quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Os crimes sexuais no projeto de código penal

Tratando da relação entre a estabilidade das leis e a democracia, Jean Jacques Rousseau alertava os habitantes da República de Genebra sobre a necessidade de que a legislação ficasse protegida dos sabores das modas, das “vanguardas de pensamento” que hoje defendem uma inovação, amanhã outra, e que têm a novidade como um fim em si mesma. Dizia Rousseau no seu “Discurso sobre a Origem da Desigualdade”, criticando os “novidadeiros legislativos”: “[...] é sobretudo a grande antiguidade das leis que as torna santas e veneráveis, pois que o povo logo despreza as que vê mudar todos os dias e, pelo hábito de negligenciar os antigos usos, sob o pretexto de fazer melhores, são introduzidos muitas vezes grandes males para corrigir menores.” Num regime verdadeiramente democrático, portanto, as mudanças legislativas existem para corrigir aquelas situações em que as leis já não mais atendem aos valores e anseios do povo. Toda cultura é dinâmica, e é muito justo e legítimo que aquelas leis que já não acompanham tal dinamismo sofram a necessária revisão. Temos que ter muito cuidado, no entanto, quando qualquer “vanguarda”, seja social, seja intelectual, seja mesmo comportamental (como é o caso de certos “vanguardismos sexuais” hoje em moda) resolvem inverter os conceitos democráticos, e pretendem usar a lei para instituir bandeiras. Já não se trata, neste caso, de mudar leis que já não refletem os valores sociais, mas de tentar mudar a sociedade, os próprios valores sociais através de mudanças legislativas que atendem ao anseio destas mesmas “vanguardas”, através da sua força de influência legislativa muitas vezes desproporcional à sua verdadeira significação. Adaptar a sociedade às suas próprias bandeiras, usando de uma conjunção política eventualmente favorável, não é democracia. Refiro-me, como exemplo, ao quanto proposto no artigo 121, § 1º, do projeto de código penal atualmente em tramitação no senado Federal. Ali, o projeto equipara aos homicídios qualificados pelo motivo torpe aqueles praticados “em razão de preconceito […] de orientação sexual e identidade de gênero”. Motivo torpe, para o Código Penal ora em vigor, é aquele vil, desprezível, absolutamente desproporcional com a conduta de matar alguém. O código penal exemplifica o homicídio cometido por motivo torpe como aquele cometido “mediante paga ou promessa de recompensa”, deixando claro que esta menção é exemplificativa, quando termina o texto dizendo “ou por outro motivo torpe”. Claro que todo homicídio é lamentável, e nenhum deveria ser cometido. Mas há casos em que tais crimes, por sua motivação ou circunstâncias, violam gravemente o próprio núcleo de coesão social, banalizando a vida humana de uma forma que merece uma reprimenda muito mais grave da nossa sociedade. É o caso do “crime de mando”, cometido mediante paga. A pergunta é, então, se o preconceito em razão de “orientação sexual ou de identidade de gênero” pode sempre ser visto como um motivo torpe, equiparado ao “crime de mando”, para o cometimento de um homicídio, mesmo dentro do sistema deste projeto de código penal que ora tramita no senado. E a resposta é negativa. De fato, o próprio projeto de código penal traz todo um capítulo daquilo que chama de “crimes contra a dignidade sexual” (art. 180 e seguintes do projeto). Ora, existem, portanto, diversas categorias de “orientações sexuais” que são consideradas indignas pelo próprio código, como é o caso das orientações sadistas, vale dizer, daquelas pessoas que somente sentem prazer sexual mediante a submissão e a indução de sofrimento a outrem, pela prática do sexo contra a vontade do parceiro. Práticas assim são sempre ilícitas, para este projeto, mas não se pode negar que há diversas pessoas cuja “identidade sexual” é exatamente esta: o sadismo. Assim, o preconceito contra sádicos tem fundamento na própria lei que se quer aprovar, mas pode qualificar como “torpe” um homicídio. Claro que o exemplo é extremo, mas o código penal é feito exatamente para qualificar os extremos. Um estuprado mata um sádico estuprador. Quem é o torpe, para este projeto? Estudemos outro exemplo. Um operário muito simples e de pouquíssima instrução, de origem rural, casado há muitos anos e frequentador de uma congregação religiosa muito conservadora, pagador de seus impostos e bom membro da comunidade, tem um filho de treze anos, que nunca praticou nem sequer demonstrou qualquer tendência ou prática homossexual. Ele educa cuidadosamente este filho, com muita firmeza, para a castidade e o pudor. Ora, este “projeto” de código penal considera que um jovem de treze anos já pode consentir validamente com qualquer ato sexual. Ora, um dia o referido operário chega em casa e, notando a ausência do filho, vai procurá-lo. Encontra-o na residência de uma pessoa do sexo masculino, de mais de cinquenta anos, cuja “identidade sexual” é a “efebofilia”, ou atração sexual por jovens adolescentes. Este mesmo senhor efebófilo atraiu o jovenzinho com um discurso aparentemente bem “moderninho” e liberado, de que experimentar é bom, de que ninguém deve escolher a própria “orientação sexual” sem experimentações, apenas por causa das “tradições” paternas, e está, neste mesmo momento, realizando uma penetração sexual no jovem, que oscila entre os conflitos interiores, a confusão adolescente e o fascínio pelo desconhecido. O pai operário irrompe pela porta mal fechada da casa do efebófilo e, ao ver o filho naquela posição, parte para arrancá-lo dali e levá-lo para casa. Mas o efebófilo acusa o pai em altos brados de “preconceituoso” e segura o menino, que, dividido entre a vergonha e o receio ao pai, hesita em acompanhá-lo. Na altercação que se segue, o pai acaba avançando contra o efebófilo e o mata. Quem é o torpe? Para o projeto, neste caso, é o pai. É muito fácil, pois, em nome da “eliminação dos preconceitos”, eliminar-se a própria divergência social e impor a todos a uniformidade das “bandeiras vanguardistas”, eliminando o próprio pluralismo que supostamente se queria defender. Facilmente, numa sociedade verdadeiramente pluralista, o “preconceito” de um é apenas o “conceito” do outro – mesmo que o “preconceito” seja “avançadinho” e o conceito, conservador. Para determinados “vanguardistas sexuais”, um casal monogâmico heterossexual pode parecer uma aberração inaceitável, e vice-versa. Não se discute que a nossa sociedade não admite a intolerância, e que crimes de intolerância devem ser mais gravemente reprimidos. A intolerância é o atentado direto contra a legítima pluralidade social, seja do avançado contra o conservador, seja o contrário. Mesmo quem tem “preconceito”, e julga reprovável a conduta do outro, deve tolerá-lo em nome da legítima pluralidade social. Mas quem é intolerante e alcança o poder político muitas vezes elimina, em nome da sua própria concepção de “vanguarda”, aquele de quem discorda. A intolerância, em nome da eliminação dos “preconceitos”, criminaliza a opinião do outro em nome da legitimidade de suas “causas sociais” ou “sexuais”; a tolerância, no entanto, admite o próprio preconceito como parte inevitável, e mesmo altamente desejável, do pluralismo social. Assim, criminalizar a intolerância contra uma legítima pluralidade social é democrático, mas criminalizar o simples preconceito é intolerância. E é exatamente isto que esta redação do projeto de código penal faz, neste particular.

terça-feira, 26 de junho de 2012

A autonomia entre Igreja e Estado no pensamento de São Paulo de Tarso

Em outra reflexão, tratei da intuição a respeito da autonomia das esferas religiosa e temporal como uma intuição propriamente cristã. Na verdade, esta intuição de Jesus, expressa no seu dito tantas vezes citado “a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mc 12, 17 e paralelo em Mt 22, 21) foi pela primeira vez sistematizada de modo profundo por São Paulo, com impecável correção jurídica. Pode-se considerar a Carta aos Romanos (e, em menor escala, a Carta aos Gálatas) como os dois primeiros (e ainda não ultrapassados) tratados sistemáticos sobre a autonomia das esferas, a correta articulação entre o poder estatal e a vida religiosa. Ao reconhecer que judeus e gentios (ou seja, todas as formas de organização pública da época) têm a lei (ou seja, um ordenamento estatal legítimo), mas que em nenhuma hipótese a lei é capaz de salvar o homem, São Paulo está fazendo um desenvolvimento muito profundo e até certo ponto inesperado daquela afirmação de Jesus que transcrevemos acima. E mais inesperado ainda é quando o mesmo Paulo de Tarso afirma: “Então eliminamos a lei através da fé? De modo algum! Pelo contrário, a consolidamos!” (Rm 3, 31). Assim, inaugura-se uma concepção de Estado que não coloca os fundamentos de sua legitimidade numa deidade (mesmo na forma de um onipotente “Poder Constituinte”, ou de uma impessoal e onisciente “norma fundamental hipotética”, ou de um invisível e onipresente “contrato social” esotérico), nem a submissão à legislação como caminho de redenção humana para qualquer afastamento com relação a um deus, seja na forma de uma sociedade corruptora que degenera o homem originalmente inocente de Rousseau, seja na forma de uma concessão pacificadora dos homens-lobo de Hobbes, ou de qualquer outro “mito de origem” iluminista ou marxista. Ao separar o plano contingente da convivência social e da necessária regulamentação estatal da conduta humana, por um lado, do plano da salvação e da Graça, por outro, São Paulo nos deu a base filosófica para uma teoria consistente da separação entre Estado e religião, ou melhor, entre Estado e redenção salvífica. Neste sentido, ele foi o primeiro a teorizar sobre a correta relação entre o ordenamento estatal e a vivência da fé religiosa e da busca de redenção. O estado é necessário, e sua obediência é dever de todos. Mas nessa obediência encontra-se somente o fundamento para a boa convivência humana (sem dúvida necessária para a salvação, mas não suficiente) e não uma relação direta com a ordem divina ou um caminho redentor. E é assim que se pode compreender a ordem de submissão à autoridade estatal que Paulo nos dá no capítulo 13 da sua Epístola aos Romanos: é claro, ali. que a autoridade humana é consentida por Deus, mas a ordem que ela estabelece não necessariamente é querida por Deus e pode sempre ser aperfeiçoada e debatida. Assim, o fundamento da coercitividade do ordenamento jurídico, não é, para São Paulo, a promessa de uma redenção pela lei, mas a constatação de fato de que há necessidade de uma ordem estatal, como realidade permitida por Deus para possibilitar a organização econômica e a convivência humana. Ocorre que essa estrutura estatal histórica não se confunde com o Reino de Deus (ou com um reino de deuses), e se lastreia na contingência, tendo, no entanto, um enorme potencial para transformar-se num ídolo. Assim, diz Paulo, submeto-me ao ordenamento jurídico porque Deus espera que eu seja obediente, mas não porque eu veja no direito uma redenção, ou no governante uma figura divina, nem sequer seu mandatário direto. Embora, é claro, o exercício do poder seja, sem dúvida, permitido por Deus em determinada configuração histórica. A relação entre o cidadão e o Estado é lastreada na necessidade de convivência, não de salvação. A salvação está no plano da graça, e somente lá. A obediência ao Estado é consequência, e pode representar (como de fato muitas vezes representa) a cruz necessária para chegar à redenção, mas não o caminho, nem a verdade, nem a vida. Quando, porém, os poderosos de determinado estado se esquecem de que a pessoa humana tem uma raiz transcendente e autotranscendente, ou porque imaginam que a ordem jurídica possa salvar-nos dando-nos uma “liberdade” que envolve a possibilidade de autodestruição e de destruição do outro, ou porque se tem uma visão de que a pessoa humana não precisa nem pode alcançar qualquer redenção, passam a ver os que creem, os que defendem que o fim da pessoa está além de si mesma, como adversários a serem derrotados ou, no mínimo, calados. Os cristãos são, então, o último obstáculo, para eles, na sua luta injusta para construir um ordenamento jurídico que possa invadir o plano do fim último da pessoa humana e tornar-se um “deus” totalitário. Estes poderosos, então, buscam calar os que não confiam nem nas suas promessas sempre reeditadas de “redenção” temporal, nem no seu niilismo desesperançado. Nós, cristãos, elegemos, para nossos governantes, muitas vezes grupos ou pessoas que não compartilham a nossa fé religiosa. Mas são eleitos apenas para cuidar das realidades temporais. Os votos que eles recebem não os legitimam para nos impor seus projetos salvíficos ou sua visão religiosa (ou antirreligiosa). São livres para tê-las, e mesmo para trazê-las à discussão pública ou viver em harmonia com elas tanto quanto quaisquer outros cidadãos. Mas os votos que receberam não os legitima a acreditar que, além de líderes políticos, passaram a ser também líderes religiosos – ou antirreligiosos. O perigo, portanto, é que os poderosos do mundo contemporâneo esqueçam-se de tais ensinamentos cristãos (preciosos mesmo para aqueles que nada sabem ou querem saber de Deus) e, em nome de uma “separação” entre estado e religião, que na verdade só “separa” as religiões que eles não podem controlar, voltem a exigir que se queime incenso ao César do momento, seja esse César o “proletário”, o evolucionista cientificista, o libertário sexual, o cientista ou o “porta-voz” do “povo” personificado. E que este incenso seja exatamente o cadáver de nossas crianças abortadas, o nosso amor próprio e pudor, a sanidade dos nossos filhos entorpecidos ou a nossa voz política.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

