No post de ontem, eu mencionei que, para negar o acesso racional a Deus, Kant negou a possibilidade do próprio conhecimento verdadeiro, tal como era entendido nos sistemas filosóficos até então. O problema da aprendizagem não é um problema simples. Partindo de uma antropologia filosófica, poder-se-ia afirmar que aprender nos faz humanos. Animais podem ser adestrados, computadores podem ser programados. Somente pessoas podem aprender.
A questão, portanto, toca profundamente a nossa própria realidade existencial humana. Compartilhamos com os animais a nossa natureza sensível, e, como eles, adquirimos um conhecimento sensível a partir dos estímulos que nos são trazidos pelas coisas. No entanto, somente nós, humanos, ainda segundo a melhor filosofia aristotélico-tomista, temos a capacidade de abstrair, a partir dos dados empíricos, e chegar à aprendizagem intelectual, que distingue os seres dotados de inteligência daqueles que não o são .
Por outro lado, num modelo antropológico de origem kantiana, o conhecimento é a aplicação de “formas” cognitivas “a priori” que realizam a construção de um “objeto” ali onde a inteligência encontra uma “coisa”; ou seja, o que está fora da própria mente é incognoscível. O numenon, ou a coisa em si, seria, para Kant, inatingível para nós; todos os nossos conhecimentos são o resultado da aplicação das formas ou categorias a priori sobre uma realidade incognoscível .
Neste sentido é que os educadores modernos falam da aprendizagem como uma “construção do conhecimento”. Partem de uma noção muitas vezes idealista, kantiana da realidade, em que nada se conhece, portanto nada se ensina e tampouco nada se aprende, sendo a educação uma “construção de conhecimento” feita pelo educando a partir da orientação, a rigor estritamente metodológica, do mestre.
A filosofia aristotélico-tomista não exclui, de modo algum, a participação do sujeito na construção do conhecimento, mas não abre mão da relação entre a aprendizagem, o sujeito e a coisa conhecida, porque não pode abrir mão da verdade – compreendida como “adequação entre o conhecimento e a realidade conhecida”. Essa noção de verdade fica desvalorizada nas atuais correntes pedagógicas de fundo idealista, notadamente de inspiração kantiana. Nestas, a “verdade” é apenas a correção metodológica da “construção” do objeto pelo sujeito, já que a “coisa em si” é incognoscível. Daí sai o receio, na pedagogia moderna, de falar em “erro”. Onde já não se reconhece a verdade senão formal e subjetivamente, o erro também fica diluído.“Kant parte del principio de que el “objeto” conocido, si es universal y necessario, há sido “construido” por el sujeto, es obra suya. Pero no enteramente, pues em esse caso mas que conocer sólo pensaríamos. Para conocer hace falta, por un lado, “ricibir” unos datos, y por otro “dotarlos” de unas determinadas caracteristicas que los conviertan em objetos de conocimiento. Eso que el sujeto aporta es lo que él llama transcendental, y le da esse nombre porque no puede faltar nunca, porque está mas allá de cada objeto concreto, pos si faltara tampoco habría objeto alguno.” (Gonzales, Rafale Corazón, Kant y la Ilustración, pág. 105. Madrid, Editora Rialp, 2004).
Num trecho do seu livro "Hereges", Chesterton põe uma questão bastante interessante: o desenvolvimento de técnicas e da ciência da aprendizagem, no mundo contemporâneo, foi seguido pela ideia de que nada se pode ensinar e aprender de verdade, de que cada um deve construir seu próprio conhecimento e de que não há nem uma verdade , nem um sentido reconhecível, na educação. Ele diz:
"Cada um dos modernos ideais e frases populares é uma desculpa para se esquivar do problema do que é bom. Gostamos de falar de “liberdade”; isto é uma desculpa para se evitar discutir o que é bom. Gostamos de falar do “progresso”; isto é uma desculpa para se evitar discutir o que é bom. Gostamos de falar de “educação”; isto é uma desculpa para se evitar discutir o que é bom. O homem moderno diz: “Deixemos todos esses padrões arbitrários e abracemos a liberdade.” Isso, se logicamente compreendido, significa: “Não decidamos o que é bom, mas decidamos que é bom não decidir.” Ele diz: “Fora com nossa antiga fórmula moral; sou pelo progresso.” Isso, logicamente compreendido, significa: “Não estabeleçamos se uma coisa é boa; mas estabeleçamos se vamos ganhar mais com ela.” Ele diz: “Não é nem na religião nem na moral, meu amigo, que reside a esperança da raça, mas na educação.” Isso, claramente expresso, significa: “Não podemos decidir o que é bom, mas vamos dá-lo a nossos filhos.”
