martírio era preferível à traição a Deus:
“Con presiones ocultas y manifiestas, con intimidaciones, con perspectivas de ventajas económicas, profesionales, cívicas o de otro género, la adhesión de los católicos a su fe —y singularmente la de algunas clases de funcionarios católicos— se halla sometida a una violencia tan ilegal como inhumana. Nos, con paterna emoción, sentimos y sufrimos profundamente con los que han pagado a tan caro precio su adhesión a Cristo y a la Iglesia; pero se ha llegado ya a tal punto, que está en juego el último fin y el más alto, la salvación, o la condenación; y en este caso, como único camino de salvación para el creyente, queda la senda de un generoso heroísmo. Cuando el tentador o el opresor se le acerque con las traidoras insinuaciones de que salga de la Iglesia, entonces no habrá más remedio que oponerle, aun a precio de los más graves sacrificios terrenos, la palabra del Salvador:
Apártate de mí, Satanás, porque está escrito: al Señor tu Dios adorarás y a El sólo darás culto (Mt 4,10; Lc 4,8). A la Iglesia, por el contrario, deberá dirigirle estas palabras: ¡Oh tú, que eres mi madre desde los días de mi infancia primera, mi fortaleza en la vida, mi abogada en la muerte, que la lengua se me pegue al paladar si yo, cediendo a terrenas lisonjas o amenazas, llegase a traicionar las promesas de mi bautismo! Finalmente, aquellos que se hicieron la ilusión de poder conciliar con el abandono exterior de la Iglesia la fidelidad interior a ella, adviertan la severa palabra del Señor: El que me negare delante de los hombres, será negado ante los ángeles de Dios (Lc 12,9).”

Após a leitura e publicação da encíclica, as perseguições anti-católicas tiveram lugar. Em maio de 1937, 1.100 padres e religiosos são lançados nas prisões do Reich. 304 sacerdotes católicos são deportados para Dachau em 1938. As organizações católicas são dissolvidas e as escolas confessionais interditadas.
Até a queda do regime nazista, cerca de onze mil sacerdotes católicos (quase metade do clero alemão dessa época) "foram atingidos por medidas punitivas, política ou religiosamente motivadas, pelo regime nazista", terminando muitas vezes nos campos de concentração.
Espalhou-se, bem mais tarde, uma lenda negra contra Pio XII, de que ele havia sido o Papa de Hitler. Grande parte desse ataque ao Vaticano pela sua suposta atuação na Segunda Guerra Mundial origina-se de uma peça de teatro ficcional, chamada O Vigário, escrita pelo alemão Rolf Hochhuth. Mais tarde houve a publicação do livro “O Papa de Hitler”, de John Cornwell. É um livro que engana desde a capa: como insinuação da proximidade entre Pio XII e Hitler, a capa retrata Eugênio Paccelli (que ainda não era Pio XII) visitando a Alemanha em 1929, quatro anos antes de Hitler chegar ao poder:
“A capa do livro de John Cornwell mostra o arcebispo Pacelli saindo de um edifício do governo alemão, escoltado por dois soldados. Essa visita oficial do então Núncio Apostólico na Alemanha, teve lugar em 1929, quatro anos antes que Hitler chegasse ao poder (em 30 de janeiro de 1933). Como Pacelli saiu da Alemanha em 1929 e nunca mais voltou, é enganoso e tendencioso o uso dessa fotografia” (Texto do jesuíta Peter Gumpel, historiador convidado pelo Vaticano para coordenar o processo de beatificação do Papa Pio XII, in “Pio XII, Hitler e os judeus”, publicado em PODER – Revista Brasileira de Questões Estratégicas, Ano I, nº 05, pg. 58, Brasília, Maio/Junho 2000).

O próprio John Cornwell, em entrevista ao The Economist em 2004, reconheceria que não dispunha de material para chegar às conclusões que chegou em seu livro: "As he admits, Hitler's Pope (1999), his biography of Pope Pius XII, lacked balance. “I would now argue,” he says, “in the light of the debates and evidence following Hitler's Pope, that Pius XII had so little scope of action that it is impossible to judge the motives for his silence during the war, while Rome was under the heel of Mussolini and later occupied by the Germans.”"