As freiras americanas e o economista colombiano

Bento XVI e as monjas rebeldes – Rodrigo Botero Montoya. Este é o nome do artigo que discuto agora. O sr. Rodrigo Botero Montoya é economista e foi ministro da Fazenda da Colômbia, segundo se apresenta. Escreve um artigo publicado hoje, 20 de junho de 2012, sobre os incidentes que estão ocorrendo entre a Santa Sé e as freiras americanas que ensinam erros morais como se doutrina católica fossem. Quanto à iniciativa da Santa Sé, trata-se de uma advertência estritamente interna corporis, estritamente teológica, da Congregação para a Doutrina da Fé às religiosas americanas que pregavam a masturbação, a homossexualidade e a pansexualidade a partir de suas posições dentro da Igreja, expressamente ensinando e propalando que a doutrina da Igreja sobre estes pontos não deve ser obedecida pelos católicos. Mas elas fizeram livremente um voto de obediência que também livremente querem descumprir, e foram advertidas por isto. Este autor do artigo é economista e ministro da fazenda da colômbia, portanto nem é frei ou freira, nem católico, nem ao menos teólogo. Perdeu uma boa oportunidade de ficar calado. Vou explicar porque. O argumento que ele usa é gratuito e imbecil. É mais ou menos assim: a Igreja uma vez advertiu um monge por desobediência e este monge saiu da Igreja, criou o protestantismo e gerou as guerras de religião. Assim, a Igreja Católica não deveria mais advertir nenhum religioso mesmo que ele estivesse na mais glamurosa desobediência, para não gerar novas guerras religiosas. Ora, isto é o mesmo, mutatis mutandis, de afirmar o seguinte: uma esposa que se desentendeu com o marido pegou uma faca, o assassinou e mutilou, então agora nenhum marido deve mais reclamar de nada que alguma esposa fizer, mesmo que seja errado, porque desencadeará muito justamente contra si um esquartejamento. No fundo, é dizer: se alguém promete obedecer ao Papa e desobedece, e em seguida cria uma guerra mundial para destruir o Papa, a culpa é do Papa. Insano. Vamos aplicar o raciocínio este sujeito no seu campo, a economia. Se um funcionário da Coca estiver convencido que a Pepsi é melhor, deve sair da Coca e ir para a Pepsi, não usar os recursos publicitários da Coca para fazer propaganda da Pepsi. Para ele, no entanto, a Coca não somente não deve advertir ou mesmo demitir o mau funcionário, como ainda deve doar suas instalações a ele para que ele passe a produzir apenas pepsi com as máquinas da Coca. Economistas ficam bem na economia. Católicos ficam bem na Igreja Católica. Para ser católico, como todo mundo sabe, precisa: 1. Professar publicamente a mesma fé, 2. Participar dos mesmos sacramentos, 3. submeter-se ao governo dos mesmos pastores e 4. Estar em comunhão com o Pontífice Romano. Ninguém é obrigado a ser católico nem a permanecer na Igreja, mas, ao fazê-lo, deve respeito a estes 4 princípios, tanto quanto um funcionário da Coca Cola deve respeito à Coca. Se freiras estão na Igreja, entraram nela livremente, sabendo que a obediência é um dos votos que livremente devem acolher, e que se não obedecerem aos quatro pontos acima especificados já não farão parte da Igreja. E quem julga se elas estão ou não nesta comunhão é o Papa, não este economista autor desta matéria. Ele não pode julgar o Papa em matéria religiosa sem automaticamente negar ao Papa a liberdade religiosa de ser Papa. E a liberdade de todos os outros católicos de obedecer ao Papa. Porque, se seguíssemos ao raciocínio deste autor aí, já não haveria igreja católica no mundo. As freirinhas americanas são livres para se masturbar e alardear que isso é muito bom e desejável aos olhos de Deus, viver a homossexualidade e pregar que isso é muito bom e desejável aos olhos de Deus, pregar a promiscuidade ou defender que o casamento não é a única opção para viver com castidade a sexualidade. Mas não são livres para fazer tudo isso em nome da Igreja Católica. Que aproveitem a sua própria liberdade religiosa e fundem uma nova Igreja, elegendo como Papa o sr. Rodrigo Montoya. A Igreja não vai desencadear nenhuma guerra religiosa quanto a isso - o Papa não tem divisões de exército e nunca teve. Se o nosso amigo estudasse melhor, veria que as guerrar religiosas deram-se entre estados nacionais em formação, por motivos econômicos e políticos, sob pretextos religiosos, e que a Igreja Católica nunca desencadeou nenhuma delas. E que a doutrina católica é bem diferente da muçulmana, e mesmo da protestante, quanto ao uso de meios militares para a imposição da fé.

terça-feira, 8 de maio de 2012

Pessoa humana e liberdade

A questão, quando se trata de falar de pessoa, é que sempre se faz um corte metodológico a partir dos nossos próprios preconceitos, pré-compreensões. O problema é que não está claro, não está de modo nenhum demonstrado, que aquilo que fica negligenciado pela própria natureza do método é, de fato, negligenciável, nos ensina León Brunschvicg. A pessoa humana sempre ultrapassa qualquer discurso que se possa construir sobre ela. A pessoa humana sempre ultrapassa qualquer construção jurídica que se possa fazer sobre ela. Vale lembrar sempre Pascal: o homem ultrapassa infinitamente o homem. Falar de dignidade da pessoa humana nos remete logo a Kant, com sua noção de pessoa como fim, e de fato é uma noção basilar para a nossa discussão. Na verdade, Kant sistematizou com muita felicidade, embora com os limites do dualismo da sua filosofia, a questão da pessoa humana. Em todo caso, dificilmente nós vamos muito além de Kant, quando discutimos este tema. Mas deveríamos, e é o que eu vou tentar indicar aqui. O fato é que a modernidade parece iniciar-se, segundo os mais abalizados filósofos contemporâneos, com o cogito de Descartes. Ali, a realidade passa a ter fundamento num ato de autorreconhecimento, que funda a realidade a partir do pensamento. Se o meu pensamento é fundamento do meu ser, partindo do meu pensamento eu encontro fundamento para o ser de Deus e a existência de um suposto mundo exterior a mim mesmo. É uma tremenda revolução com relação à visão de mundo anterior, que colocava no Bem (como Platão), no Uno (como Plotino) ou no Ser (como Tomás) o fundamento da realidade. Na verdade pode-se ir um pouco mais atrás. Um outro grande homem do final do século XIII (início do século XIV, o monge franciscano Guilherme de Ockham (conhecido em citado entre nós por sua famosa “navalha de Ockham”) já havia plantado profundamente as sementes do dualismo moderno, com seu nominalismo. Talvez, como sabemos,a discussão sobre os universais tenha sido a discussão mais aguda na idade média (e esta discussão não parece ter terminado até hoje, mas apenas ter perdido seu apelo). Platão, em seu hiperrealismo, defendeu a existência efetiva dos universais no reino das ideias. Aristóteles negou a existência dos universais, senão como essências, formas expressas nos indivíduos com que nos deparamos todo dia, e dos quais abstraímos por meio da cognição intelectual. Tomás segue Aristóteles, reconhecendo a concretude dos seres individuais e a realidade dos universais como abstrações, no entanto com correspondência concreta nas próprias coisas e realidade na mente divina. Ockham defendeu que Deus é suprema onipotência, e ele não poderia ser constrangido, em sua onipotência, nem sequer pelos nomes, vale dizer, pelos universais: ao criar a segunda maçã, a onipotência divina não estaria limitada pela noção de espécie a fazê-la, de algum modo, relacionada à primeira. Deus permanece livre e soberano em cada ato de criação, e portanto só cria indivíduos. Nós e que criamos os universais, os nomes, como entes de razão sem correspondência concreta nas coisas, para fins de conhecimento e domínio sobre a natureza. Portanto, foi buscando defender a suprema liberdade de Deus quando criava cada coisa individual que Ockam nega a realidade dos universais. E, ao fazê-lo, nega também a relação entre a lei e a inteligibilidade: se a lei era, até então, vista em algum grau como uma participação humana na sabedoria divina – esta era a relação entre a chamada lei natural e a lei positiva – Ockam, visando dar maior glória a Deus, nega que a vontade onipotente de Deus pudesse estar vinculada de algum modo à sua própria inteligência, ou seja, que a inteligibilidade pudesse, de algum modo, constranger a vontade, em deus. O que Deus determina, ele não o faz porque é razoável, mas porque, em sua vontade onipotente, ele o quer, sem que precise haver uma razão para isto. Nós não amamos a Deus porque ele é intrinsecamente amável, mas porque ele, em seu Poder infinito, nos ordena que nós o amemos, e daí decorre nosso dever de amá-lo. Se Deus nos ordenasse, por outro lado, e sem razão que nos fosse discernível, que nós o odiássemos, estaríamos igualmente obrigados a fazê-lo. Esta é uma visão muito próxima à visão muçulmana, inclusive, mas muito distante da tradicional visão cristã. Ele foi muito mais influente do que pode parecer, no campo do direito: não é à toa que nosso direito contemporâneo fundamenta-se muito mais na promulgação, na vontade e no poder de quem o positiva, do que na sabedoria intrínseca dos seus mandamentos, como era nas culturas antigas e na medieval. Não é à toa que o pensamento de Ockham seria condenado pela Igreja como herético: de fato, ele colocou Deus na condição de adversário-mor da liberdade humana: se Deus é onipotente assim, se sua vontade é um capricho infinito, então em última instância nós não somos livres, já que qualquer ato de vontade nossa seria uma imediata restrição à onipotência divina. Eis aí Deus colocado como adversário da liberdade humana: a onipotência divina seria uma contradição à nossa liberdade: Deus deve ser eliminado. E é esta a postura que muitas vezes encontramos, ainda hoje, em nosso mundo jurídico. Mas certamente este Deus adversário do mundo, que um dia Millôr Fernandes classificou não como onipotente, mas como “prepotente”, não é o Deus cristão, o Deus Pai de Jesus. Mas isto é um assunto para outro momento.(Paulo Jacobina)

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Faniquitos antieclesiais no STF

Ainda não tive tempo de ler todos os votos do julgamento sobre a anencefalia com cuidado, fiz a leitura superficial. O voto do relator está muito bem escrito, os argumentos são fortes, ele demonstra coragem e sensibilidade com o sofrimento feminino. Conhece a Bíblia e algumas fontes históricas do cristianismo. Faço mais uma vez ponderações longas a respeito das minhas impressões. Vou pinçar apenas um ponto que considero muito preocupante no voto do relator. A questão que ele levanta sobre uma suposta necessidade de "afastar as pré-compreensões confessionais", citando o Min. Celso de Mello. Ele diz: "nesta República laica, fundada em bases democráticas, o Direito não se submete à religião, e as autoridades incumbidas de aplicá-lo devem despojar-se de pré-compreensões em matéria confessional, em ordem a não fazer repercutir, sobre o processo de poder, quando no exercício de suas funções (qualquer que seja o domínio de sua incidência), as suas próprias convicções religiosas." Uma coisa é fazer repercutir no seu agir as suas convicções religiosas, o que é perfeitamente lícito numa democracia; outra é impor aos outros, pelo exercício do poder, tais convicções, o que é bem diferente. No entanto, o relator, citando Celso de Mello, parece excluir mesmo esta "repercussão" estritamente humana dos cidadãos religiosos, como se a liberdade religiosa somente pudesse ser exercida como opção secreta e recôndita, e qualquer coerência, no confessional, da sua fé com a sua prática, fosse ilícita. O que é assustador para os que, como a maioria da população, professam uma confissão que lhes convida exatamente a esta coerência. Neste particular, tive a grata surpresa de ler isto aqui, no voto do Min. Gilmar Mendes: "Essas entidades (cristãs) são quase que colocadas no banco dos réus como se estivessem fazendo algo de indevido, e não estão. É preciso ter muito cuidado com esse tipo de delírio desses faniquitos anticlericais (...) Recentemente, acompanhava o célebre caso dos crucifixos e ficava preocupado com esse tipo de desenvolvimento. Talvez daqui a pouco tenhamos a supressão do Natal do nosso calendário ou a revisão do calendário gregoriano. Ou alguma figura inspirada vai pedir a demolição do Cristo Redentor." (do voto do Min. Gilmar Mendes). Temos, portanto, que tomar o cuidado oposto quanto ao respeito à liberdade religiosa, e acho que este é o maior desafio para nós, cidadãos brasileiros, agora. O cuidado é que não ocorra o tal "despojamento das pré-compreensões confessionais" como pressuposto para qualquer exercício público de cidadania no âmbito das relações institucionais no estado brasileiro, como o voto do relator menciona, citando Celso de Melo. Isto é um conceito que deve ser olhado com cuidado, porque pode comprometer a própria democracia. Talvez seja a passagem que mais me incomodou, no voto, porque marca uma tendência que, levada ao extremo, exclui da possibilidade do exercício da cidadania qualquer cidadão que seja um religioso confessional. Na verdade, ninguém pode se despojar das próprias pré-compreensões sem deixar de ser uma pessoa humana livre, isto já nos demonstrou Heidegger, quando construiu o conceito de vorverständnis (os que sabem alemão me corrijam) na sua hermenêutica. O ser humano, explica Heidegger, é um dasein, quer dizer, é um "ser-aí", é alguém imerso numa cultura e num momento histórico. Não se deve, por um lado, numa democracia, impor ao outro as próprias pré-compreensões, confessionais ou não. Mas não há como se exigir, como quer o voto, a obrigação de despojar uma classe de pessoas de suas pré-compreensões, muito menos as confessionais, como condição para que seja admitido no debate público, ou mesmo para exercer funções públicas, sem estabelecer o totalitarismo. Portanto cada vez que alguém estabelece a necessidade de "despojar alguém de pré-compreensões", quaisquer que sejam, como pressuposto para o exercício da cidadania ou do diálogo democrático, eu estremeço. Trata-se de negar que o outro possa ser ouvido, ou, no limite, que possa sequer existir tal como ele é, no regime democrático. Não há ninguém sem pré-compreensões, salvo os psicopatas, aliás louvados por aquela canção bobinha do Raul Seixas ("eu prefiro ser esta metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo"). Ora, uma metamorfose ambulante é, por definição, um ser com o qual a convivência é impossível, e portanto, uma sociedade de "metamorfos ambulantes" seria uma sociedade profundamente despótica, nunca democrática - quem tem filhos sabe exatamente o que é conviver em casa com uma "metamorfosezinha ambulante" de nove ou dez anos de idade. Então a pergunta - por que somente os que têm pré-compreensões confessionais" têm que se despojar delas para ser admitido ao exercício da cidadania? Um "metamorfo ambulante", um ser absolutamente sem pré-compreensões, torna despiciendo o direito, torna impossível a comunicação, por fim, implode a própria noção de sociedade. Não se constrói a sociedade democrática com a convivência de crianças mimadas. Portanto, é preciso que tenhamos todos pré-compreensões estáveis e reciprocamente leais, e, ao contrário do que diz o voto, (citando celso de Melo), não se pode exigir de nenhum homem que afaste as suas pré-compreensões para que o embate político democrático seja possível. Na verdade, apenas explicitando claramente as nossas pré-compreensões recíprocas é que o debate se torna leal. Quais serão as pré-compreensões confessionais do Ministro relator? Se ninguém sabe, fica impossível, inclusive, verificar se ele está obedecendo à sua própria orientação e despindo-se delas antes de votar. Estou absolutamente convencido de que não há nenhum ser humano sem pré-compreensões religiosas, confessionais ou não. Homens não são anjos, são filhos dos seus tempos, das suas histórias e das suas culturas. São seres-aí, dasein, diz Heidegger. E devem sempre trazê-las, de modo íntegro e expresso, para a sua vida e para o exercício da sua cidadania. Note-se que eu estou afirmando categoricamente que não há seres humanos sem pré-compreensão religiosa, mas não estou de forma nenhuma dizendo que não há pessoas sem confissão religiosa: estes são legião, e são parceiros inestimáveis na convivência democrática. Precisamos dos sem-confissão, e do seu respeito recíproco. Mas ser sem-confissão é, segundo Heidegger, ter também uma determinada pré-compreensão religiosa, livre e inafastável de igual modo. Mesmo o ateu confesso está na mesma situação. Ele tem uma pré-compreensão religiosa, ainda que seja a de que um Deus pessoal e amoroso não existe, embora possam existir, para os ateus, forças absolutas impessoais, como a economia dialética do trabalho (marxistas), um gene egoísta (Dawkins) ou a pulsão sexual (Freudianos). Os agnósticos igualmente têm pré-compreensões religiosas, ainda que sejam não-confessionais, como uma das duas seguintes: ou todas as religiões são igualmente perniciosas, e as devemos eliminá-las indiscriminadamente, ou todas são igualmente importantes, e devemos garanti-las indiscriminadamente. Ambas as pré-compreensões religiosas do homem não confessional são também incompletas e unilaterais no jogo democrático como um todo, porque há outras posições possíveis no campo das pré-compreensões religiosas que devem igualmente ser levadas em conta no debate público com o mesmo grau de seriedade. Ser confessional, numa sociedade democrática, e agir em coerência com isto, sem imposições, mas com integridade, não pode jamais ser um minus, um capitis diminutio, sem que a liberdade religiosa fique ferida. Não se pode exigir, a contrário senso, que meu interlocutor, digamos, ateu ou agnóstico, abandone tais pré-compreensões não-confessionais, com as quais eventualmente não concordo, para que ele esteja apto a iniciar ou participar de um debate público: para abandonar uma de suas pré-compreensões religiosas não confessionais, um ateu ou um agnóstico deveria estar obrigado a adotar uma religião, e isto violaria sua dignidade humana. Ora, o que não pode ser imposto ao não-confessional não pode ser imposto ao confessional! Devemos todos, confessionais ou não, nos esforçar para ouvir e respeitar o outro como ele é. Extrair, dos debates com todas as posições, aquelas fundamentações históricas, científicas, culturais e sapienciais que nos permitam construir a sociedade mais democrática e digna possível num determnado momento histórico, e não se faz isso tolhendo os direitos civis de uma parcela da população - especificamente a parcela majoritária, a confessional. Fazer isto é violar a dignidade do cidadão confessional, a própria liberdade religiosa e transformar o Estado num ídolo, ou seja, trata-se de César exigindo de nós o que em nós é de Deus - a nossa consciência religiosa livremente formada. (Paulo Jacobina)

