Às vezes me impressiona a ingenuidade teológica dos nossos colegas juristas. Isso é uma doença recente no direito: até bem recentemente, talvez cem ou cento e cinquenta anos atrás, nenhum jurista deixava de estar consciente e fundamentado quanto aos pressupostos teológicos do seu discurso, ainda que esses pressupostos não fossem explícitos nos seus escritos propriamente jurídicos.
E não pode ser diferente. “O preço por se evitar a reflexão teológica é, para a ciência do direito, altíssimo: consiste numa espécie de rendição à razão calculista na formalização e, portanto, na deformação sistemática dos conceitos jurídicos fundamentais. O direito se reduz de experiência a sistema: a responsabilidade se reduz a imputação; a autoridade, a poder; a administração da justiça, a execução de um procedimento; o matrimônio, a contrato; a pessoa, a mero objeto de direito. E, efeito gravíssimo dentre todos, a justiça é apagada do horizonte de interesses do jurista e, na melhor das hipóteses, relegada à categoria de conceito de exclusiva relevância ética e política”. Isso nos ensina F. D'Agostino, no seu “Teologia del Diritto alla Prova del Fondamentalismo”.
De fato, para conhecer profundamente o lastro do pensamento jurídico de alguém, é necessário conhecer, antes de mais nada, sua teologia. E sua antropologia, eu acrescentaria. Por exemplo, se eu fundamento o meu pensamento na ideia de que os homens viviam em guerra contínua contra si mesmo, e este era o seu “estado natural”, do qual renunciaram ao mínimo possível para poderem viver em sociedade sem matarem-se uns aos outros, a consequência lógica natural é que tudo que eu puder fazer de bom para mim mesmo, mas que lese aos outros, sem que esteja expressamente vedado pelo direito, corresponde à natureza humana, e, portanto, é legítimo. O direito passa a ser, assim, não apenas um mínimo normativo, mas também o mínimo ético e o mínimo moral. Por outro lado, se creio, como o faziam os antigos gregos, que o homem é essencialmente um animal político, a lei passa a ser apenas a expressão de uma inclinação natural humana a viver junto, e, portanto, concretização mínima de uma ética que permite a realização feliz de uma tendência inata.
Se creio que o “povo”, representado pela maioria, é o único fundamento legítimo para qualquer decisão, a minha teologia é a de crer numa divindade “popular”, num deus diluído na multidão, ao qual se deve obedecer. Assim, vejo na “maioria”, ainda que circunstancial, a única forma de doar valores. Se, no entanto, creio que há, na natureza humana, algo que transcende ao próprio homem, defenderei que há valores que não podem estar sujeitos a consensos circunstanciais.
Se creio que liberdade é o direito de escolher indiferentemente entre o bem e o mal, vejo na lei um limite à liberdade. Mas se creio que liberdade é o poder de buscar eficientemente a própria realização pessoal, sem estorvos, a lei pode ser um caminho de sabedoria.
Precisamos questionar expressamente qual a nossa própria teologia, qual a nossa própria antropologia, qual a teologia e a antropologia oculta no jurista que nos influencia. Mesmo os ateus têm uma teologia implícita: a de que não há deuses além de si mesmo, e uma antropologia velada, a de que somos simples frutos do acaso. A partir daí, o direito vira pura arbitrariedade.
Pessoalmente, respeito a democracia, como “o pior regime político, excetuados todos os outros,”, nas palavras sábias de Churchill. Mas não posso ver na democracia a manifestação de uma “divindade diluída”, capaz de ver apenas quando tomada em multidão. Se, para quem não é cristão, é difícil entender a Santíssima Trindade, ou seja, como é que um Deus ao mesmo tempo é três pessoas, para mim é mais difícil entender o democratismo, quer dizer, como é que um deus ao mesmo tempo é uma multidão indefinida.
Quanto aos direitos humanos, desamarrados da ideia da transcendência dos valores humanos, dilui-se completamente, e transforma-se em discurso hipnótico, como, recentemente, numa reunião governamental, foi identificado com “gays, lésbicas, transexuais, minorias, ayuasqueiros, alternativos” e outras categorias assim. Identificar grupos de pressão com comportamentos desviantes como únicos capazes de dar significação à noção de direitos humanos é uma das mágicas hipnóticas da atualidade.
Concordo, portanto, com D'Agostino, quando ele afirma que “somente o ensinamento cristão está capacitado para dar aos direitos humanos um autêntico fundamento, muito mais estável que aquele oferecido por qualquer outra perspectiva, ao negar decididamente que eles possam nascer a partir de um mero fundamento voluntarista, como consequência de hipotéticos e problemáticos contratos sociais.”
Temos, no cristianismo, o conceito de aliança, que envolve um povo, por um lado, e o infinito amor de Deus, do outro. Temos a autonomia e a substancialidade das coisas criadas, observada, é claro, a sua verdade. Temos o ensinamento de Paulo, que rompeu a equivalência entre obediência à lei estatal e salvação da alma. O que é que qualquer outra antropologia, ou qualquer outra teologia, pode nos oferecer de mais sólido? É hora de assumirmo-nos como juristas cristãos.
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