“Todas as coisas estão cheias de deuses” (Tales de Mileto).
Alguém já atribuiu a Chesterton a colocação de que “quando um homem deixa de acreditar em Deus, não é que ele passe a não acreditar em nada; ele passa a acreditar em tudo.” Na verdade, a frase não é de Chesterton, ou pelo menos não da forma que costuma ser publicada na internet. Mas não é menos verdade que Chesterton afirmou que o primeiro efeito de não se acreditar em Deus é perder o senso comum e não ver as coisas como elas são. O site Chesterton.org, da “The American Chesterton Society”, atribui a citação a uma transliteração mal feita de uma passagem do livro “A Incredulidade do Padre Brown”, no capítulo 3, entitulado “O Oráculo do Cão”: no trecho da obra de Chesterton, na verdade ele diz: “'It's the first effect of not believing in God that you lose your common sense and can't see things as they are. Anything that anybody talks about, and says there's a good deal in it, extends itself indefinitely like a vista in a nightmare. And a dog is an omen, and a cat is a mystery, and a pig is a mascot, and a beetle is a scarab, calling up all the menagerie of polytheism from Egypt and old India; Dog Anubis and great green-- eyed Pasht and all the holy howling Bulls of Bashan; reeling back to the bestial gods of the beginning, escaping into elephants and snakes and crocodiles; and all because you are frightened of four words: 'He was made Man'.”
Neste ponto, poderíamos ressaltar uma primeira impressão curiosa: a própria expressão “idade média”, que usamos tão normalmente no dia-a-dia, é uma expressão preconceituosa e falsa. Transmite a impressão de um tempo obscuro, em que o homem não pensava, e que separou uma antiguidade greco-romana brilhante de uma era moderna iluminada, como um grande buraco de irracionalismo, um furo de mil anos no pensamento humano. “A origem da expressão Idade Média (media aetas), criada pelos humanistas do renascimento, já implica um juízo de valor, referindo-se ao hiato de civilização que é necessário saltar para se reencontrar a civilização antiga, da qual os humanistas se proclamavam herdeiros. Esse fechamento de um parêntese de quase mil anos de cultura ocidental (séculos VI-XV) foi reforçado pelos primeiros historiadores modernos da filosofia, que consideraram a linha da evolução filosófica interrompida pela teologia medieval e passavam assim diretamente do neoplatonismo a Descartes. Mas o enorme progresso da historiografia do século XIX forçou o abandono desse esquema simplista.” (Vaz, Henrique C. De Lima, Raízes da Modernidade. São Paulo, ed. Loyola, 2002. Página 18).
Nesse tempo “medievo”, para o senso comum contemporâneo, o prazer das pessoas era fritar bruxas nas praças, sob o olhar maldoso de um cura alucinado e de um senhor feudal lascivo. Nada mais falso. Como C. S. Lewis demonstra muito bem, houve muito pouca bruxaria durante a chamada “idade média”: os séculos XVI e XVII (ou seja, o início da era moderna) foram a época de esplendor dessa prática. Lewis considera, inclusive, como indistinguível, no limite, a busca do bruxo da busca do cientista: poder sobre a natureza. Ele diz: “É possível encontrar até mesmo quem escreva sobre o século XVI dizendo que a bruxaria era então um resquício medieval e que a ciência entrava em cena para expulsá-la. Os que estudaram o período certamente são mais dignos de confiança. Havia muito pouca bruxaria durante a idade média: os séculos XVI e XVII foram a época de esplendor dessa prática. O grande esforço da bruxaria e o grande esforço científico são irmãos gêmeos: um deles era doente e morreu, o outro era forte e sobreviveu. Mas eram gêmeos. Nasceram do mesmo impulso.” (Lewis, C. S., A Abolição do Homem. São Paulo, Martins Fontes, 2005. Página 72).
Curioso também notar que é atribuída a Arthur Clarke, um grande escritor de ficção científica – ele próprio também um cientista – a frase “toda tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia”. Essa é uma das citações que proliferam na internet, como aquela atribuída a Chesterton. Não sei se é de Clarke, mas revela uma verdade profunda. No limite, ela revela que a magia e a ciência, tão indistintos nos seus primórdios, são também indistintos nos seus fins: dominar a natureza. Ocorre que nesse processo de dominar a natureza a grande busca tornou-se a busca de dominar o homem. Estabelecendo o poder sobre a natureza, buscamos descobrir quais os verdadeiros poderes que a natureza exerce sobre o homem, para que possamos exercê-los nós mesmos: o homem que interroga assim a natureza quer descobrir, no fim, como dominar o outro homem.