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Álcool, tabaco e drogas ilícitas

O uso de algumas drogas é proibido no Brasil. As única drogas permitidas são o álcool e o cigarro. Atualmente, há um crescente interesse da sociedade pela discussão acerca da descriminalização das drogas no país. Há quem defenda que as drogas ilícitas são tão drogas quanto as lícitas, e, destes, há quem diga que a solução seria proibir as legalizadas e há quem diga que seria permitir as proibidas. Primeiramente, o álcool surge de um processo natural, que é a fermentação. Frutos como a marula fermentam na própria árvore, e o álcool, ao contrário da maconha, que sempre foi consumida por seus efeitos alucinógenos, era consumido como alimento. Guardava-se o suco de uva num barril e ele fermentava, naturalmente. As bebidas alcoólicas fermentadas surgem de um processo natural de fermentação do suco, no qual as bactérias transformam o açúcar da bebida em álcool. Mesmo nas bebidas destiladas, o processo de obtenção do princípio ativo, o álcool, não se faz pelo mero prazer de se obter os seus efeitos entorpecentes, pelo menos não originalmente. Na Idade Média, as bebidas destiladas eram usadas como analgésicos, pois aliviavam a dor mais eficientemente que a cerveja e o vinho, e, nos países frios, as bebidas eram utilizadas para aquecer as pessoas em estado de hipotermia. Tanto a maconha quanto o cigarro possuem alcatrão, que é tóxico e gera dependência química, e, apesar de a nicotina ser o principal elemento ativo do tabaco, e, na maconha, ser o thc (Tetrahidrocanabinol). A maconha, ao contrário do cigarro, traz alterações psicoativas que o tabaco não produz. O cigarro não produz alucinações, mas, independentemente de quem faz mais mal, ele faz mal à saúde, assim como a maconha. Além de fazer mal aos indivíduos, particularmente, a dependência tóxica faz mal à sociedade. O Auxílio-doença concedido a dependentes químicos preocupa a Previdência Social, pois pessoas, que poderiam estar trabalhando e colaborando com a Previdência, estão debilitadas por causa do uso das drogas e, além de não gerarem riqueza, geram despesas e ocupam leitos nos hospitais. O consumo excessivo de álcool tem efeitos prejudiciais à sáude, mas o álcool originalmente tinha efeitos alimentícios ou medicinais, e podem ser consumidos assim, pois, em quantidades não excessivas, não gera dependência química. Já a maconha era usada por seus efeitos alucinógenos e, mesmo que eventualmente fosse usada para "esquecer a dor", o thc causa dependência química, e o alcatrão é tóxico mesmo em pequenas quantidades. É hipocrisia permitir o tabaco e não a maconha, mas a única solução é legalizar a maconha? Ou restringir, dificultar o acesso ou até proibir o uso do tabaco não seriam também alternativas? (Pedro Jacobina)

Da Verdade

A verdade, do ponto de vista teológico, é tudo aquilo que está de acordo com o plano de Deus. Não porque Deus diz o que é verdade e o que não é, mas, sendo Deus o criador de todas as coisas, as coisas são verdade na medida em que elas correspondem com as coisas criadas por Deus. Analogicamente, a verdade quanto a uma criatura minha, como uma personagem que eu crie, é a conformidade com meus planos sobre ela. Se eu criar um afubsgubsc, o que você disser sobre ele é verdade na medida em que isso corresponde com os meus planos sobre ele. Do ponto de vista filosófico, a verdade pode ser conceituada como "tudo aquilo que permanecerá inalterado se eu tentar negá-lo". A verdade é a adequação da mente à coisa, e não da coisa à mente, salvo quando eu sou a causa eficiente da coisa. As propriedades físico-químicas da massinha são verdadeiras, uma vez que elas dependem da minha observação e abstração da massinha, adequando minha mente à realidade da massinha. Mas, na medida que eu posso modelar a massinha, a verdade dela é a correspondência entre o que ela é de fato e a minha intenção. Se outra pessoa, no entanto, olhar o objeto que eu fiz com a massinha, a verdade é a adequação da mente dele à coisa, pois o meu objeto está ali, e a mente dele que abstrai o que ele experiencia sensorialmente. No momento em que ele remodela a massinha, a verdade dela é, novamente, a correspondência entre o que a massinha é de fato e a intenção dele. As duas definições de verdade são similares, a filosófica com o conceito de causa eficiente para definir o ser que transforma a potência em ato, e a teológica com o conceito de criador, que, para a teologia, é Deus, que criou o Universo, e transforma a potência em ato. Quando criamos algo, fazemo-lo analogicamente à criação de Deus, pois a massinha não é pura potência, ela tem ato, ela existe, tem propriedades. Deus criou tudo a partir do zero, transformou a potência pura em ato. Deus é 'A' verdade, pois ele é puro ato, ele é imutável e estático, ele É, não pode "vir a ser" nada, pois já é completo, perfeito e infinito. O Universo é verdadeiro, na medida em que ele possui ato, que ele é à imagem e semelhança de Deus. Já a matéria pura é inpensável, pois ela é pura potência, ou seja, não é nada por poder ser qualquer coisa. É o Princípio Síndrome: Quando todo mundo for super, ninguém mais será. O que pode ser tudo, acaba não sendo nada. Somente o ato é cognoscível. A verdade é o ato. Deus é 'A' verdade porque ele é 'O' ato. A verdade da massinha é quanto ao ato dela, suas propriedades físico-químicas, mas, quanto ao que você pode moldar a partir dela, não será verdade enquanto você não moldar. A matéria pura não existe, porque pura potência sem ato não é verdade. (Pedro Jacobina)

Em que acredito (Um pequeno resuminho sobre alguns pensamentos)

Não se pode começar a pensar no Universo com a dúvida, tampouco com o "eu". Qualquer discurso tem que ter pressupostos, como eu disse em "Seis dogmas para escrever". Não se pode começar um discurso ou uma discussão se não se acredita em certos pontos, como, por exemplo, que o código é válido e cognoscível e exprime as ideias que foram pensadas com fidelidade. Da mesma forma, antes de começar a falar sobre o Universo, tem que se acreditar em alguma coisa, ter um ponto de partida concreto, absoluto, e esse ponto é Deus. Não se pode tomar como ponto de partida a dúvida, pois, como Santo Anselmo disse: "Eu não procuro compreender para crer, creio para compreender pois não poderia compreender se não acreditasse." O ceticismo absoluto tem que duvidar até da dúvida, e não pode começar nunca um pensamento. É quase como uma criança birrenta, que diz "duvido" para qualquer coisa que falemo-na. Não se pode discutir se não se acredita na verdade, pois a discussão não levaria a lugar nenhum; da mesma forma, não adianta procurar sentido no Universo se se duvida do Universo e até do próprio sentido, pois essa busca não daria resultado algum. Ressalto que "dúvida" aqui se aplica à descrença do cético absoluto, não à dúvida metódica de Descartes, pois Descartes não duvidava de tudo, não da dúvida, pelo menos. Tampouco se pode tomar como ponto de partida a existência do "eu", porque o "eu" não é absoluto e infinito; o Universo não está submetido ao homem, mas a Deus, que é o criador de todo o Universo. Deus, como arkhé da physis, é o maior ser concebível, pois nada está além dEle e nada é anterior a Ele. Se Deus fosse imaginário, ele não seria o maior ser concebível, pois conceber-se-ia um ser que teria, além de todas as qualidades do deus imaginário, mais uma: a realidade. Este Deus real seria, portanto, maior do que o Deus imaginário, o que geraria um absurdo. Deus é a causa primeira, Ele é causa de si próprio, é o único ser absoluto e infinito do Universo, mas não é o primeiro ser em que pensamos quando olhamos para o Universo. Deus não está na natureza, mas, como podemos ver as digitais do artista na escultura de argila ou as pinceladas na tela, podemos ver a mão de Deus ao olharmos para a natureza. A criatura não pode superar o criador, um computador não pode ser maior que quem o projetou, pois tudo que está no computador veio do projetor, mas nem tudo do projetor foi passado para o computador. Da mesma forma, a natureza tem que ser criatura de um ser maior que ela. Se a natureza é organizada, e não um completo caos, o seu Criador tem que ser racional. A natureza não poderia ter fim em si mesma, porque ela foi criada, mas seu Criador sim, pois, como diz Parmênides, o Ser não poderia ter sido criado, pois isso implicaria em outro Ser; nem poderia ter sido criado do nada, pois isto implicaria a existência do Não-Ser. Portanto, o Ser simplesmente é. É, factualmente, difícil aceitar a ideia de eternidade, ainda mais a de Deus, pois, se já é difícil pensar em eternidade para o futuro, muito mais é para o passado. O tempo é criatura, portanto, teve um início, a sua criação. É difícil pensar no infinito para o futuro, mas é impossível pensar no infinito para trás, pelo menos no plano temporal, mas o tempo está aquém de Deus, por ser uma criatura. Deus não "existiu em" ou "existiu a partir de", mas Ele simplesmente existe, Ele não está submetido ao tempo. Nenhum ser em potência se tranforma, segundo São Tomás de Aquino e Aristóteles, em um ser em ato por si só, precisa da intevenção de um ser em ato. Uma matéria prima não pode se tornar um artefato por si só, precisa da intervenção do homem. Deus é o ato puro, ele é imutável, estático, e pode tranformar toda potência em ato, e a matéria é pura potência, ela é mutável, dinâmica, e pode ser tranformada, mas não pode transformar. Tudo no Universo é composto por ato e potência. O ser humano, por ser ato, pode mudar as coisas, e, por ser potência, pode ser mudado. Voltando à natureza, primeiramente nós temos as experiências sensoriais dos seres, para então formarmos nosso conhecimento a partir da abstração das experiências. Nós olhamos a natureza, e pensamos que esta só pode ter sido criada por Deus, e nós só podemos fazê-lo porque sabemos que nossas experiências sensoriais condizem com a realidade em que estamos. Não é possível que tudo seja apenas fruto da minha mente, pois isto significaria que eu teria criado o Universo, portanto eu seria Deus, o que não é verdade, pois eu estou sujeito às leis do Universo. E é certo que as minhas experiências sensoriais condizem com a realidade na qual estou inserido, uma vez que todos nos vemos os objetos nos mesmos lugares, com as mesmas características. Também os seres ditos materiais têm que ser constituídos de matéria, e não de ideia, pois, se a mesa que eu olho fosse um pensamento da minha mente, então ela teria que ser exatamente igual no pensamento de todos. A mesa de fato é a mesma para todos que a olham, mas os seres mais complexos, como um esquilo, não pode ser tudo o que se pensa dele. Se eu tenho uma ideia do esquilo e outra pessoa tem outra ideia, o esquilo não pode ser as duas coisas ao mesmo tempo; princípio da não-contradição. Dizer que a matéria é dependente da minha mente é inconcebível, pois isto implicaria dizer que as outras pessoas também o são, pois a matéria não pode ser dependente da minha mente e da de outrem ao mesmo tempo. E, se as pessoas fossem dependentes da minha mente, eu seria Deus, e isso é impossível. Da mesma forma, dizer que os seres ditos materiais são pensamento da mente de Deus, e não feitos de matéria, seria dizer que estamos todos na mente de Deus, e somos ideias dele, parte dele. Mas não somos, somos criaturas, e somos distintos de Deus, pois somos pessoas, sengundo a definição de Boécio, de que pessoa é uma "substância individual de natureza racional." Ou seja, é algo que existe por si (substância), é distinto dos outros seres (individual) e tem capacidade de agir por si (natureza racional). (Pedro Jacobina)

