Existe um pensamento muito comum, nos meios acadêmicos jurídicos, que defende que a laicidade do Estado implica uma neutralidade estatal perante o fenômeno religioso, neutralidade esta que, para tal corrente, tem seu ideal no silêncio: a expressão da religiosidade humana seria um fenômeno perante o qual o Estado deveria manter absoluto silêncio ou indiferença, vedada qualquer manifestação estatal nesta área.
Tal posição doutrinária parte de uma interpretação isolada e isolante do art. 19 da Constituição Federal, que diz:
Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.
Ora, sabe-se que a Constituição é um conjunto, não se interpreta às tiras, não se pode pinçar um artigo e elevá-lo a um grau absoluto que ele não tem, se avaliado em conjunto com o corpo constitucional.
Vale dizer, a vedação constitucional à União, Estados, Distrito Federal e Municípios de estabelecer cultos, subvencioná-los, embaraçar o funcionamento ou estabelecer relações de dependência ou aliança em um limite intrínseco, no próprio artigo: a colaboração de interesse público.
Essa colaboração de interesse público deve ser avaliada, portanto, com os critérios da própria Constituição, vale dizer, de uma Constituição que se declara promulgada “sob a proteção de Deus” no seu preâmbulo, que declara, portanto, relacionada não somente a Deus, mas a Deus pessoa, que pode proteger, e que, portanto, não é indiferente ao bem comum.
Não são poucos os incisos do artigo 5º da Constituição que tratam da liberdade de crença e consciência, inclusive especificamente da “proteção aos locais de culto e suas liturgias”. Vale dizer, se, por um lado, há um limite negativo na vedação, ao Estado em estabelecê-los, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles relação de dependência e aliança, por outro há o limite positivo consistente no dever, para o Estado, de proteger efetivamente os “locais de culto e suas liturgias” (art. 5º, inciso VI), bem como de prestar assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva (inciso VII).
Estabelecido o fato de que a relação do estado com o fenômeno religioso não é algo estritamente negativo – vale dizer, algo que tende a um horizonte de absoluta “neutralidade ideal”, mas, ao contrário, algo que demanda uma postura positiva do Estado como valor humano que deve ser positivamente protegido, incentivado e mesmo garantido, posso afirmar que, como em todas as atuações estatais, também aqui está em jogo o fim último do Estado, aquele consistente na promoção do bem comum.
Quando menciono o bem comum, estou falando de algo muito concreto: devido ao fato de que os homens têm vocação para viver em sociedade com os outros, eles possuem em comum um conjunto de bens a buscar e valores a defender. É a isso que chamo de “bem comum”. Se a pessoa é um fim em si mesma (e é exatamente isso que diz o art. 1º, inciso III da Constituição), a sociedade tem por finalidade promover, consolidar e desenvolver seu bem, no âmbito da convivência com outras pessoas - já que a noção de "pessoa" ultrapassa o conceito de "indivíduo" para abranger as diversas dimensões humanas, inclusive a que define a própria possibilidade de existência do bem comum, a dimensão relacional. A busca do bem comum permite à sociedade mobilizar a energia de todos os seus membros. Em um primeiro nível, o bem comum pode ser compreendido como o conjunto de condições que permite à pessoa ser sempre mais pessoa humana, sempre mais digna. Em segundo nível, o bem comum é tudo o que finaliza a ordem política e a própria sociedade. Bem de todos e de cada um em particular, exprime a dimensão comunitária do bem humano. A visão do bem comum, é certo, desenvolve-se com as próprias sociedades; na nossa, está positivamente vinculado aos conceitos constitucionais de pessoa, de justiça e de pluralismo.
Há, pois, uma espécie inegável de sindérese que se pode atribuir à formação da vontade estatal: um discernimento básico inegável que distingue o bem do mal, e que ultrapassa a positividade ascética. Quer dizer, o estado constitucional brasileiro não pode ser axiologicamente cego. No limite, diríamos, não pode tratar do mesmo jeito uma religião que se auto-declare – e se conduza como tal – dirigida à busca do bem, à promoção da religiosidade consentânea com o bem comum, com a dignidade da pessoa humana, que tenha uma história, um lastro litúrgico e cultual histórico e concreto a ser protegido nos termos do art. 5º, VI, da Constituição, com, por exemplo, uma religião que declaradamente se dedique a cultuar o mal, a promover a destruição, a ritualizar a morte e o conflito, a exploração e banalização da vida humana, da dignidade e da integridade do seu adepto e do outro. Ao se comportar com neutralidade perante uma religião assim, o Estado teria que conceder-lhe inclusive tratamento tributário vantajoso, aplicando-lhe a imunidade do art. 150, VI, b, fazendo com que, no fundo, toda a comunidade tivesse que suportar o peso de uma religião que promove o mal comum, que, no limite, contradiz o próprio sim que o Estado deve dizer aos valores do art. 1º da Carta Magna.