Trata-se, portanto, de romper uma suposta submissão do homem a um deus judaico-cristão que seria ilusório, para estabelecer a verdadeira liberdade humana: a de viver sem deuses, ou a de ser seu próprio deus. Curiosamente, no âmbito da própria teologia do século XX, o programa científico foi usado como interdito à fé cristã. Rudolf Bultmann, talvez o teólogo mais citado do nosso século, empreendeu o seu “programa de demitologização” do cristianismo (consistente em buscar o “Jesus histórico” cientificamente factível mas pouquíssimo consistente, subjacente ao “Cristo da fé” mitologizado) utilizando um interdito baseado no desenvolvimento tecnológico: “não se pode usar a luz elétrica e o rádio, servir-se da medicina moderna em caso de enfermidade, e ao mesmo tempo crer no mundo de espíritos e milagres do Novo Testamento”. (Kerygma und Mythos). Esse projeto científico, chegando ao ponto de interpelar a própria fé, parece, na verdade, um projeto de descobrir quais são as verdadeiras forças que conduzem o homem, ou para concluir que a vontade humana é de fato ilusória perante essas forças, mas na verdade é um projeto para dominar a vontade do outro, transformando-o em objeto.
Na verdade, o conceito de “um poder que supera e subjuga a vontade humana” é exatamente a definição filosófica para o conceito de “deus” na cultura helênica, como ensina Etienne Gilson. Ele diz que “um grego de espírito religioso sentia-se um instrumento nas mãos de incontáveis poderes divinos, aos quais não apenas seus atos mas também os seus pensamentos se submetiam em última análise.” (Deus e a Filosofia. Lisboa, Edições 70, 2002, página 23). Esses deuses eram, portanto, forças vivas personificadas que são a causa real de todos os acontecimentos, inclusive – e principalmente – aqueles que atribuímos (por mera ilusão, neste contexto) à nossa vontade. Ele prossegue, explicando que, para esses gregos, “a primeira característica desses poderes divinos é a vida. Seja o que for, um deus grego nunca é uma coisa inanimada: é um ser vivo, como os próprios homens o são, com a única diferença de que, enquanto a vida humana está destinada a chegar um dia ao fim, os deuses gregos nunca morrem. (...) Tomemos, quase ao acaso, quaisquer das fatalidades permanentes que influenciam a vida dos homens: é sempre um deus.” (idem, pág. 24). Ele cita, como deuses, o céu, a terra, os oceanos, mas também o sono, a morte, o medo, a discórdia, além das divindades benevolentes como a justiça, o amor, as musas e as cárites. “Em suma, todos os poderes imortalmente vivos que regulam a vida dos mortais”. (Idem, ibidem).
Para o cientificismo, tais forças seriam impessoais, disponíveis, ademais, para serem controladas por quem tivesse o domínio técnico sobre elas. Na verdade, as duas coisas são bastante conexas: descobrir quais são as verdadeiras forças naturais que informam a vontade humana implica em controlá-las, e portanto, controlar a vontade humana. Digamos que eu descobrisse que há, na verdade, uma “bactéria do eros” que, uma vez contaminando alguém, leva-o a apaixonar-se por outrem. Com essa descoberta, duas coisas estariam estabelecidas: uma, a de na verdade o ato aparente livre de envolver-se com outro é, na verdade, apenas o sintoma incontrolável de uma doença de origem bacteriana, e que, portanto, não tem nada a ver com alguma coisa como uma vontade humana; a segunda, a de que, uma vez que eu isolasse essa bactéria, seria capaz de manipular a sexualidade alheia de conformidade com meus próprios interesses.
Como esse prometeu desacorrentado, a busca é muito mais factual e muito menos inocente do que parece: mais do que ser deus para si mesmo, o homem quer ser deus para o outro. É esse o objetivo, me parece, do ateísmo militante: sempre me pareceu uma grande contradição que alguém estivesse absolutamente convencido da inexistência do Absoluto e se desse ao trabalho de ser proselitista. Se eu estivesse convencido da inexistência de Deus a ponto de ser um ateu militante, eu necessariamente estaria me lixando para o outro, salvo se para dominá-lo em meu favor.
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