Como se isto tudo não fosse suficiente, ressalte-se que um rabino prefaciou elogiosamente um livro sobre Pio XII, conforme notícia publicada na ZENIT:
"O rabino Erich A. Silver, do Templo Beth David, em Cheshire, responsável pela melhoria das relações entre o Judaísmo e a Igreja Católica, explica as causas da sua mudança de opinião.
“Eu achava que ele poderia ter feito mais”, escreveu Silver no prólogo do livro. “Eu queria saber se realmente havia um colaborador, um antissemita passivo, enquanto milhões eram assassinados, alguns à vista do Vaticano.”
“Então – relata o rabino – em setembro de 2008, vim a Roma, convidado por Gary Krupp, para participar de um simpósio organizado por Pave The Way Foundation, no qual se estudaria o papel de Pio XII durante o Holocausto.”
Naquela ocasião, o rabino Silver conheceu Sor Marchione e outras 50 pessoas, entre rabinos, sacerdotes, estudiosos e jornalistas que haviam estudado e investigado a fundo sobre o tema.
Para Silver, aquele simpósio foi um choque, e assim escreve: “As provas que eu vi me convenceram de que sua única motivação (de Pio XII) foi salvar todos os judeus que ele pudesse”.
A imagem negativa de Pio XII, segundo Silver, começou com a publicação da peça “O Vigário”, com a difusão de mentiras e com o hábito de não investigar os fatos históricos.
Assim, muitas pessoas foram convertidas em “instrumento dos que detestavam Pio XII porque sempre foi anticomunista”, explica.
“Vale destacar que, depois do fim da guerra e até sua morte, os judeus o elogiaram continuamente, reconhecendo-o como salvador”, acrescenta.
E o rabino afirma: “Eu espero que a canonização de Pio XII possa acontecer sem problemas, para que não somente os católicos, mas o mundo inteiro possa conhecer o bem realizado por esse homem de Deus”.
Na parte final de sua introdução ao livro, Silver recorda que no 50º aniversário da morte de Pio XII, no sermão de Yom Kippur, “eu falei da necessidade de corrigir os erros do passado”.
“Depois de tudo, Eugenio Pacelli é um amigo especial de Deus, um santo; cabe a nós reconhecer este fato”, recorda.

Lembremo-nos, por fim, da conversão do Rabino-chefe da sinagoga de Roma durante a guerra, Israel Zolli, que pediu o batismo à Igreja Católica após a guerra, tendo adotado o nome cristão de “Eugênio”, em homenagem ao Papa Pio XII, Eugênio Paccelli. A história da conversão desse rabino certamente não ocorreria se Pio XII tivesse sido pró-Hitler e antissemita como inventam os propagadores da lenda negra. A história da relação de Israel Zolli com Pio XII na segunda guerra ocorreu assim (fonte: http://www.quadrante.com.br/Pages/servicos02.aspd=75&categoria=Historia&tubcategoria=Espiritualidade)21

“Enquanto os EUA, o Reino Unido e outros países negavam a entrada de refugiados judeus durante a Guerra, o Vaticano emitia dezenas de milhares de documentos falsos para permitir que judeus se passassem por cristãos, escapando assim dos nazistas. E ainda há mais. A ajuda financeira de Pio XII aos judeus foi bem substancial. Lichten, Lapide e outros cronistas judeus da época mencionam milhões de dólares, e vale lembrar que o dólar valia bem mais do que hoje.

Em fins de 1943, Mussolini, que nunca foi muito amigo dos papas, foi deposto pelos italianos, mas Hitler, temendo que a Itália negociasse a paz com os aliados separadamente, invadiu o país, assumiu o controle e recolocou Mussolini no poder como um testa-de-ferro. Foi neste momento em que os judeus de Roma – os que o Papa tinha condições de ajudar mais diretamente – começaram a ser ameaçados, que Pio XII mostrou realmente toda a sua valentia.

Lichten registra que, a 27 de setembro de 1943, um dos comandantes nazistas exigiu que a comunidade judaica de Roma lhe entregasse cem libras de ouro (cerca de 45 kg) dentro de trinta e seis horas; caso contrário, trezentos judeus seriam feitos prisioneiros. Após conseguir levantar apenas setenta libras, o Conselho da Comunidade Judaica voltou-se para o Vaticano.

“Nas suas memórias, o então Rabino-chefe de Roma, Israel Zolli, escreve que foi enviado ao Vaticano, onde, conforme se combinou previamente, seria recebido como um «engenheiro» chamado para verificar um problema de construção, a fim de que a Gestapo não o barrasse. Foi atendido pelo Tesoureiro e pelo Secretário de Estado, que lhe disseram que o Santo Padre pessoalmente dera ordens para cobrir a diferença com vasos de ouro tirados do Tesouro”
Depois da guerra, Zolli tornou-se católico e, para homenagear o Papa pelos seus feitos em favor dos judeus e pelo papel que teve na sua conversão, escolheu o nome de Eugenio como nome de batismo (lembremos que Pio XII se chamava Eugenio Pacelli antes da eleição). Zolli enfatizou que a sua conversão se deveu a motivos teológicos, o que seguramente era verdade, mas o fato de o Papa ter trabalhado tanto em beneficio dos judeus sem dúvida o levou a procurar conhecer mais a fundo as verdades do cristianismo.

“Quando Zolli se fez católico em 1945 e adotou o nome de batismo de Pio XII, Eugenio, muitos judeus romanos acreditaram que a sua conversão era um ato de agradecimento pelo auxilio aos judeus refugiados durante os tempos de guerra e, não obstante as seguidas negações, muitos ainda são dessa opinião. Assim, o rabino Barry Dov Schwartz escreveu no periódico Conservative Judaisme, no verão de 1964: «Muitos judeus converteram-se depois da guerra, como um ato de gratidão, àquela instituição que salvou suas vidas»”

A lenda negra parece, portanto, completamente falsa.

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