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Os Anencéfalos e a Dignidade Intrínseca da Vida Paulo Vasconcelos Jacobina Procurador Regional da República Mestre em Direito Econômico pela UFBa Há um recente filme americano que conta, de modo bem idealizado, a saga do pornógrafo Larry Flynt. Ali, ele é retratado como um lutador pela liberdade de expressão. “Muito mais que um viciado em pornografia, Larry é um viciado em liberdade”, diz uma das chamadas do filme. O subtítulo da produção cinematográfica é o seguinte: “You may not like what he does, but are you prepared to give up his right to do it?” Em tradução livre, seria mais ou menos: “você pode não gostar do que ele faz; mas está pronto para abdicar do direito que lhe permite fazê-lo?” Há um longo discurso no filme, do advogado de Larry Flynt perante uma das Cortes americanas que julgava se a publicação pornográfica de Larry (a revista Hustler) devia ou não ser protegida pela Primeira Emenda da Constituição Americana, aquela que trata da liberdade de expressão. Dizia o advogado: “No coração da Primeira Emenda está o reconhecimento da importância fundamental do fluxo de ideias. A liberdade para falar o que se pensa não é só um aspecto de liberdade individual, mas essencial no que diz respeito à verdade e a vitalidade da sociedade como um todo. No mundo das discussões de assuntos públicos, muitas coisas são menos admiráveis, mas não menos protegidas pela Primeira Emenda.” Todo o desenvolvimento do filme vai, então, dirigir-se no sentido de ressaltar a baixeza do caráter do seu personagem principal, para provar a tese de que a liberdade de expressão, no limite, existe para proteger a expressão daqueles com quem a maioria não concorda, os sujos, os asquerosos, os não-alinhados, os repugnantes. A defesa da liberdade de expressão não tem vínculo com a qualidade do que está sendo expresso, mas com o direito de manifestar mesmo aquilo que, aos olhos da maioria, não tem mesmo nenhuma qualidade. Em suma, o que se tutela é a liberdade de expressar-se, e não a qualidade de tal expressão. E é exatamente na expressão de pensamento de baixa qualidade – ou sem qualidade nenhuma – que a cláusula constitucional de liberdade de expressão torna-se mais premente. Esta pequena digressão visa apenas estabelecer que a liberdade de expressão, que é tomada em tal amplitude, está fundada num princípio muito mais amplo, o próprio princípio constitucional da dignidade da vida humana. Vale dizer, há a liberdade de expressão exatamente porque se está vivo: não pode se expressar quem não vive. Por outro lado, não há comparação entre a amplitude do princípio da dignidade da vida humana e o princípio da liberdade de expressão. É possível haver uma expressão de pensamento que seja indigna da tutela constitucional. Dou como exemplo o pensamento expresso no anonimato: não se tutela a expressão anônima do pensamento, conforme o art. 5º, IV, da Constituição Federal de 1988. Além disso, a Constituição garante, às pessoas ofendidas pelo mau uso do direito alheio de expressão, o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem, nos termos do art. 5º, V. No que diz respeito à vida, porém, não há possibilidade de tais restrições. Nossa Constituição não conhece uma vida humana que seja indigna em si mesmo. O direito à vida, portanto, não se fundamenta em nenhum tipo de juízo quanto à qualidade mesma da vida que está sendo tutelada. Vale dizer, o nosso direito não tutela a qualidade de vida: tutela a dignidade intrínseca da vida. Podia não ser assim. Há ordenamentos jurídicos que não tutelam a dignidade da vida, mas a qualidade dessa vida. O direito sul africano do apartheid, por exemplo, admitia que determinadas etnias não tinham a mesma dignidade, quanto à proteção da sua vida, que outras: uma vida branca era mais digna, ali, que uma vida de uma pessoa de cor negra. Havia, portanto, uma avaliação intrínseca da qualidade da vida a ser tutelada, para os fins de determinar a sua dignidade. O mesmo acontecia com o direito nazista: determinadas etnias, como a judaica, não eram reconhecidas como dignas da vida. Ou seja, a dignidade da vida, ali, passava por uma avaliação prévia da sua qualidade. Nosso direito não conhece tal avaliação prévia da qualidade da vida para estabelecer a sua dignidade intrínseca. Para nosso ordenamento, aplica-se, portanto, no que diz respeito à tutela do direito à vida, algo que poderíamos chamar de “o princípio Larry Flint”: se não formos capazes de defender a vida aparentemente mais frágil, mais tênue, a que título poderemos proteger todas as outras? Assim, a defesa da dignidade intrínseca da vida dos nascituros anencéfalos é a defesa da vida de todos: trata-se da defesa do princípio da dignidade da vida humana independentemente do questionamento sobre a sua qualidade. Não é a qualidade da vida, se vigorosa ou frágil, se prolífica ou infrutífera, se longa ou breve, se saudável ou doentia, que determina que uma vida humana tenha dignidade. O que determina tal dignidade é a sua existência, e ponto final. Por isso, se estabelecermos que é possível, em nosso direito, sopesar a qualidade da própria vida humana para determinar sua dignidade, e, com isso, estabelecermos que um bebê anencéfalo pode ser morto porque sua vida não tem qualidade, e portanto não tem dignidade, estaremos rompendo um princípio básico de dignidade de vida, a de que esta dignidade é incondicional. Por isso, também para os bebês anencéfalos, nosso direito constitucional deve reverberar o art. 6º da Declaração Universal de Direitos Humanos, que afirma expressamente que “Todo ser humano tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei.”. Vale dizer, os conceitos de “ser humano” e de “pessoa” têm que ter a mesma extensão e a mesma dignidade. Devem atingir a todos os entes humanos, independentemente da qualidade da vida que portam. É o mesmo teor da a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu respectivo Protocolo Facultativo, que foram ratificados pelo Congresso Nacional em 09/07/2008 pelo decreto legislativo nº 186/2008, cujos artigos são todos de aplicação imediata. Ali, no art. 10, está expressamente estabelecido que os Estados Partes reafirmam que todo ser humano tem o inerente direito à vida. Note-se que a anencefalia não significa ausência de cérebro, mas apenas sua incompletude ou má formação. Se não conseguirmos proteger um cidadãozinho que tem o cérebro mal formado ou incompleto, abrimos a porta para que cada vida humana possa ser questionada e desprotegida com base na adequação ou inadequação a um padrão de perfeição clínica a ser estabelecida ad hoc. Se os anencéfalos não podem viver, podem ser mortos ainda dentro do útero de suas mães, porque não têm um dos seus órgãos corporais perfeitos, rompeu-se o princípio da dignidade da vida humana tout court. O nosso direito, então, desconhecerá o princípio da dignidade da pessoa humana e conhecerá apenas um princípio da qualidade da vida humana: as vidas que não forem conformes a um padrão clinico de perfeição serão descartáveis. Hoje são os nascituros anencéfalos. Em seguida, os velhos doentes em estado terminal, que serão assassinados “por misericórdia”. Seguir-se-ão os abortos dos portadores de anomalias congênitas graves (como já ocorre com os portadores de síndrome de Down nos países em que o aborto está liberado) e aí ninguém mais estará seguro: quem quer que se encontre numa situação de fragilização, sem poder exprimir a própria vontade, seja por imaturidade (no útero materno, por exemplo), seja por doença ou senilidade, e esteja numa situação clínica desconforme aos padrões de saúde tidos como definidores de uma “qualidade de vida” abaixo da qual a morte do ser humano está autorizada em nome da misericórdia com os familiares ou com eventuais cuidadores, estará sujeito a ter o mesmo destino que se quer dar, hoje, aos nascituros anencéfalos. Assim, poderíamos terminar parafraseando a expressão de efeito do filme “Larry Flint”, colocando-a nos lábios de um nascituro anencéfalo condenado à morte por aborto no próprio útero da mãe: “você pode não gostar do que eu sou; mas está pronto para abdicar do direito que me garante viver?”. Ora, o direito que garante a vida do nascituro anencéfalo é o mesmo que, no fim das contas, garante a nossa.

A mesa

(Num jantar, 'A' e 'B', em lados opostos da mesa, fazem suas refeições, quando A, que estava pensativo, repentinamente fala) A: Nada é certeza. B: Como assim? A: Nós não podemos confiar em nada. Não há nenhum conhecimento do qual não se possa duvidar. Esta mesa, por exemplo: nada garante que ela existe, e, se esta mesa existe mesmo, não podemos ter conhecimento imediato dela. Fale as suas características. B: Ela é castanha, retangular, lisa, e dura. A: Não há nenhum cor predominante na mesa. Vemos cores diferentes na mesa quando olhamos de diferentes pontos de vista, e não há razão alguma para considerar que algumas são mais cores que outras. A experiência de cor da mesa também muda para os daltônicos, sob luz artificial, ou a alguém com óculos azuis, e às escuras não haverá qualquer cor. Não podemos dizer que a mesa tem uma cor só pelo nosso ponto de vista; para evitar favoritismos, somos obrigados a negar que, em si, a mesa tenha alguma cor particular qualquer. B: De fato, cor é uma percepção visual, provocada pela excitação de nossos cones. A mesa não tem cor alguma, porque cor não é uma característica, a característica dos objetos é capacidade de refletir determinados comprimentos de onda. Um daltônico para o verde olha para uma mesa amarela e só enxerga vermelho, mas isso não quer dizer que a mesa é vermelha, ela continua refletindo o comprimento de onda equivalente ao amarelo. E eu, que estou aqui nesta cadeira, vejo a mesa de um ponto de vista diferente do seu, que está sentado à minha frente. Os brancos do brilho que vemos estão é lugares diferentes, mas seria contraditório dizer que a mesa tem, ao mesmo tempo, brilho em um lugar pra mim e em outro para você. Um objeto não pode estar em um lugar e em outro ao mesmo tempo. A mesa reflete ondas em todas as direções, e, se você se mover, você verá outro padrão no brilho da mesa, mas era um padrão que já estava aí. Se você sair da sua cadeira e sentar na minha, você não verá mais a mesa do jeito que você está vendo aí, mas do jeito que eu vejo aqui. Não seria a mesa que mudou, mas sim o seu ponto de vista. Você verá o que eu já estou vendo. A mesa não é apenas o que você está vendo, mas você não pode dizer que, por isso, ela não é nada. Ela é o que você vê, mais o que eu vejo, e mais todos os outros pontos de vista. Se não conseguimos ver a mesa de todos os pontos de vista possíveis simultaneamente, o limite é da nossa capacidade, pois a mesa está ali, refletindo luz para todos os lados, potencialmente visível de qualquer ângulo. A: E a textura da mesa? A olho nu, a mesa parece lisa, mas, ao ver pelo microscópio, notamos várias irregularidades em sua superfície. Qual é a mesa real? A primeira coisa que vem à nossa cabeça é que a mesa do microscópio é real, mas isso mudaria com um microscópio mais poderoso. Se não podemos confiar no que vemos a olho nu, por que podemos confiar no que vemos ao microscópio? B: O problema da textura, que, a olho nu, pode parecer lisa, mas que, sob o microscópio, se permite ver as imperfeições, é similar ao da cor. A textura está ali, e não muda quando vista sob o microscópio, o que muda é o detalhamento do que vemos. Não é culpa da mesa se não conseguimos ver suas imperfeições microscópicas a olho nu, mas é culpa da nossa visão, que não consegue ver coisas microscópicas sem o auxílio de um instrumento. Um microscópio cada vez mais potente permite ver uma mesa cada vez mais detalhada, mas a mesa continua sempre a mesma. A: Mas você não pode dizer que esta mesa é retangular. Isso implicaria em dizer que os lados opostos são paralelos e têm o mesmo comprimento, mas parece, do meu ponto de vista, do seu, e de praticamente qualquer um, que ela tem dois ângulos obtusos e dois ângulos agudos, estes dois lados, que supostamente são parelelos, convergem para um ponto distante, e o lado de cá parece maior que o lado daí. B: A forma de uma mesa não pode ser retangular ou circular. Primeiramente, essas são formas, e, como formas, só existem perfeitamente no plano das idéias. Um objeto quadrado nunca será um perfeito quadrado, pois o quadrado é uma ideia. O objeto pode ter os quatro lados iguais quando medido em centímetros, mas, com uma régua milimetrada, pode-se notar diferenças no comprimento dos lados, e um objeto com os quatro lados iguais quando medido em milímetros pode ser imperfeito quando medido em micrômetros, e por aí vai. O segundo problema de reduzir uma mesa a uma forma como o retâgulo ou um circulo é que estas formas geométricas são planas, ao contrário de uma mesa, que é tridimensional. A forma da mesa não é retangular ou circular, mas sim forma de mesa. O que se pode dizer é que a superfície da mesa é circular ou retangular, e isso está certo, e, mesmo que se mude o ângulo de visão, aquela forma está ali. Não se pode reduzir a natureza de uma coisa ao que se vê dela. Uma mesa com a superfície quadrada vista em perspectiva continua tendo os quatro lados de mesmo comprimento, mesmo que ela tenha aparentemente um lado maior que outro para o observador. ('A' se remexe inquieto na cadeira) A: Qual foi mesmo a outra característica que você disse? Dura? É verdade que esta mesa passa sempre uma sensação de dureza, mas a sensação que obtemos depende da pressão que exercemos sobre a mesa. B: A mesa tem a mesma dureza sempre. O que muda a sensação que você sente é uma força chamada 'normal'. Ela é a pressão que você sente no dedo quando o aperta sobre a mesa. Você não pode dizer que a dureza varia com a variação da pressão. A mesa tem essa dureza, e vai continuar com ela independentemente da pressão que se aplique, tanto que ela quebra se você aplicar uma certa pressão, mas não quebra com nenhuma pressão menor, e quebra com qualquer pressão maior. A: Mas isso ainda não prova que a mesa existe. A mesa real, se existe, não é a mesma da qual temos experiência direta pelos sentidos, ela não poderia ser conhecida imediatamente por nós, mas tem que ser uma inferência do que é imediatamente conhecido. B: Parmênides dizia que o não-ser não é, então você não pode dizer que a mesa não existe porque não pode ser diretamente conhecida por nós. Você não pode afirmar que a mesa não existe porque não tem certeza se ela é lisa ou áspera, pois, ao declarar que ela pode ser uma ou outra, você está dizendo que ela tem que ser alguma das duas. E só o ser é. "A mesa é lisa ou áspera" é uma verdade necessária, pois, se ela não for lisa, ela é áspera. Não tem como a mesa existir e não ser nem lisa nem áspera. Se ela é um dos dois, ela existe, mesmo que você não tenha certeza de qual ela é. ('A' volta a comer e nada mais fala) (Pedro Jacobina)

