sexta-feira, 5 de março de 2010

O aborto, o ser humano e a dignidade da pessoa humana

Relendo hoje alguns livros de direito civil, fiquei um pouco decepcionado com a noção de pessoa que os nossos doutrinadores trazem. Um conceito tão rico como “pessoa” é tratado como simples sinônimo de “sujeito de direito”. Vale dizer, os nossos doutrinadores de direito civil limitam-se a afirmar que “pessoa” é “sujeito de direito”.
Os civilistas “do batente diário”, quer dizer, aqueles cujos livros estão nas estantes dos operadores jurídicos – longe das discussões acadêmicas mais profundas – limitam-se a fazer o seguinte raciocínio: o art. 1º do código civil diz que toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil. Logo, pessoa é aquele ente que é capaz de direitos e deveres na ordem civil.
Isso não é verdade. Há entes capazes de direitos e deveres na ordem civil que não são pessoas. Logo, não há identidade entre “ser pessoa” e “ser sujeito de direitos”. Por outro lado, há pessoas que, algumas vezes, são desconsideradas, na ordem civil, como entes capazes de ser sujeito de direitos. No primeiro caso, dos entes que não são pessoas mas que são sujeitos de direito encontram-se, por exemplo, os espólios, as massas falidas e os condomínios. No segundo caso, encontramos sociedades empresárias que agirem com abuso de direito contra o consumidor.
O maior problema dessa interpretação de que “ser pessoa” é “ser sujeito de direitos e deveres na ordem civil” leva à conclusão de que o nascituro não é pessoa, porque o art. 2º do mesmo código civil diz que a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida. Se o nascituro não é pessoa até que nasça com vida, então não se lhes pode reconhecer a proteção constitucional a título de “garantia da dignidade da pessoa humana”.
Essa é uma interpretação comum, salvo engano andou em baila quando o STF julgou a questão das células tronco embrionárias. Mas é uma interpretação equivocada, porque viola um preceito básico da hermenêutica: não se pode interpretar a Constituição a partir de uma interpretação do código civil. É o código Civil que deve ser interpretado a partir da interpretação da Constituição, porque a Constituição está, hierarquicamente, acima do Código Civil na estrutura das leis brasileiras.
Ainda que não fosse equivocado deduzir um conceito de pessoa a partir de uma leitura do código civil e depois aplicar esse conceito à Constituição, seria um erro concluir, da leitura dos artigos do código civil que o conceito brasileiro de pessoa limita-se à noção de “sujeito de direito”, como já dissemos acima. Mas há mais evidências de que essa interpretação é limitada, até do ponto de vista gramatical. O art. 2º do código civil afirma, textualmente, que “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida”. Ora, afirmar que a “personalidade civil da pessoa” começa com o nascimento com vida seria absurdamente tautológico se “personalidade civil” e “pessoa” fossem termos sinônimos. Obviamente, “personalidade civil”, nesta redação, é alguma coisa que se acrescenta, no nascimento, a uma “pessoa” que preexiste – o que somente se aplica, é claro, à pessoa humana.
Vale dizer, quando trata da pessoa jurídica, o código nunca diz que “a personalidade civil da pessoa jurídica” é adquirida com o registro próprio dos atos constitutivos. Porque não há uma “pessoa jurídica” que preexista à própria personalidade civil da pessoa jurídica, como, no caso do ser humano, a pessoa humana preexiste à personalidade civil da pessoa humana. Confira-se, para reforçar, que o art. 45 do código civil, tratando da pessoa jurídica, afirma que começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro. Não comete tautologias, como o art. 2º cometeria se considerasse “pessoa” e “personalidade civil” como sinônimos. É que, no caso da pessoa humana, que tem dignidade intrínseca (diferentemente das sociedades que se configuram em pessoas jurídicas), a condição de pessoa segue a mera existência de um ser humano, ainda que em estado embrionário.
