Vamos prosseguir com o resumo da Veritatis Splendor, Capítulo II, Item I, que trata da relação entre a liberdade e a lei. É um tema bastante interessante, pela sua abordagem, para nós, juristas, e para as pessoas e boa vontade em geral.
O Gênesis mostra a advertência divina de evitar o fruto da árvore da ciência do bem e do mal. Com isso, Deus se reserva o poder de decidir sobre o bem e o mal. A liberdade do homem é ampla, mas não ilimitada. Detém-se no ponto em que aceita a bondade de Deus e sua proposta de amor consubstanciada no mandamentos.
Não há conflito, mas complementariedade entre a lei de Deus e a liberdade humana. As correntes modernas, que veem a liberdade humana como poder de criar valores, estabeleceram artificialmente este conflito, colocando a liberdade acima da verdade. Influíram também na teologia católica, que foi chamada a uma profunda revisão do papel da razão e da fé na individuação das normas relativas ao plano da relação imanente entre o sujeito, o outro e as coisas.
Há aspectos positivos nesse desenvolvimento, na linha da melhor tradição católica. Favorecer o diálogo com a cultura moderna, realçar o caráter racional e comunicável das normas morais pertencentes à lei moral natural e o caráter interior (dependente do reconhecimento racional e da adesão da consciência) das exigências éticas da lei natural.
Houve, porém, um rompimento entre razão humana e sabedoria divina, que, no estado atual, decaído, torna necessária a revelação até mesmo para o reconhecimento claro da lei natural e suas verdades. Há quem chegue a defender, sem se dar contra desse rompimento, que, na ordenação da vida deste mundo, o homem daria a si próprio a lei, da qual Deus não seria autor, apenas participaria por ter dado ao homem mandato legislativo original e total. Essa posição nega as escrituras, que declaram Deus como autor da moral natural, da qual o homem participa com sua razão.
A distinção entre ordem ética temporal e ordem salvífica, feita por alguns, é contrária à doutrina católica. Também a negativa de que haja um conteúdo moral específico, determinado, universal e perene na Revelação. Reconhece apenas “exortações”, que caberia ao homem preencher em cada situação histórica. Assim, o “bem humano” é posto fora da Igreja e do seu magistério, por serem considerados como irrelevantes para a salvação. São teses incompatíveis com a doutrina católica.
É necessário reintegrar as noções fundamentais da liberdade humana e da lei moral, com suas relações profundas e interiores, respeitando a racionalidade humana e o patrimônio cristão, sem desprezar as novas reflexões, naquilo que forem válidas.
O homem está entregue à sua própria decisão (Eclo 15,14).
A busca e a adesão ao Criador foi deixada à decisão humana, que tem poder sobre si mesmo. Esse é o aspecto da realeza e excelência do espírito humano.
Governar o mundo é tarefa que dá ao homem grande autonomia, a autonomia das realidades terrenas, cujas leis e valores próprios o homem vai gradualmente descobrindo, utilizando e organizando.
O cuidado do homem por si mesmo envolve edificar-se na perfeição, desenvolvendo e consolidando livremente sua semelhança divina. Mas há, no entanto, um falso conceito de autonomia das coisas terrenas e do autogoverno humano, que é a ideia de usar as coisas e guiar-se sem ordenar-se e ordená-las ao Criador. Isto tem, em última instância, um caráter ateu.
A justa autonomia do homem não exclui seu fundamento na lei eterna, que é a própria sabedoria divina, da qual o homem participa pela luz da inteligência infundida em nós por Deus, não para que o homem seja criador de normas morais, mas para que seja fonte e causa dos próprios atos deliberados. Negar a participação da razão prática humana na sabedoria divina, ou dar-lhe liberdade criadora das normas morais, seria a morte da verdadeira liberdade. Comer a fruta “do bem e do mal”.
A liberdade verdadeira, a verdadeira autonomia, é a compenetração entre a liberdade humana e a lei de Deus. Não há, aí, heteronomia, porque não se nega a utodeterminação do homem, nem se lhe impõem normas estranhas ao seu bem.