Rendimento

Por que a sociedade moderna valoriza mais as mentes jovens, se os idosos são mais sábios, por terem vivido mais? Já me disseram que é porque a sociedade valoriza a sabedoria em potência dos jovens. Discordo. Se assim fosse, o ser mais valorizado pela sapiência seria o nascituro, pois este tem toda sua sabedoria em ato. Mas não é o que acontece. O gráfico de preço x demanda tem maior renda no ponto médio, não adianta nada ter o preço mais alto e nada vender, da mesma forma que não gera renda quando tem o preço mais baixo. O ponto médio é o equilíbrio entre preço e demanda, e gera a maior renda. Para a nossa sociedade capitalista, analogicamente, a mente sábia, mas que nada mais pode aprender, não tem valor, assim como a mente puramente potencial nada sabe. A mente ideal seria a que possui conhecimento, mas que ainda tem capacidade de aprender. Não é vantagem ser puramente ato em nossa sociedade individualista. Nada adianta ter se especializado em uma área, e perder suas potências nas outras. A sociedade acha que saber um pouco de tudo é melhor que saber muito de algo, por isso ninguém quer abrir uma porta para fechar outras. Chega um ponto no qual, para a sociedade, não vale a pena transformar sua potência em ato, por que isso diminuiria o seu rendimento. O que é falso, tanto do ponto de vista econômico quanto intelectual, pois a especialização é benéfica para ambos os lados. É melhor para a sociedade ter um ótimo físico e um ótimo químico que ter dois cientistas medianos em ambas as ciências. Mas isso só pode ser levado em conta em uma sociedade que não é individualista, pois a especialização pressupõe trocas. Na sociedade individualista, cada um quer fazer tudo, mas acaba não fazendo nada bem. Isso pode até dar uma base, mas a pessoa acaba sendo básica em tudo. Uma sociedade com especializações e trocas, tanto do ponto de vista financeiro quanto intelectual, é mais eficiente. (Pedro Jacobina)

sábado, 7 de abril de 2012

Crime e Desvio - Hackers

A sociologia, enquanto ciência positiva, não pode fazer julgamento de valor. Ela pode definir desvio e dizer que essa noção é difícil de ser definida, mas, ao entrar na discussão so-bre crime, se um fato supostamente desviante é certo ou não e se a prisão de seu ator foi ou não injusta, o discurso social en-trou num campo de investigação que não é o seu, pois, se um criminoso deve ou não ser preso, não é uma questão sociológi-ca, mas um julgamento. A sociologia pode dizer que o desvio é a fuga dos padrões normais de aceitabilidade, mas não pode julgar esses padrões. Ela pode até apresentar uma opinião, con-tanto que apresente a contrária e permaneça imparcial quanto a essas opiniões. Giddens, no seu texto "Crime e Desvio", justifica que "a noção de desviante não é fácil de ser definida", com o exemplo do hacker Mitnick, que é reverenciado por uns e desprezado por outros. Hitler também foi desprezado pelo mundo, mas, até hoje, é reverenciado, pelos neo-nazistas. Hitler não pode ser considerado um desviante, pois há um grupo que o considera um mártir, um herói que morreu por sua causa de melhorar o mundo, eliminando todos os seres sujos e inferiores, como os judeus, que são mentirosos e fracos, e criaram um falso Deus para encobrir essa fraqueza, e como Hitler já advertira, os ju-deus estão cada vez mais no controle da máquina burocrática, e isso está trazendo o inferno no mundo, nas palavras do neona-zista Steve, no filme "180 Movie". Foi encurralado e preferiu morrer fiel à sua causa a se render. Mitnick diz que "Hacker é um termo de honra e respei-to. É um termo que descreve uma habilidade, e não uma ativi-dade, da mesma forma que a palavra 'médico'." 'Médico' des-creve uma atividade. O médico deve ser formado em medicina e, ainda que eventualmente tenha menos habilidade que outrem que não fez o curso de medicina, ele não deixa de ser médico por isso, e a pessoa que eventualmente tenha mais habilidades que o médico não vira médico por causa disso. Analogicamen-te, ter o conhecimento teórico de hackeamento não torna o in-divíduo um hacker. Programadores têm essa habilidade, mas e-fetivamente pôr essas habilidades em prática é o que caracteri-za o hacker. Só porque alguém tem uma habilidade, não quer dizer que a pessoa exerça essa atividade, e esse conceitos são, de certa forma, próximos, mas distintos. Policiais têm a habili-dade de arrombamento, às vezes até mais habilidade que os ar-rombadores, mas não são como estes, pois não exercem essa a-tividade. Um conhecido contou-me uma vez que ele estava com a polícia na casa de um político, buscando dinheiro de cor-rupção, e, ao se depararem com uma gaveta trancada, o político alegou: "Este armário era de minha filha, só ela possui a chave, mas já deve tê-la perdido. Esse armário está trancado há anos." O policial sacou uma gazua e logo abriu o armário, revelando o dinheiro. No caso dos hackers, o que acontece é que empresas podem contratá-los para que que eles trabalhem como seguran-ças, dessa mesma forma que pode ser concedido perdão judici-al a um bandido que traia a quadrilha e ajude a polícia. "Os hackers se antecipam em ressaltar que a maior par-te de suas atividades não é criminosa. Interessam-se, sim, pri-meiramente, em explorar os limites da tecnologia da computa-ção, tentando revelar furos e descobrir até que ponto é possíel penetrar em outros sistemas de computadores. Uma vez desco-bertas as falhas, a "ética hacker" exige que as informações se-jam compartilhadas publicamente." Seria mais ou menos como ver um pequeno furo no muro do seu vizinho, pegar uma broca, abrir um rombo e então anunciar com um megafone à frente da casa que há um rombo no muro. É diferente de um empregado da casa reparar um buraco no muro e avisar o seu patrão, para que um ladrão não entre pelo buraco no meio da noite. Mitnick ainda diz "No computador, me sinto como al-guém que pega um carro para uma corrida em alta velocidade. Não me considero um ladrão." Não há problema algum em cor-rer num autódromo; correr na rua, porém, é crime, assim como roubar. Mitnick dirige seu computador como um corredor pro-fissional num circuito de corrida ou como um adolescente fa-zendo um "pega" na rua? Giddens ainda diz no seu texto que "Quando iniciamos o estudo do comportamento desviante, devemos considerar quais as regras que as pessoas estão observando e quais estão infringindo. [...] Até mesmo aqueles indivíduos que possam pa-recer completamente fora do terreno da sociedade respeitável [...] estão provavelmente seguindo regras dos grupos aos quais pertencem. [...] (O estudo sobre o crime e o desvio) Também nos ajuda a observar que as pessoas cujo comportamente possa parecer incompreensível ou estranho podem ser vistas como se-res racionais a partir do momento em que compreendemos o motivo que as leva a agirem dessa forma." Um homicídio acon-tece num vilarejo, o cadáver de uma menina de 9 anos é encon-trado violentado num riacho. As investigações levam à prisão de Fulano, que, em seu depoimento, alega que fazia parte de u-ma seita demoníaca que tinha, como rito de iniciação, violentar e depois assassinar uma jovem virgem. O juiz absolve Fulano, e nenhum habitante questiona esse julgamento, pois aquele comportamento estranho e incompreensível daquele indivíduo que parecia completamente fora do terreno da sociedade res-peitável era completamente razoável, depois que as pessoas compreenderam que o motivo que o levou a agir dessa forma e-ra apenas o seguimento de uma regra do grupo ao qual ele per-tencia. O comportamento do hacker Mitnick estava de acordo com as regras do grupo ao qual ele pertencia. Um rapaz com "roupas não-convencionais" tem um comportamento desviante? Depende do lugar onde ele está. Se ele estiver andando na rua, não está sendo desviante, pois não há nenhuma regra que diga que ele não pode andar assim. Mas, se ele for um funcionário público, há uma série de regras que dizem como ele deve se vestir, e alegar que ele se veste com "roupas não-convencio-nais" pois é de uma tribo qualquer não funciona neste caso, pois ele deve agir de acordo com as regras do seu grupo (sua tribo) quando estiver com ele, e deve agir de acordo com as re-gras do outro grupo (seu trabalho) quando estiver trabalhando. Da mesma forma, se o comportamento de Mitnick é aceitável no seu grupo, então ele só pode agir assim no meio do seu gru-po, ou seja, ele só poderia hackear os computadores dos outros hackers, pois independentemente de esse comportamento ser a-ceito ou não no meio hacker, não é aceito fora dele. "O desvio e o crime não são sinônimos, [...] O conceito de desvio é bem mais amplo do que o de crime." De fato, há i-números comportamentos desviantes que não são criminosos, como o do rapaz que veste "roupas não-convencionais". O comportamento hacker, no entanto, além de desviante é crimi-noso; desviante porque, independentemente de os outros ha-ckers aprovarem este comportamento, o grupo maior, a socie-dade como um todo, não apoia; criminoso porque está previsto no código penal, e Mitnick foi preso justamente por seu com-portamento que, além de desviante, é criminoso. O autor cita o grupo Hare Krishna, que possui um comportamento desviante. Sem duvida o comportamente desse grupo é estranho a um nú-mero significativo de pessoas, mas não é, de forma alguma, cri-minoso, ao contrário do dos hackers. (Pedro Jacobina)

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Andrés Torres Queiruga notificado pela Congregação para a Doutrina da Fé espanhola

O teólogo galego Andrés Torres Queiruga, com seu "cristianismo adaptado ao pensamento contemporâneo", acaba de ser definitivamente notificado pela Conferência Episcopal Espanhola. Entre outras coisas, Queiruga nega a historicidade da ressurreição, o que, por via de consequência, nega a própria substância do cristianismo. Se Cristo não ressuscitou concreta e realmente, vã é a nossa fé, já nos advertiu São Paulo ( 1Cor 15, 14). Transcrevo um trecho do texto da notificação, em tradução livre: "(...) Isto nos leva à questão central, que não é outra senão a do conteúdo da fé na ressurreição. Para Torres Queiruga o acontecimento da ressurreição é uma ação de Deus pela qual ele impede que Jesus seja anulado pela morte. A fé na ressurreição não é aceitar a verdade de um acontecimento histórico do qual existem manifestações hisóricamente comprovadas, mas apenas ter a convicção de que Jesus está vivo, em um modo de vida na qual há ausência de corporeidade. Para ele, a Ressurreição do corpo não é um elemento essencial da fé pascal. Na verdade, no pensamento de Torres Queiruga, o lógico seria que o corpo não houvesse ressuscitado. Tampouco as aparições são acontecimentos essenciais para a fé na ressurreição. Para ele, são simplesmente “algum tipo de experiência singular”. O problema, portanto, não está somente em que não aceite as aparições como «manifestações historicamente comprovadas» da Resurreição, mas que para ele tais acontecimentos não poderiam ocorrer. Seu modo de explicar a fé na Resurreição de Cristo não inclui nem a ressurreição do corpo nem as aparições. Estas afirmações do Professor Torres Queiruga modificam substancialmente a compreensão que a fé da Igreja mantém a propósito da Resurreição. O fato de que a ressurreição do Senhor não seja uma simples revivificação de um cadáver não conduz necessariamente a que seja algo alheio à história e sem possibilidade de ser verificado por testemunhos de uma maneira objetiva. O Catecismo da Igreja Católica, que deve ser considerado «como regra segura para o ensino da fé», registra de uma maneira muito precisa como se deve entender a ressurreição, as aparições e o sepulcro vazio: «Ante estes testemunhos é impossível interpretar a ressurreição de Cristo fora da ordem física, e não reconhecê-la como um evento histórico". «Acontecimento histórico demonstrável pelo sinal do sepulcro vazio e pela realidade do encontro dos apóstolos com Cristo ressuscitado, nem por isto a Resurreição pertence menos ao centro do mistério da fé naquilo que transcende e sobrepassa a História». Conceber a ressurreição de outra maneira pode conduzir a uma certa forma de gnosticismo." O texto integral da condenação, em espanhol, está no seguinte link: http://www.conferenciaepiscopal.es/index.php/actividades-noticias-doctrina/2682-notificaciones-sobre-algunas-obras-del-prof-andres-torres-queiruga.html

terça-feira, 27 de março de 2012

Homem racional, homem sem sentido.