Estabelecido este limite, há ainda outras questões de cunho constitucional que sinalizam para a não-neutralidade do Estado perante o fenômeno religioso. A proteção aos locais de culto e às liturgias implica em vê-las positivamente, como fenômenos com os quais o Estado tem que se relacionar efetivamente para resguardar e proteger, não para turbar e repelir. O Estado nem pode subjugar, nem ser subjugado por uma religião, para que não tenhamos, por um lado, o “culto oficial ao deus imperador” à moda dos antigos impérios egípcio e romano, nem, por outro, a teocracia que é incompatível com a nossa tradição democrática. Mas, no campo entre esses dois polos, há toda uma matização a que não se pode ser cego.
Por isso, estabelecer como ideal a neutralidade absoluta do estado perante o fenômeno religioso é conduzir o a saudável laicidade do Estado a um laicismo – entendido como uma posição de repúdio a tudo o que envolve a expressão pública da dimensão religiosa do cidadão e dos grupos histórica e socialmente relevantes para a nossa sociedade - que não está explícito nem implícito na Constituição. Na verdade, tal laicismo também revela, por si mesmo, uma posição religiosa oculta, como num diálogo que mantive uma vez com um interlocutor, num auditório jurídico, debatendo sobre questões jurídicas, que me queria calar sob o fundamento de que, uma vez que sou publicamente alguém que tem uma opção religiosa pública, sou menos digno de me expressar sobre questões jurídicas abstratas, porque mantenho – segundo ele – pressupostos inconfessáveis na minha fala, motivados por tal opção. Respondi ao referido interlocutor:
- Você não pode me acusar de manter fundamentos religiosos ocultos na minha argumentação. Meus fundamentos religiosos são bem explícitos, estão na Bíblia, assim como ela é lida pela tradição da Igreja, e estão no Catecismo da Igreja Católica, que vende em todas as livrarias. Na verdade, as minhas convicções religiosas são muito menos ocultos que as suas, que eu não sei quais são!
“Eu não tenho convicções religiosas”, ele se defendeu. Mas quando eu retruquei que não ter convicções religiosas já é, claramente, uma convicção religiosa, ele me acusou de estar sofismando.
“Não estou, não.” Respondi. “Estou afirmando que, quando não se tem convicções religiosas, isso se dá ou porque você já examinou todas os credos, todas as religiões, e as achou todos igualmente importantes, não conseguindo se decidir por uma, ou se você acha que todas são igualmente desimportantes, e não acha nenhuma delas digna de sua escolha. Como você afirmou expressamente que as pessoas que têm convicções religiosas estariam sempre fechadas para os argumentos racionais por força das próprias convicções religiosas, quero crer que você se enquadra na segunda hipótese, quer dizer, acha todas as religiões igualmente desimportantes e indignas de você, além de opostas à razão. Porque, se achasse todas as religiões igualmente importantes a ponto de não conseguir optar por uma delas a partir de um discernimento racional, teria que concluir que qualquer argumento religioso, para você, seria mais importante do que qualquer argumento "racionalista" ou "positivo" (já que nenhum pensamento "racionalista" de discernimento, da sua parte, foi capaz de te levar a discernir entre religiões razoáveis e irrazoáveis e escolher, dentre elas, aquela que fosse mais razoável para você, vendo todas como acima de tal possibilidade). Portanto, considerando as religiões como todas igualmente importantes ou todas igualmente desimportantes, você tem, sim, uma posição religiosa, ainda que externa às próprias religiões e credos organizados, a posição de que todas são irrelevantes, ou até mesmo nocivas. Não consigo ver uma posição mais abertamente religiosa do que a sua. Mas, me perdoe, me parece menos honesta que a minha”.
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