Há, isso sim, uma “teonomia participada”, participação da razão e da vontade humanas na sabedoria divina. A “ciência” do bem e do mal é original e propriamente de Deus, mas, participando dela pela luz da razão e pela Revelação, a liberdade se submete à verdade da criação. A liberdade da pessoa humana é imagem de Deus, mas Deus é três vezes santo, e transcende, é sempre maior!
A verdadeira liberdade consiste em proceder conforme a consciência para a livre adesão ao seu fim, o bem supremo, sem impulsos cegos ou coação externa, pela livre escolha do fim e procura honesta dos meios.
Buscando Deus, que “só é bom”, o homem deve “fazer o bem e evitar o mal”, mas para distingui-los usa a razão natural, reflexo, no homem, do esplendor de Deus. A luz da razão natural, pela qual distinguimos, nada mais é do que um vestígio da luz divina em n[os,. A lei chama-se natural porque se refere à razão, que é própria da natureza humana.
O homem participa da lei divina, conhecendo a verdade imutável do desígnio de sabedoria e amor com os quais Deus ordena, dirige e governa o universo e a comunidade humana.
A lei eterna de Deus, para Agostinho, é a “razão ou a vontade de Deus, que manda observar a ordem natural e proíbe alterá-la. Para Tomás, é a “razão da divina sabedoria, que conduz tudo ao devido fim.”. É a providência, Deus que ama, cuida e conduz fundamentalmente toda a criação. Quanto ao homem, não é guiado “de fora”, por leis da natureza física, mas “de dentro”, pela razão que indica a justa direção do livre agir. O cuidado do homem por si, pelo mundo e pelo outro é participação na providência. A lei natural, neste contexto, é expressão humana, racional, da lei eterna de Ddeus, pela inclinação natural para o ato e fim devidos.
A igreja sempre sublinhou a “essencial subordinação da lei humana e da razão à sabedoria de Deus e à sua lei.”. A lei natural está, assim, inscrita no coração de todos os homens, na forma da razão humana que nos ordena a fazer o bem e intima a não pecar. A inscrição tem força de lei por derivar da razão mais alta, a divina. A lei natural é, portanto, a própria lei eterna, inscrita nos seres racionais que os inclina para o ato e o fim que lhes convém. E a lei eterna é a lei do Criador.
O discernimento do bem e do mal ocorre, assim, pela razão iluminada pela revelação. O dom da lei a Israel é sial de eleição, de aliança e garantia da bênção divina. O povo que a recebeu é chamado a reconhecer e louvar esse dom.
Esse dom é acolhido e guardado com amor pela Igreja, é a Revelação. Cabe à Igreja respeitá-lo e interpretá-lo autenticamente. Também recebemos, como dom, a nova lei, que se cumpre em jesus cristo e é uma lei interior, de perfeição e liberdade, inscrita nos corações e acompanhada pela Graça. É lei em dois sentidos: 1) é o próprio Espírito Santo que, habitando na alma, ilumina a inteligência para as coisas a serem cumpridas e inclina a agir com retidão, como também 2) pode designar o efeito próprio do Espírito Santo, ou seja, a fé que atua pela caridade. Esta ensina interiormente sobre as coisas que devemos fazer e nos inclina a agir.
As distinções clássicas entre lei antiga e lei nova, entre lei positiva e lei natural, são apenas didáticas e dizem respeito tão-somente à própria lei, não ao seu autor, que é o mesmo Deus, e o destinatário, que é o homem. São diversas maneiras pelo qual o mesmo Deus, por seu desígnio amoroso e eterno, predestina os homens a serem conformes a Cristo (Rom 8, 29). Não há, portanto, oposição nessas classificações, mas facetas de um único caminho para a liberdade.
O que a lei ordena está inscrito em todos os corações (Rom 2, 15).
O debate sobre o suposto conflito entre natureza e liberdade sempre acompanhou a história da reflexão moral, mas subiu de tom no Renascimento e na Reforma, como se pode deduzir dos ensinamentos do Concílio de Trento. Hoje, esse conflito tornou-se mais agudo, com a tendência de ver uma relação dialética entre os dois termos como uma característica estrutural da história humana, superando-se a visão da época imediatamente anterior – a tendência a buscar submeter a natureza ao homem.