O abandono da noção de verdade, em nome de uma falsa liberdade, de uma falsa tolerância, levou-nos ao paradoxo que ele aponta: já não podemos discernir o que é o bem, o que é a verdade, mas queremos dá-los aos nossos filhos. O mero desenvolvimento de técnicas psicológicas de aprendizagem nos levará, assim, a um mundo em que saberemos, cada vez mais, como se aprende, mas não saberemos o que se deve aprender.
Hoje vemos a psicologia retomar a ideia de "sentido" como necessária à própria vida humana. “A busca do indivíduo por um sentido é a motivação primária em sua vida, e não uma “racionalização secundária” de impulsos instintivos. Esse sentido é exclusivo e específico, uma vez que precisa e pode ser cumprido apenas por aquela determinada pessoa. Somente então esse sentido assume uma importância que satisfará a sua própria vontade de sentido. Alguns autores sustentam que sentidos e valores não são mais do que mecanismos de defesa, formações reativas e sublimações. Mas, pelo que toca a mim, eu não estaria disposto a viver em função dos meus “mecanismos de defesa”. Nem tampouco estaria disposto a morrer simplesmente por amor às minhas “formações reativas”. O que acontece, porém, é que o ser humano é capaz de viver e até de morrer por seus ideais e valores.” ( Frankl, Victor, Em Busca de Sentido. Petrópolis, Ed. Vozes, 1991. Pág.92).
Por outro lado, quando falo de verdade, não falo da simples adequação entre o conhecimento e o conhecido, como se define na psicologia do conhecimento aristotélico-tomista, mas da verdade existencial, aquela cuja busca honesta transforma a vida. “A verdade como retidão do agir e da palavra humana tem o nome de veracidade, sinceridade ou franqueza. A verdade ou veracidade é a virtude que consiste em mostrar-se verdadeiro no agir e no falar, guardando-se da duplicidade, da simulação e da hipocrisia.” (CEC, § 2468).
Num mundo em que a cultura relativista é auto-implodida pelos próprios culturólogos, nada tem valor suficiente para ser entregue ao educando. Como notou Werner Jaeger, “Hoje estamos habituados a usar a palavra “cultura” não no sentido de um ideal próprio da humanidade herdeira da Grécia, mas antes numa acepção bem mais comum, que a estende a todos os povos da terra, incluídos os mais primitivos. Entendemos assim por cultura a totalidade das manifestações e formas de vida que caracterizam um povo. A palavra converteu-se num simples conceito antropológico descritivo. Já não significa um alto conceito de valor, um ideal consciente”. (Jaeger, Werner, Paideia, a Formação do Homem Grego. São Paulo, Martins Fontes, 1986, pág. 7). Este relativismo transformou a educação numa técnica, ou a serviço da transformação do homem num tecnólogo, ou a serviço de uma ideia de revolução permanente que não pode levar a nenhum lugar senão ao nada – revolucionar não é um verbo intransitivo, como parecem acreditar os pós-gramscianos.
Sem o resgate dos valores do bem, do verdadeiro e do belo, sem o resgate da verdadeira paideia cristã, estamos construindo uma educação que limita-se à construção de técnicos e tecnocratas, ou, pior ainda, de iconoclastas que encontrarão, para destruir, apenas uma sociedade já em ruínas.
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