Da mesma forma que o método científico é eficaz para produzir conhecimento científico, a lógica é eficaz para produzir verdades. A lógica dedutiva produz verdades analíticas, e a lógica indutiva produz verdades sintéticas. As pessoas não são máquinas que pensam logicamente o tempo todo, muitas das ações humanas são impensadas. Alguns exemplos: - Comer sem ter fome: Os alimentos servem para saciar a fome, logo não tem lógica comer sem ter fome. Mas o homem faz isso, quer seja para não deixar comida no prato, quer seja pelo prazer do sabor da comida. Aliás, o homem é o único animal que vai ali comer uma guloseima porque gosta do seu sabor. Os bichos só saem a caça para não morrerem de fome; - Apaixonar-se: A paixão, não desmerecendo-a, é um sentimento muito bobo, egoísta e introspectivo. O amor é um sentimento externo a si, é um sentimento que tem outrem como alvo; mas a paixão é um sentimento interno, você se apaixona não pela pessoa, mas pela imagem que você projeta na pessoa. Quase kantiano. A paixão é necessária, pois dela vem o interesse em conhecer as pessoas, que pode resultar no amor. Sem a paixão seriamos como os bichos, que cruzam, procriam e pronto. Mas nós não chegamos em uma mulher porque ela está no cio, como os cachorros fazem, mas por causa de algum atrativo dela, que nos faz imaginar se aquela pessoa é como nós imaginamos e queremos que ela seja; - Agir contra os seus princípios morais: Mentir é intrinsecamente mau, mas mesmo assim mentimos, por qualquer motivo que seja. Ninguém que acredita (realmente) em inferno quer ir pra lá, mas pode caminhar em direção a ele. Reclamamos da corrupção, mas nos corrompemos a cada dia. Julgamos ações como erradas, mas praticamo-las; - Gastar dinheiro compulsivamente: Tem gente que guarda as moedas num cofre alegando que, se ficar com elas na carteira, irá gastar. Por quê? Só se sente vontade de chupar bala quando há dinheiro na carteira? Por que as pessoas pedem 10 centavos de troco em bala, mas ninguém tira 20 reais da carteira e compra uma bala?; - Pegar um caminho mais longo porque deu vontade: Logicamente, é muito melhor, em qualquer sentido, pegar o caminho mais curto: melhor aproveitamento do tempo, menos dinheiro gasto com energia para a locomoção... Mas, às vezes, dá aquela vontade inexplicável e insaciável de pegar o caminho mais longo. Só o homem sente essas vontades inexplicáveis, bichos só comem quando têm fome, urinam ou evacuam quando sentem necessidade, não se apaixonam e não pegam um caminho mais longo pro prazer. A diferença do homem para os bichos é que o homem é racional, mas ser racional é agir sempre de acordo com a lógica? De certo que não, pois o homem é o animal mais ilógico que existe: constroi ou destroi coisas porque deu na telha, escreve poemas e rasga-os logo em seguida, ou aprende a tocar um instrumento e só toca para si próprio. São da natureza do homem essas ações ilógicas, exatamente por ele ser racional. Se o homem não tivesse vontades, desejos nem anseios, ele só viveria em função de sobreviver, o que seria a atitude mais lógica, pois tem o melhor custo-benefício, menos gasto de energia para o mesmo efeito: sobreviver. O homem é um ser racional, mas não é um homem que vive em função da razão, como diz Chesterton, em seu livro "Ortodoxia": "Se quaisquer atos humanos podem, inexatamente, ser considerados destituídos de causa, são aqueles menores atos praticados por um indivíduo normal, tais como assobiar enquanto caminha, despedaçar a grama com a bengala, bater com os calcanhares ou esfregar as mãos. É o homem são quem pratica atos inúteis, pois o doente não é suficientemente forte para estar ocioso. E são, por certo, essas ações impensadas e sem motivo aparente aquelas que o louco não pode compreender, pois ele vê sempre razão demasiada em todas as coisas. [...] O louco não é o homem que perdeu a razão, mas o homem que perdeu tudo, menos a razão."

Seis dogmas para escrever

Escrever de boa fé é um ato de amor ao próximo. Eis aí um pensamento profundo e considerável. Para que se escreve? Esta deveria ser a primeira pergunta a se fazer, quando se aborda um texto. Para que o autor deu-se ao trabalho de colocar suas ideias em ordem, e, principalmente, o que ele espera de mim, leitor, quando eu finalmente ler o texto? Este é o questionamento que se faz no presente ensaio. Será que todo texto escrito é, de fato, um ato de amor ao próximo, um compartilhar franco de ideias, ou será que há, em alguns textos, um intuito de dominação do outro? Neste caso, o melhor método, como será discutido adiante, é ver se o autor é coerente com os próprios princípios que ensina em seu texto: um autor cético não tem motivos para tentar convencer ninguém, porque ele próprio em nada acredita. Então, o que o leva a escrever? Um autor solipsista sequer acredita na existência real do outro, ou de coisas fora de si mesmo. Então a quem se dirige? O objetivo do presente texto, portanto, é propor alguns critérios para possibilitar o discernimento quanto à boa-fé de quem escreve, de modo a garantir uma abordagem realmente crítica a um texto: crítica, aqui, não no sentido de demolição irremediável, como parece ser o principal sentido da palavra hoje, mas de ter critério para discernir mais profundamente a proposta do autor, e concordar ou discordar com lealdade. (Paulo Jacobina) Não se pode escrever um texto se se duvida de tudo. Quando eu escrevo um texto, eu creio em seis coisas, que julgo serem realmente o mínimo em que se deve acreditar para escrever. I - O primeiro dogma ao escrever um texto é acreditar em si mesmo: Se não acredito em mim mesmo, como posso ter certeza de que estou realmente aqui escrevendo? Para executar qualquer ação, primeiramente eu tenho que acreditar que eu existo. Se eu não existo, que diferença faz eu deitar na cama e ficar ali sem fazer nada ou escrever um texto? Se eu ficar na cama parado eu morrerei. Será? Eu nunca tentei e, afinal, eu não existo mesmo. Se eu morrer, que diferença faria? Eu tenho que acreditar que eu estou aqui, tenho que acreditar que sou um ser vivo, que sou uma pessoa humana para começar a escrever. Tenho que acreditar na minha realidade e na minha materialidade. Estou aqui, presencialmente. Eu existo como corpo, como pessoa. Eu existo no mundo. II - O segundo dogma é acreditar em seu próprio intelecto: Não basta apenas acreditar em mim mesmo. Eu tenho que acreditar na razão e que eu consigo raciocinar. Eu não poderia escrever um texto sobre a irracionalidade humana, salvo se eu não fosse humano, o que não é o caso. Eu sou humano, e sou racional, o que eu penso faz sentido, é inteligível e por isso eu não estou perdendo meu tempo ao gastá-lo pensando. Se eu não tivesse um intelecto, eu não poderia sequer pensar na ideia de texto, quem dirá escrever um. Para eu pensar que penso, eu tenho que crer no meu pensamento. III - O terceiro dogma é acreditar nas palavras e em seus significados: Eu penso, e o que eu penso faz sentido. Mas como eu posso ter certeza que as palavras que eu escrevo refletem esse meu pensamento? Os significantes têm que corresponder com os seus significados, e as estruturas semânticas têm que ser válidas para que qualquer pensamento seja verbalizado, quer seja na escrita ou na fala. Eu não posso falar que as palavras não refletem os pensamentos, pois então estas próprias palavras que eu proferi não refletiriam o que eu pensei. IV - O quarto dogma é acreditar nos outros: Se não houver ninguém para ler, não adianta eu escrever. Só há comunicação quando há interlocutor. Um dos elementos da comunicação é o receptor. Um diálogo precisa de dois interculocutores, e um monólogo, apesar de só uma pessoa falar, é necessário que haja alguém para ouvir. Uma árvore que cai numa floresta onde não há ninguém pra ouvir não faz barulho. V - O quinto dogma é acreditar no intelecto das outras pessoas: Não adianta a pessoa ler o que foi escrito, se ela não entender o que foi escrito. Eu posso até acreditar nos outros, mas não adianta eu escrever se eu achar que os outros não vão entender o que eu escrevi. Eu jamais pagaria um centavo sequer por um livro escrito por Kant: se sou eu que projeto minha mente no livro, então eu não tenho que pagar os direitos autorais pelo esforço que Kant teve para escrever o livro, ele que deveria me pagar pelo meu esforço de projetar a minha mente na página incognoscível do livro. VI - O sexto dogma é acreditar no valor das outras pessoas: O receptor pode até ler e entender o que eu escrevi, mas qual o meu interesse nisso? Se for apenas retorno financeiro, então eu estaria sendo picareta, pois não escreveria para transmitir uma mensagem, mas sim para ganhar dinheiro. É claro que os escritores profissionais têm que ganhar dinheiro do que escrever, para que eles sobrevivam, mas isso é uma consequência. Todos temos que ganhar dinheiro para sobreviver de alguma forma, e o escritor escolheu escrever por sua paixão à escrita ou por uma vocação. Uma pessoa que escrever apenas para ganhar dinheiro não merece que seu livro seja lido. Há várias funções da linguagem, mas todo texto tem, nem que seja um pouco, sutilmente escondido entre as outras, a função referencial, na medida que sempre há uma mensagem, que quer ser transmitida, e que tem um valor em si mesma. Escrever (de boa fé) é um ato de amor ao próximo. Quando eu escrevo, crendo verdadeiramente no que escrevo, eu estou sendo caridoso com os outros, ao difundir na sociedade aquilo quanto ao qual estou certo. Se eu fosse individualista, não adiantaria eu escrever para os outros, uma vez que a única pessoa que importa sou eu. (Pedro Jacobina)