Hoje, há a tendência de reduzir tudo a dados sensíveis e empíricos, tratados como se fossem os únicos fatores realmente decisivos para a realidade humana. Assim,os comportamentos morais, hoje, tendem a ser tratados como se fossem observáveis ou explicáveis por meros mecanismos psicossociais. Alguns estudiosos da ética tendem a reduzir seus estudos a isto.
Outros se mantêm sensíveis ao prestígio da liberdade, mas sempre mantendo a sua tensão com a natureza, visando seu progressivo domínio. Surgem, então, duas correntes, para as quais:
1)A natureza é simples material ao dispor do agir e do poder humano, a ser transformada e superada pela liberdade, pois é seu limite e negação.
2)a promoção ilimitada do poder e liberdade humanos constituiria o lastro dos valores sociais, econômicos, culturais e morais. A natureza, para estes, seria apenas aquilo que se coloca fora da liberdade. Por exemplo, o corpo humano seria um simples “dado” a ser “construído”, para só então transformar-se em obra e produto da liberdade. A natureza humana seria um mero material biológico ou social disponível. Ara estes, no limite, nem sequer existiria uma “natureza”, mas o homem seria, por si mesmo, o seu próprio projeto de existência. O homem seria, portanto, a sua própria liberdade.
Outros denunciam a igreja de manter posições “fisicistas” ou “naturalistas” no campo moral. Alegam que a moral cristã teria, mediante uma análise superficial, atribuído a alguns comportamentos humanos contingentes uma base permanente e imutável para fundamentar normas morais que se apresentam como válidas universalmente. As acusações envolvem, por exemplo, a ética sexual, na qual se diz que a Igreja tomou por perene o que é cultural, como a condenação às relações homossexuais e á contracepção artificial. Dizem que a racionalidade do homem traz como consequência o dever de decidir livremente o sentido dos seus próprios comportamentos. Deus esperaria do homem racional, nesse quadro, uma construção autônoma da própria vida. Para estes, os mecanismos de comportamento típicos do homem proveriam apenas inclinações, mas não poderiam determinar a avaliação moral dos atos humanos, tão complexos do ponto de vista das situações concretas em que se inserem.
Urge recuperar, portanto, a reta relação entre liberdade e natureza, notadamente quanto ao que respeita ao corpo humano.
A absolutização da liberdade coloca o corpo humano como um dado bruto, materialmente necessário, mas extrínseco à pessoa. Seus dinamismos seriam apenas “bens físicos”, chamados até mesmo de “pré-morais” por alguns. Para estes, aludir ao corpo para buscar indicações racionais sobre a moral seria “biologismo” ou “fisicismo”, erros que denunciam como nefastos à moral e que veem como praticados pela Igreja na elaboração da sua própria moral. Não enxergam, no entanto, a divisão que estão introduzindo na estrutura da pessoa humana.
Essas reflexões contradizem, como é óbvio, o ensinamento da Igreja, que vê a verdade do homem como unitária por essência, e a alma racional, “per se et essencialiter”, como forma do corpo e princípio de unidade da pessoa. Não só o corpo participa, juntamente com a alma, da glória da ressurreição, como as faculdades corpóreas e sensíveis integram essencialmente o ser humano. Somente na unidade corpo-alma somos sujeitos dos nossos atos morais. A pessoa descobre no seu corpo a expressão e a promessa do dom de si. Na dignidade integral da pessoa humana há uma estrutura espiritual e corpórea determinada, não redutível a uma liberdade autoprojetada, mas vinculada à dignidade essencial da pessoa vista como fim, nunca como meio. Isso também implica o respeito a alguns bens fundamentais, sem os quais se cai no relativismo e na arbitrariedade.
Não se pode separar o ato moral das dimensões corpóreas do seu exercício. Este é um erro antigo, incompatível com os ensinamentos da igreja. Comportamentos como os arrolados por São Paulo (imorais, idólatras, efeminados, sodomitas, ladrões, avarentos e salteadores, 1 Cor 6, 9-10) também foram relacionados pelo Concílio de Trento como pecados mortais, e são inseparáveis da dimensão estritamente humana da liberdade. Na pessoa, o corpo e a alma são inseparáveis: salvam-se ou perdem-se juntos.
