sexta-feira, 26 de março de 2010

Lendo um livro de "teologia contemporânea"

Eu olhava o cume da bela serra e chorava. O luar refletia na pedra, formando uma linha branca, como uma onda congelada, e o resto da serra era de um azul profundo. Do meu lugar, eu via a serra inteira, de baixo para cima, e a pequena e antiga igreja que um dia reinou soberana naquele lugar. Ela queimava. Os últimos fiéis saíam em correria, mas à distância eu não ouvia as suas vozes. Somente podia contemplar a cena e chorar. As chamas elevavam-se amareladas, contrastando com o azulado do luar refletido no esbranquiçado das rochas. Os animais que acompanharam aquela que agora se revelava como a última procissão até aquela igrejinha fugiam assustados, alguns com os ornamentos também em chamas. E assim aquela que era a última igrejinha se consumiu até as fundações, ao longo da noite, enquanto, à distância, eu chorava.

Acordei, era apenas um sonho ruim de uma noite inquieta. Mas acordei pensando em quantos lugares foram cristãos um dia e já não o são. Da pentarquia das igrejas apostólicas – Jerusalém, Antioquia, Roma, Constantinopla e Alexandria, apenas Roma permanece como uma força num país que ainda é majoritariamente cristão. As outras são apenas pálidos reflexos da glória que um dia tiveram. É bem fácil que um lugar deixe de ser cristão: tantos lugares deixaram! É certo que a Igreja não perecerá, pois há a promessa de Jesus, registrada no Evangelho de Mateus (Mt 16,18). Mas certamente a promessa não envolve a perda de populações inteiras para outras religiões ou para o mero paganismo. Ocorreu nesses lugares que citei: ocorreu na terra de Santo Agostinho, de Santo Antão, ocorreu na terra de Jesus. Há quem espere que ocorra aqui mesmo, em nossa terra.

O meu sonho ocorreu depois que adormeci lendo um livro da Vozes, um livro de um autor conhecido sobre a teologia do pecado. Não consigo entender este fascínio de certa intelectualidade brasileira, notadamente a franciscana, por Marx. Logo no começo do livro, o autor insiste sobre uma certa concepção “socioestrutural” do pecado, alega que se Marx vivesse hoje escreveria um marxismo diferente e tenta explicar a responsabilidade de Deus sobre o mal que há no mundo. Isso tudo me induziu ao sonho que descrevi acima, a pequena igreja queimando sobre o cume de uma serra, sob a luz do luar, e consumindo os últimos cristãos de um lugar de cristianismo antigo.

Quanto à participação de Deus na origem do mal, lembrei-me de um velho professor que um dia me ensinou que o cristão deveria renunciar completamente ao mal, porque optara completamente por Deus. Mas se Deus é a origem e fonte do mal, como quer esse autor (citando Teillard de Chardin e outros teólogos de igual monta), então renunciar ao mal seria, de certa forma, renunciar a um aspecto divino, e já não faz sentido. Trata-se, para ele, de corrigir a sociedade, de “reler o cristianismo a partir do pobre, do oprimido, do velho abandonado, do miserável”, já que “a pobreza é o caminho apontado por Jesus para a bem-aventurança”.

Também isso me soa profundamente contraditório. Se a pobreza é o caminho da bem-aventurança, então ela não deve ser denunciada como resultado da opressão, mas buscada como fonte de felicidade. Deveríamos distinguir entre pobreza, esta evangélica, e miséria, esta a ser denunciada e combatida como fruto do pecado. O pecado, por outro lado, se tem uma inegável dimensão social – facilmente constatável por quem visita uma favela ou um presídio – é uma realidade estritamente pessoal em sua origem, senão não é redimível, nem gera responsabilidade. Mas quem sou eu para discutir com um intelectual do porte do autor desse livro? Sou só um cristão que chora em sonho sua capelinha incendiada.

A contradição, temo dizer, me parece patente. Se o pecado é essencialmente “socioestrutural”, e os pecadores são basicamente os ricos, teríamos que concluir, à luz do evangelho que nos diz que Jesus veio “não para os justos, mas para os pecadores”, que Jesus veio para os ricos. Mas, repito, essas contradições que eu enxergo decorrem, talvez, da simplicidade da minha fé, em contraste com aquilo que o autor do livro diz da sua própria fé, classificado-a de “esclarecida”. Quer dizer, se ele é esclarecido e pensa daquele jeito, eu, que não concordo com ele nem ostento os muitos títulos eclesiais que ele ostenta, devo ser um obscurantista, um desinformado. Releio a passagem de Mt 11, 25: “Eu te louvo, Pai santo, porque ocultaste estas coisas dos sábios e poderosos e as revelastes aos pequeninos”. Senhor, faz de mim um pequenino, para que eu possa compreender as coisas que revelas, (mesmo que doam-me o coração, como as que li neste livro), se realmente veem de ti.

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