Conhecimento científico

"Os dogmas são as 'verdades incontestáveis', impostas por um ser controlador para iludir e enevoar as mentes, enquanto a ciência é passível de questionamento, as verdades científicas podem ser testadas.", é o que dizem os cientificistas, defendendo que só a ciência pode embasar as discussões e que todo argumento não científico é inválido, pois não pode ter sua veracidade contestada. Em que fundamento científico essa declaração se apoia? Não há nenhum experimento científico que prove que só o método científico é válido. O método científico não explica todas as coisas, apenas o conhecimento científico. O método científico não explica nem ele próprio. A frase: "só o conhecimento científico, ou seja, o que pode ser provado e reproduzido em laboratório, é válido" não pode ser provada nem reproduzida em laboratório, pois o método científico não é um conhecimento científico. O método científico não passou pelo método científico, pois antes do método científico não existia método científico. O método científico é um dogma, no sentido de que é um ponto funtamental apresentado como certo ou indiscutível. Não concorda? Prove, cientificamente, que o método científico está certo. Um conhecimento só é ciência porque alguém disse: para ser ciência, tem que passar pelo método científico. Esse método científico é o que indica se uma teoria é uma verdade científica ou não, então ele não pode ser aplicado nele mesmo, pois, se ele é a causa da verdade científica, ele não pode ser também sua consequência, se não isso acabaria numa tautologia, ele justifica algo e é justificado por esse mesmo algo, e isso não é científico. O método científico é um meio, não um fim. O método científico é o conjunto de procedimentos que produz o conhecimento científico, e o conhecimento científico é tudo que é produzido do método científico. Isso é tautológico, pois o método científico, como o nome sugere, é um método, e não um conhecimento. O método científico é taxonômico, ele é feito pelo homem e para o homem. Dois corpos em queda livre aceleram com a mesma velocidade, independentemente do homem, mas o método científico foi criado pelo homem, e a maneira como ele se apresenta só depende da vontade do homem. Só é ciência o que passa pelo método científico, mas tudo o que existe no mundo depende da ciência? Os cientificistas exaltam o método científico porque o conhecimento científico gerado a partir dele pode ser questionado. "Ao contrário dos dogmas, a ciência pode ser aperfeiçoada quando tem alguma falha, e, por isso é melhor." O que é "melhor"? Melhor é um julgamento de valor, e julgamentos de valor não podem ser provados cientificamente. Um cientificista só pode classificar o conhecimento em científico e não-científico, jamais em melhor ou pior. O método científico é importante: sem ele, estaríamos todos limitados ao senso comum. Daí a dizer que qualquer conhecimento que não derive do método científico é senso comum vai uma distância muito grande. Todo ouro é metal, mas nem todo metal é ouro. Analogicamente, todo conhecimento científico está sujeito a questionamentos e aprimoramentos, mas nem tudo o que muda é conhecimento científico. A sociedade é dinâmica, isso é um fato. Os valores, em sociedades diferentes, são também diferentes, assim como os paradigmas. Mas isso não quer dizer que as sociedades mais novas são melhores que as passadas. Qual a justificativa para dizer que a sociedade atual é melhor que a medieval? Dizer que a sociedade atual é melhor porque a medieval não conseguiu sobreviver e evoluiu até chegar na nossa é inválido, pois a nossa também vai chegar a um ponto em que não será suficiente para acompanhar as mudanças de paradigmas, então ocorrerá uma revolução. Se esta sociedade não permanecerá com o tempo, ela está no mesmo nível das outras que não perduraram até hoje. Um país tem poder bélico para destruir a Terra três vezes, outro tem poder para destrui-la cem vezes. Quem é melhor? Os dois estão no mesmo nível, pois a Terra só pode ser destruída uma única vez. Da mesma forma, dizer que a sociedade atual é melhor porque ela já antingiu a perfeição é não vai mudar é igualmente inválido. Vamos supor que esta realmente seja uma sociedade perfeita e que não irá mais mudar. Mas porque o cientificista exalta a ciência? Não era por que o conhecimento científico é passível de questionamentos e mudanças? Ora, se a sociedade atual não estivesse sujeita a mudanças, então também ela não seria científica. Até porque a afirmação "A sociedade moderna é científica" não tem sentido algum. Conhecimento científico é o que é passível de questionamentos, mas o objeto de conhecimento não necessariamente é passível de mudanças. Você pode questionar a gravidade, questionar o método que o cientista usou para calcular a sua aceleração, se os corpos estavam realmente em queda livre, sem atrito, se o cronômetro era preciso, se a experiência pode ser reproduzida com os mesmos resultados... Mas nenhum questionamento vai mudar o fato de que a aceleração da gravidade é a mesma para quaisquer corpos em queda livre. O valor da aceleração da gravidade pode ser corrigido, aproximado, mas a gravidade continuará a mesma. Assim como o homem. O funcionamento do corpo humano pode ser questionado, mas isso não vai mudá-lo. O homem é o mesmo desde que surgiu, e apesar de o conhecimento acerca dele ter mudado com o tempo, isso não mudou o homem. Desde que o homem é homem, ele é homem. O homem é essencialmente homem, e sua essência não mudará em momento algum, se não, ele deixa de ser homem. Se nem o homem muda, por que as coisas têm que mudar? A natureza do homem e a mesma que sempre foi, e a essência dos seres sempre foram as mesmas, então por que dar valor somente às coisas que mudam? Será que os dogmas não mudam por que não podem ser questionados, ou não mudam por que eles já são plenamente verdadeiros? O conhecimento sobre Deus muda. São Tomás de Aquino começa a Suma Teológica questionando se Deus existe. Dogmas podem ser questionados, mas, independentemente dos paradigmas da sociedade, a verdade continuará sendo a mesma. Dizer que Deus existe ou não existe não vai mudar o fato de que Deus existe. Os dogmas podem ser questionados e negados, mas a verdade não vai mudar. É mais fácil questionar uma verdade do que uma mentira. Por isso é tão fácil questionar um dogma, mas justificar um dogma em prejuízo de uma mentira é uma tarefa árdua. Duas pessoas estão num zoológico, em frente à jaula dos elefantes. Pessoa A diz: -Todos os elefantes são cinza. Pessoa B questiona: -Por quê? Por que não podem haver elefantes rosa? -Porque não há elefantes rosa. -Prove-me que não há elefantes rosa. É impossível provar o que não é verdade. E, mesmo provando que uma coisa é verdade, qualquer pessoa pode questionar isso, e esse questionamento é impossível de ser respondido cientificamente, mas sim pela razão e pela lógica. Todos os elefantes são cinza. Essa afirmação é impossível cientificamente. Nós só podemos afirmar que todos os elefantes que foram vistos até hoje eram cinza, mas não podemos dizer que não existem elefantes rosa. Pois, para provar que os elefantes todos os elefantes que já foram vistos são cinza, é só procurar em qualquer zoológico, livro ou floresta por um elefante, mas para provar que não há elefantes rosa não há como não mostrar os elefantes rosa, pois isso só mostraria que você não excluiu a possibilidade de eles existirem. Mas você pode afirmar que os elefantes são cinza porque os elefantes são cinza, e o questionamento não vai mudar a verdade de que todos os elefantes são cinza. Independentemente disso, caso descobrissem um elefante rosa, então a verdade seria que os elefantes podem ser cinza ou rosa. Neste caso, a afirmação "todos os elefantes são cinza", seria falso desde o princípio. Não foi a verdade que mudou, mas sim o conhecimento. Dizer que o homem é homem porque é homem pode parecer bobo, até tautológico, mas há gente que acredita, e de boa-fé, que os homens não necessariamente são homens só porque são homens, da mesma forma que as pessoas poderiam não acreditar que os elefantes são cinza porque são cinza. Questionamentos bobos só podem ser respondidos com justificações bobas, como Moore, quando diz que Kant não pode afirmar que tudo fora da nossa mente é incognoscível, "provando" a existência de suas duas mãos ao tocar em uma com a outra, mas, apesar de sua justificativa ser muito simples, a apresentação dessa ideia no texto é complexa, da mesma forma que explicar que os elefantes não são rosa por que são cinza é complexo, apesar de a justificativa "Os elefantes não são rosa por que são cinza" ser simples. (Pedro Jacobina)

quarta-feira, 21 de março de 2012

Transexualidade e essência

Qual o valor de uma palavra? A palavra tem um relação intrínseca com o seu significado? Ou a palavra tem o significado que você quer dar para ela? Há alguns anos, me perguntaram o que eu achava da alma. Comecei a discorrer sobre o assunto, que a alma, junto com o corpo, forma uma pessoa; que a alma é imortal, indestrutível, e por aí vai. Lá pelas tantas, a criatura falou; "Discordo!" E começou a dizer sua opinião. "Perdão, mas temo que a senhorita não esteja a falar sobre alma, mas sim sobre espírito.", eu disse. "Mas, para mim, alma é isso.", ela respondeu-me. Na sociedade atual, uma palavra não necessariamente tem o significado que ela tinha. Antigamente, quando se dizia "homem", era sabido que o objeto da discussão era um ser da raça humana do sexo masculino. Dizer que ela possui um pênis era desnecessário, pois isso deveria ser uma característica essencial do homem. Esta semana, vi uns colegas discutindo se "pegariam" um transexual, se pegariam um homem com silicone e cujo pênis foi amputado. O ápice da discussão foi o comentário que ouvi: "Pegaria sem problema, se fosse gostosa...". Seria hipocrisia negar que ri, não sou deveras rabugento, mas o comentário factualmente me incomodou, e não pude deixar de intervir: "Eu não sei você, mas eu nunca ficaria com uma pessoa que um dia teve um pênis entre as pernas.". Segundo o dicionário online de português, homem é "Pessoa do sexo masculino, macho.". Uma pessoa que nasceu do sexo masculino e teve seu órgão sexual amputado deixou de ser homem por causa disso? Como diz a sabedoria popular: "Vaso que carrega querosene não serve para carregar água.", o transexual não vira uma mulher, mas sim um eunuco. Emasculação é o nome que se dá à operação de retirada da genitália masculina. Um transexual é uma aberração. A melhor definição de transexual que eu já ouvi foi "homem com peitinhos", e ele é verdadeiramente isso, corta o pênis fora não transforma a pessoa numa mulher. Os defensores do transexualismo dizem que, sendo as diferenças físicas entre um homem e a mulher o órgão sexual, ao transformar um pênis numa vagina, o ser, que nasceu do sexo masculino, vira uma mulher. Aquilo não é uma vagina, mas sim um pênis mutilado. Assim como "alma" tem um significado, independente do que minha colega achava, "homem" também tem, e não é uma opinião que vai mudá-lo. Alguém que nasce homem é essencialmente um homem, e não é um acidente que vai mudar sua condição de homem, assim como um morcego que eventualmente perca as asas não deixa de ser um morcego, ainda que o morcego seja famoso por ser o único mamífero capaz de voar. (Pedro Jacobina)

IV. FETOS E ESTUPROS

15. O Código Penal brasileiro classifica claramente o aborto como crime: Art. 124. Provocar aborto em si mesma ou consetir que outrem lho provoque: Pena: detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos. Mas, no Art. 128. Não se pune o aborto praticado por médico: Aborto necessário. I - Se não ha outro meio de salvar a vida da gestante; Aborto no caso de gravidez resultante de estupro. II - Se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal. 16. Não se pune o aborto em tais casos, mas isso não quer dizer ele que seja permitido. "No Brasil, o aborto diretamente provocado é sempre crime, haja ou não pena associada a ele. O artigo 128, CP, não diz que o aborto “é permitido”. Nem sequer que “não é crime”. Diz apenas “não se pune”. A lei pode deixar de aplicar a pena ao criminoso após o crime consumado (por exemplo, fica isento de pena o furto praticado entre parentes – art. 181, CP), mas não pode dar permissão prévia para cometer um crime." (http://www.providaanapolis.org.br/aborecif.htm) 17. Não é verdade que uma mãe, cujo filho nasceu de um estupro, sempre que olha para ele lembra-se da cena do estupro e então sente qualquer tipo de sentimento negativo como ódio ou tristeza. As mães que levam a gravidez resultante de um estupro adiante e dão a luz ao filho amam-no tanto quanto uma mãe que não foi estuprada ama seu filho. Há muitos casos de mulheres, várias delas menores de idade, que engravidaram de estupro e amam muito seus filhos. Algumas pensaram em abortar, outras em se matar, mas elas hoje não se arrependem de ter levado a gravidez adiante. 18. Você abortaria em caso de estupro? Mataria um humano inocente? Se tudo o que foi dito anteriormente não foi o suficiente para se convencer de que o feto é uma vida, isso não justifica o aborto. Ou você enterraria uma pessoa cuja morte não foi verificada? Se não se sabe se um feto é vivo ou não, seria mais seguro deixá-lo quieto, pois, ao matar um ser cuja vida é incerta, está se arriscando a eliminar uma vida. É como jogar roleta-russa: você não sabe se a arma vai disparar o projétil contra você ou não. Você apertaria o gatilho? Você arriscaria acabar com sua vida? Então por que você arriscaria acabar com a vida alheia? Ou, como disse o Pe. Teodoro da Torre del Greco: “O caçador não pode disparar quando duvida se o objeto percebido ao longe é homem ou animal selvagem” 19. Sobre o nº 13, o argumento usado foi o de que a lei permite que se aborte um feto em caso de estupro, mas não em caso de anencefalia. Como dito no nº 16, a lei não permite, apenas não pune, da mesma forma que condena uma pessoa que causa um acidente de trânsito que mata sua família por homicídio, mas essa pessoa não cumpre pena. O aborto, em qualquer caso, é um crime, e, mesmo que não fosse, isso não o tornaria uma solução ou uma atitude correta. Eu não posso atirar numa pessoa que eu não sei se está viva. Por que eu poderia matar um feto que eu não sei se está vivo? (Pedro Jacobina)