A lei natural refere-se, portanto, à pessoa na unidade de corpo e alma, de inclinações espirituais e biológicas. A lei moral natural exprime e prescreve as finalidades, os direitos e deveres que se fundamentam sobre a natureza corporal e espiritual da pessoa humana. Não se trata de uma tendência normativa biologicista, mas ordem racional posta pelo Criador e discernível pelo homem. Assim, por exemplo, o dever de respeitar a vida humana vem da dignidade própria da pessoa, e não simplesmente da inclinação natural para conservar a própria vida física. Se é ilícito matar, pode não ser ilícito oferecer a própria vida por amor ao próximo ou em testemunho da verdade. Somente na referência à totalidade unificada as inclinações naturais adquirem dimensão moral.
A Igreja rejeita as manipulações da corporeidade que alteram o seu significado humano, e guia o homem ao amor de Deus pela verdade. A lei natural assim entendida não deixa espaço para a oposição natureza x liberdade.
Este suposto conflito entre natureza e liberdade repercute sobre alguns aspectos específicos da lei natural, sobretudo a universalidade e a imutabilidade. Somente na verdade que se imprime no coração do homem pela luz da razão é que se pode reconhecer a lei natural. E aí mesmo, na verdade, está a universalidade. Inscrita na natureza racional da pessoa, impõe-se a todo ser dotado de razão e presente na história. Para aperfeiçoar-se em sua ordem específica, a pessoa deve fazer o bem e evitar o mal, vigiando pela conservação da vida, pelo desenvolvimento das riquezas do mundo sensível, pela promoção da vida social, na busca do bom, do belo e do verdadeiro.
A cisão entre liberdade e natureza humana obscurece a percepção da universalidade da lei moral por parte da razão. Mas a lei natural é universal na expressão da dignidade e põe a base dos direitos e deveres fundamentais, abraçando a individualidade de cada ser humano. Cada ato humano deve atestar a universalidade do verdadeiro bem. O bem comum é edificado pela submissão à lei universal, e destruído pela sua ignorância ou menosprezo.
Os homens de todas as épocas e lugares foram criados para a mesma vocação e destino divinos. Assim, é justo e sempre bom servir a Deus, prestar-lhe culto, honrar os próprios pais. Os preceitos positivos obrigam universalmente e são imutáveis.
Os preceitos negativos também são universalmente válidos, vedam algumas ações semper et pro semper, sem exceções. A escolha de tais comportamentos nunca é compatível com a bondade da vontade da pessoa que age, sua vocação à vida divina e à comunhão com o próximo. É proibido a todos e para sempre ofender tais preceitos.
Isso não significa que os preceitos negativos sejam mais importantes que os positivos. Os positivos não têm limite superior, mas têm limite inferior. De qualquer modo, implementá-los crescentemente depende de uma série de circunstâncias imprevisíveis. Mas os mandamentos negativos não podem, em nenhuma circunstância, ser resposta adequada. Por isso, se em determinada situação o homem pode ser impedido de fazer uma ação boa, jamais pode consentir, mesmo sob pena de morte, com o mal.
O homem moderno questiona se é possível considerar como válidas universalmente certas normas estabelecidas no passado, quando se ignorava o progresso da humanidade. O certo é que, se o homem existe na cultura, ele não se esgota nela. O progresso das culturas demonstra que algo no homem transcende a cultura. Trata-se da natureza humana, medida e libertação do homem na cultura. Somente os elementos estruturais, inclusive corpóreos, permanentes do homem tornariam compreensível a referência de Jesus a “princípios” (como no caso da vedação ao divórcio) ali onde a cultura local tinha deformado o sentido original de algumas normas morais. Sob transformações, há permanência no Cristo. Necessário, no entanto, encontrar a formulação mais adequada do seu núcleo, do seu conteúdo perene, de modo a tornar tais verdades evidentes em todos os tempos e contextos.
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