Tanto é assim que o próprio art. 2º do código civil, na segunda parte, afirma que “a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. Ora, se a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro, isso significa que o nascituro tem que ter “direitos” para que a lei ponha a salvo, senão a frase não tem sentido. Se o nascituro tivesse mera expectativa de direitos – e não direitos submetidos à condição resolutiva do nascimento com vida – o código diria, simplesmente, que a lei “põe a salvo, desde a concepção, as legítimas expectativas de direito do nascituro”. Mas não é isso que a lei diz. Ela fala, com todas as letras, em por a salvo “os direitos” do nascituro.
Ora, então, se “ser pessoa” é ser “sujeito de direitos”, e se a lei expressamente reconhece e manda por a salvo “os direitos do nascituro”, então seria forçoso concluir que, sendo expressamente “sujeito de direitos”, o nascituro é “pessoa”, para nosso ordenamento, desde a sua concepção. Ou seja, se, de acordo com este mesmo art. 2º, a “personalidade civil” da “pessoa” começa do nascimento com vida, e se a lei deve garantir os direitos do nascituro desde a concepção, está mais do que provado que, mesmo para o nosso código civil, as noções de “pessoa”, para os fins de reconhecimento da dignidade humana intrínseca e de “personalidade civil”, que inicia pelo nascimento, não são sinonímias. A dignidade humana é garantida, pelo código civil, ao nascituro, desde a concepção.
Quer dizer, mesmo se nós fôssemos cometer o erro de interpretar a Constituição a partir do código civil, teríamos que reconhecer a necessidade de garantir os direitos constitucionais e a dignidade da pessoa humana desde a concepção, como determina o art. 2º do código civil. E é assim, de fato que tem que ser, não porque o código civil condicione a Constituição, mas porque ele a complementa com muita propriedade e com muita fidelidade ao espírito constitucional, neste particular.
Mas a forma correta de interpretar a Constituição é a partir do próprio direito constitucional; o fato é que a própria Constituição ressalvou que a interpretação dos seus valores deve ser feita sempre de modo ampliativo, nunca de modo restritivo, e que seus direitos e garantias devem integrar-se com outros, mais amplos, previstos inclusive em tratados internacionais em que o Brasil seja parte.
Assim, para os que não consideram que a dignidade da pessoa humana, prevista no art. 1º, III, da Constituição, combinado com o art. 5º, sejam suficientes para garantir a segurança do ser humano nascituro desde a concepção, deveríamos trazer à baila o art. 6º da Declaração Universal de Direitos Humanos, que afirma expressamente que “Todo ser humano tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei.”. Vale dizer, os conceitos de “ser humano” e de “pessoa” têm que ter a mesma extensão.
É o mesmo teor da a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu respectivo Protocolo Facultativo, que foram ratificados pelo Congresso Nacional em 09/07/2008 pelo decreto legislativo nº 186/2008 e todos os seus artigos são de aplicação imediata. Ali, no art. 10, está expressamente afirmado que os Estados Partes reafirmam que todo ser humano tem o inerente direito à vida.
Resta aos que querem defender a possibilidade do aborto, não somente liberado como custeado pelo Estado, provar que o nascituro, desde a sua concepção, não é um ser humano, e por isso não pode ter dignidade intrínseca. Eles já estão chegando aí. A Ministra Bibiana Aído, do governo espanhol do Zapatero, afirmou, numa entrevista, com todas as letras, que “Un feto de 13 semanas es un ser vivo, pero no puede ser un ser humano porque eso no tiene ninguna base científica”.
Eis onde estamos: o nascituro é um”ser vivo”, mas não é um “ser humano”, porque isso não tem nenhuma “base científica”. Resta saber, então, o que é esse “ser vivo”. Deve ser um parasita, para esta ministra, porque somente sobrevive, nessa fase, em estreita simbiose com o seu “hospedeiro”. E esse “parasita”, súbita e repentinamente, vira um “ser humano” ao ser parido, sem mais. E essa afirmação ainda incluiria uma “base científica”. Desconheço as pesquisas sobre esta “transfiguração maravilhosa” que um “parasita” sofre ao transformar-se repentinamente em “ser humano” após o parto. Enquanto elas não chegarem, e creio que não chegarão nunca, continuo defendendo a interpretação constitucional e legal que protege mais amplamente o ser humano, noutra palavra, a pessoa e sua dignidade intrínseca.

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