terça-feira, 20 de março de 2012

Melhor Reinar no Inferno que Obedecer no Paraíso

Paulo Jacobina “Que importa onde eu esteja, se eu o mesmo Sempre serei, — e quanto posso, tudo?... Tudo... menos o que é esse que os raios Mais poderoso do que nós fizeram! Nós ao menos aqui seremos livres, Deus o Inferno não fez para invejá-lo; Não quererá daqui lançar-nos fora: Poderemos aqui reinar seguros. Reinar é o alvo da ambição mais nobre, Inda que seja no profundo Inferno: Reinar no Inferno preferir nos cumpre À vileza de ser no Céu escravos.” Este é o grito de guerra de Satanás no inferno, segundo John Milton, no seu “Paraíso Perdido”, livro 1, tradução de Antônio José de Lima Leitão. Este tem sido o grito de guerra de muitos, hoje em dia. É melhor reinar no inferno do que servir no paraíso, dizem. Não é um grito original: aos que gritam assim, diz-nos John Milton, antecedem-nos o grito de Satanás. Mas será que é assim mesmo? Será que este grito por liberdade, vindo da boca de Satanás, é sincero? Será que se ele se opõe, como um grande lutador pela liberdade, a um Deus tirano, que usa sua onipotência como prepotência, para construir um reino tirânico no qual a obediência cega é recompensada pelos prazeres paradisíacos, enquanto no inferno, privado de todo conforto, o Diabo luta heroicamente pela sua própria liberdade, renunciando, em favor dela, aos confortos do céu com o qual o divino tirano compra a obediência dos conformistas? Não é assim. E digo porque: 1. Deus não é um tirano onipotente, mas um pai todo amoroso. Assim Ele se revela. E devemos confiar na revelação divina sobre Deus, não no retrato que o Diabo faz dele. 2. A revolta do Diabo não busca a liberdade, mas o poder. Por isso, ele não o dividiria com os sequazes, ou mesmo com os que, iludidos com a natureza de sua busca, renunciam ao amor de Deus imaginando que este grito se aplica a eles. O inferno não é uma democracia, e o diabo não ama: manda. 3. Não se trata de uma luta escatológica; a luta pela possessão das pessoas não se dá no pós-morte, mas aqui e agora. Normalmente aqueles que, seduzidos pelo grito de guerra de Satanás, renunciam a viver no amor de Deus em busca da “liberdade” que o Diabo prega começam a viver no inferno aqui mesmo. Por outro lado, os que se entregam ao amor de Deus têm aqui mesmo a posse antecipada do que se espera, ou seja, como diziam os antigos, os que se entregam ao amor de Deus têm o privilégio de prelibar o céu – não como um prêmio, mas como uma consequência. 4. Deus corrige, o Diabo não. Mas isso se dá porque as palavras têm valor diferente, quando pronunciadas na Revelação de Deus, e quando pronunciadas no grito demoníaco. Deus corrige porque quer que seus filhos sejam excelentes no que fazem, livres sem restrições, e não os deixa nunca caminhar no caminho do auto-aprisionamento. Ele sabe que a liberdade é o amor irrestrito, e não o poder sem limites. O Diabo, por outro lado, não ama, e por isso é complacente com quem busca a autodestruição. Voltando, portanto ao item 01 supra. O retrato que o Diabo faz de Deus no poema de John Milton é o retrato que muitas pessoas têm, hoje, de Deus. Deus é “mais poderoso do que nós”, diz o segundo verso do poema acima, e é esta a característica que o Diabo pinta de Deus, e é isto que o Diabo inveja em Deus: Deus é odiável porque é mais poderoso do que nós! Assim somente no inferno nos livraremos de um Deus assim onipotente, ou melhor, prepotente. Cabe-nos resistir a ele com todas as nossas forças, e mesmo à custa de todos os nossos confortos com que Deus nos seduz para nos conquistar e escravizar: cabe resistir à “vileza de ser no céu escravos”. Ora, esta é exatamente a demanda moderna por uma “moral pura”. Nest sentido, a proposta do Diabo, em John Milton, é mais “ética” (num sentido kantiano) do que aquilo que o Diabo aponta como sendo a proposta de Deus. Explico: o Diabo aponta Deus como um déspota todo-poderoso que oferece o paraíso ao preço da vil escravidão da vontade. Neste paraíso, portanto, o homem renuncia à vontade para usufruir das delícias divinas. Quer dizer, o homem é como um escravo corrompido pelo conforto supremo, um verme submetido ao déspota arrogante que é Deus, à troca do prazer fácil. Ao descrever-se, porém, o Diabo mostra-se como um libertário: renuncie a todos os confortos burgueses que Deus oferece no Paraíso e venha ser livre aqui no inferno, onde Deus não tem poder porque não pode corromper-nos com sua oferta de conforto em troca de obediência. Aqui não prometemos confortos, mas não há nenhuma exigência de obediência; portanto, todos os seus atos serão livres, isto é, terão sua origem na sua consciência, na sua autonomia, e não em promessas de confortos pós-vida. Renuncie ao paraíso, livre-se da tentação divina e seja livre; seja forte o suficiente para ser livre, mesmo infeliz, e seja mais ético do que quem é escravo da própria felicidade. Diz Pinckaers, num texto que se aplica ao que estamos agora refletindo: “Do século catorze em diante a perspectiva mudou radicalmente. A questão da felicidade foi rapidamente posta de lado, e a análise moral foi cada vez mais focada nas obrigações impostas pela lei como expressão da vontade divina. Os manuais de teologia moral já não contêm um tratado sobre a felicidade, como São Tomás tinha, embora ele permaneça como a grande autoridade. Consequentemente, na visão dos manualistas, pode-se construir uma ética e viver uma vida moral sem sequer se considerar a questão da felicidade. Kant, por seu turno, critica o que ele chama de “eudemonismo” (do termo grego “eudemonia”, que significa felicidade), criticando qualquer sistema que introduzisse nas intenções morais uma consideração da felicidade vista como um fim. Ele sustenta que “todos os eudemonistas são egoístas práticos” e assevera que “fazer do eudemonismo o fundamento da virtude é praticar eutanásia na moralidade”. Ele estava reagindo contra o utilitarianismo, que estava surgindo na Inglaterra nessa época, e que propunha a felicidade como o fim da ética moral, mas uma felicidade que era vista como o bem-estar do maior número. Ele queria resguardar a excelência do ato de intenção transformando-o em pura obediência ao imperativo categórico.” Assim, a proposta do Diabo, no Paraíso Perdido de Milton, é bem kantiana: faça aquilo que lhe parece o bem, mas não em troca das doces promessas de Deus; faça-o porque lhe parece bem, e você será tão mais ético quanto mais renunciar ao paraíso como causa de suas ações boas. Mas não é assim. A causa das ações boas não é a recompensa do paraíso, como o Diabo acusa Deus de propor, nem, por outro lado, a afirmação de uma completa autonomia do Eu à custa de qualquer promessa de conforto, como o Diabo promete no poema de John Milton. A fonte de qualquer ética cristã é o próprio amor. E isso o Diabo não conhece. Eu disse acima que Deus é o próprio amor, e não um tirano onipotente, como o diabo o retrata no poema de Milton – que é o retrato que temos de Deus na maioria dos nossos debates contemporâneos. As nossas boas ações, as nossas ações verdadeiramente livres vêm do amor, não da autonomia indiferente da vontade. Neste ponto, lembro=me de uma discussão que tive, certa feita, com um amigo cristão, mais íntimo do amor de Deus do que eu. Eu me queixava com ele, dizendo-lhe que eu sempre achei estranho que o primeiro atributo ligado a Deus, no nosso credo apostólico, era a onipotência. Eu dizia: “acho ruim que a primeira coisa que se fale de Deus no credo seja: 'creio em Deus Pai todo-poderoso'. Será que o primeiro atributo de Deus é ser todo-poderoso, ou ser todo amoroso? Deveríamos falar: 'creio em Deus Pai todo amoroso!'”. Para minha surpresa, ele me respondeu: “você está enganado. Ser todo poderoso não é o primeiro atributo de Deus no credo. Olhe de novo”. Eu olhei, e disse: “é sim! Veja: “creio em Deus Pai Todo Poderoso!” “Pois é”, ele me respondeu. “O primeiro atributo de Deus é ser pai. Ser pai vem antes de ser 'todo poderoso', e é indissociável dele. Assim, Deus é um pai todo poderoso, e é todo poderoso para ser pai, e é como pai que ele é todo poderoso. Ser todo poderoso não é um fim, como o diabo pensa. O fim é ser pai, não no sentido simplesmente masculino do termo, mas no sentido familiar mesmo: a paternidade aí é usada como atributo neutro de geração, não atributo masculino de dominação”. Eis aí. Enquanto o Diabo está lutando pelo poder absoluto, Deus está vivendo o amor absoluto. Não há um Deus tirano e ditador arrogante, subvertendo-nos pela promessa de um paraíso pós-morte. Isto é o retrato que o Diabo faz de Deus, para que nos revoltemos contra Deus e caiamos no inferno, onde o Diabo, cuja sede é pela onipotência, pode “reinar seguro” sobre nós, sem qualquer temor de que o amor de Deus venha nos resgatar da situação irremediável que é estar no inferno, isto é, submetido àquele que tem sede de poder absoluto e despreza completamente o amor absoluto. Não podemos acreditar no que o Diabo diz sobre Deus: ele pinta um retrato falso de Deus para que nos revoltemos contra o Deus verdadeiro e caiamos no inferno, onde o Diabo, que não ama, reinará onipotente sobre nós. Sobre as mentiras do Diabo, nada melhor do que uma advertência de C. S. Lewis no prefácio de suas “Cartas do Inferno”: “Os leitores são advertidos a conceituar o Diabo como um mentiroso; nem tudo que o Screwtape [o nome do diabinho que Lewis retrata em seu livro] diz poderia ser assumido como verdade, mesmo do seu próprio ponto de vista.” Ou seja, ainda que o Diabo soubesse – e de fato ele sabe – que Deus é o puro amor, e não o déspota arrogante que ele procura retratar – ele não nos diria. É claro que nesta história há apenas um lugar em que caímos nas mão de um déspota arrogante e sedento do poder absoluto, onde esta déspota exerce tal poder ilimitadamente sobre nós, seguro de que o Amor jamais intervirá em nosso favor: e tal lugar é o inferno. Eis porque o grito do Diabo, de que apenas no inferno exercemos nossa liberdade plenamente, porque somos plenamente autônomos, livres da sedução eudêmica do amor de Deus, é falsa. Sem o amor, ou seja, sem o bem, não há diferença entre o Estado e uma quadrilha. E quem diz isso não sou eu: é o grande Agostinho de Hipona, no seu livro “Cidade de Deus”. Uma cidade em que o poder fosse exercido como um fim em si mesmo, uma ética em que o único imperativo é doar a si mesmo as normas a seguir e segui-las a qualquer custo apenas porque se está convencido de que elas são a expressão autônoma da própria vontade individual livre, ou seja, uma expressão da liberdade individual, como fins em si mesmas, sem preocupações com o amor, com o bem, com a felicidade no sentido mais profundo, mais profundamente espiritual do termo, é uma cidade infernal. Explico-me. Afirmar que é preciso estar totalmente a salvo do amor de Deus, que é preciso excluir-se completamente de tal amor para se poder ser realmente livre, é exatamente a estratégia do verdadeiro tirano supremo, aquele que é faminto pelo poder absoluto, de conseguir os escravos perfeitos para a sua dominação: aqueles escravos que, desprezando conscientemente o amor, creem que a sua liberdade perfeita consiste em ter sempre adiante de si, indiferentemente, todas as escolhas ao mesmo tempo. Este é exatamente o conceito de liberdade contemporâneo: mais livre é aquela pessoa que pode escolher mais alternativas, e não aquele que, escolhendo bem, usufrui dos benefícios da sua boa escolha e renuncia às seduções que a má escolha lhe traz. A pessoa contemporânea, neste conceito indiferente de liberdade, nem sequer pode admitir que há boas escolhas e más escolhas: ela está paralisada no próprio ato de escolher, e vê nisso sua única liberdade. Por isso jamais escolhe: cada escolha lhe faria ter uma opção a menos (aquela que foi preterida em favor da escolhida) e portanto, cada vez que escolhe, o homem contemporâneo se sente menos livre. Assim, escolhe não escolher, na ilusão de que, não escolhendo, terá sempre todas as escolhas diante de si como possibilidades abertas, e portanto, será sempre sumamente livre. Na verdade, ele está apenas sumamente paralisado, e por isso é o objeto perfeito para a dominação absoluta que o Diabo pretende sobre ele. Chesterton já disse com genialidade no seu livro “Ortodoxia”: “adorar a própria escolha é recusar-se a escolher”. E exemplifica: “Todos os adoradores da vontade, de Nietzsche ao sr. Davidson, estão na realidade completamente vazios de volição. Eles não podem querer; eles mal podem aspirar. E se alguém precisa de uma prova disso, ela pode ser achada muito facilmente no seguinte fato: eles sempre falam da vontade como algo que se expande e se liberta. Mas é exatamente o contrário. Cada ato de vontade é um ato de autolimitação. Desejar uma ação é desejar uma limitação. Nesse sentido todas as ações são ações de sacrifício de si mesmo. Quando você escolhe uma coisa qualquer, você rejeita tudo o mais. Aquela objeção que os homens dessa escola costumavam levantar contra o ato do casamento é realmente uma objeção contra todos os atos. Todos os atos são uma irrevogável exclusão por seleção. Exatamente como quando você se casa com uma mulher desiste de todas as outras, assim também quando você toma um caminho de ação desiste de todos os outros caminhos. Se você se torna rei da Inglaterra, desiste do posto de bedel em Brompton. Se você vai a Roma, sacrifica uma vida rica e sugestiva em Wimbledon.” (Ortodoxia, Chesterton, cap. III, o Suicídio do Pensamento). Assim, este é um falso dilema, que o Diabo nos propõe, nas palavras brilhantes de John Milton: Escolha o inferno, renuncie às tentações de conforto que Deus antepõe à velada submissão total da sua vontade que Ele exige como condição da sua entrada no paraíso, seja forte o suficiente para sobreviver aqui no gélido inferno que a crueldade divina criou para nós os anarquistas libertários, os que não se submeteram à sua infinita onipotência, e venha ser absolutamente livre: venha poder escolher tudo e qualquer coisa sempre, com total autonomia, submetendo-se apenas à sua vontade pura e livre do arrogante onipotente. O que o diabo não diz é que a vontade individual pura e absolutamente autônoma, a vontade que sempre pode escolher tudo e nunca se aprisiona por nada, nem pelo amor de Deus, é sempre a vontade paralisada. Cada escolha implica renunciar à alternativa contrária. Mas isto não é diminuir sua liberdade: isto é exercê-la. Somente sou livre para ter uma companheira se também for livre para renunciar a todas as outras. Vale dizer, exemplificando: aquele homem que quiser ser livre para ter todas as mulheres jamais será livre para ter alguma. Assim, não se trata de renunciar a um paraíso no pós-vida para ser livre no aqui e agora, tomando posição a favor do Diabo “libertário” contra o Deus “arrogante”, com a coragem de escolher o inferno e ser livre ou submeter-se ao Deus prepotente em troca do paraíso e ser um eterno prisioneiro. Trata-se de viver o inferno aqui e agora: quem escolhe contra Deus não escolhe a liberdade suprema de ter todas as opções: escolhe a paralisia suprema de não poder escolher nenhuma sem renunciar imediatamente à outra e ser aparentemente menos livre... Quem escolhe ir para o inferno depois de morto já está no inferno desde agora. E quem quer que tenha um pouco de autoconsciência, quem possui um mínimo de autocontemplação e honestidade pode olhar para si mesmo e ver que isto é uma suprema verdade: paraíso e inferno não são apenas realidades escatológicas: são realidades existenciais imediatas. Escolha Deus: somente esta primeira escolha permite que você possa caminhar por todas as outras com tranquilidade, sabendo que a quem ama tudo é permitido, como dizia Agostinho de Hipona. A quem ama é dado escolher e viver as suas escolhas com absoluta convicção de que as aparentes renúncias, que se dão quando se escolhe um caminho e não outro, serão repletas do Amor que as plenifica, e não há perdas em escolher e viver até o fim em conformidade com as respectivas escolhas. Será um mestre em cada um dos caminhos que escolheu, porque caminhou neles até o fim e absorveu deles a sabedoria que continham. Reinou em cada caminho, porque os escolheu e percorreu com liberdade: os filhos do rei são reis por direito. Escolha o Diabo e já não poderá fazer nenhuma escolha, porque cada uma será vista como uma diminuição de liberdade. Chegará ao fim da vida paralisado, encarquilhado, sem ter uma profissão para não renunciar à possibilidade de ter todas as outras, sem ter uma família para não renunciar à possibilidade de ter todas as outras, sem ter uma casa para não renunciar à possibilidade de ter todas as outras, sem ter um deus para não renunciar à possibilidade de ter todos os outros. E, finda a vida, já não há mais tempo nem possibilidade de fazer escolhas: ao não ter feito nenhuma, você renunciou igualmente a todas as alternativas, e o diabo escolheu por você. Por fim, uma última palavra: se o inferno é o lugar em que vão os que preferem reinar do que obedecer, resta a pergunta: os que vão para lá, se querem todos igualmente reinar, reinarão sobre quem? Da minha parte, acho que o mais poderoso, lá, simplesmente submeterá o menos poderoso, porque a fome de poder, num lugar assim, vai sempre além do bem e do mal. E o mais poderoso, lá, já se sabe quem é. Na ânsia de reinar sem obedecer no aqui e agora, os que escolhem o inferno estão sempre destinados a obedecer sem reinar.