terça-feira, 6 de abril de 2010

o Capítulo III

O capítulo III do livro que nunca escrevi. Parei porque achei que não estava ficando lá muito original, os últimos parágrafos da fala do frei, depois que eu escrevi, me soaram muito Jean Guitton. Eu sempre paro um texto quando descubro que outra pessoa já escreveu antes, e bem melhor do que eu, sobre o assunto. Isso está ocorrendo aqui, também.
Cap. III
Eu não consigo acordar antes do frei, ele sempre levanta mais cedo para rezar suas laudes. Mas mesmo assim, acordei bem cedo. Fiquei pensando no que Fernanda me dissera no dia anterior, sobre a minha busca freudiana por uma mãe morta. Sei lá, talvez ela tenha razão. Eu bem queria que ela tivesse, porque seria mais fácil se tudo que eu estivesse procurando fosse a minha mãe morta.

Na verdade, eu cresci com a tia Terezinha. Maravilhosa, um trator. Melhor dizer um tanque de guerra. Quem tem a tia Terezinha não tem tempo para ter frescuras psicológicas. Ainda me lembro daquele dia, aos oito anos de idade, em que ela me fez voltar andando para casa porque eu não quis rezar o terço no caminho da chácara. Caminhei nove quilômetro soltando fumaça de raiva. Não foi a primeira vez que eu voltei do meio do caminho andando, por desobedecer a Tia.

O dia amanheceu nebuloso em Jerusalém, o trânsito já estava ruim antes das sete da manhã. Aqui na parte antiga é um sufoco. Desci para o restaurante do hotel, para o café da manhã. O frei já estava lá, rezado, escovado e banhado, luzindo como o éden no primeiro dia da criação.

Bom dia, irmão.

Bom dia, Probo, a paz de Cristo. - Ele puxou a cadeira para me receber. Ficamos um pouco em silêncio, aproveitando o café da manhã, com o qual eu ainda não me costumara. Peixe, coalhada seca, salada verde, pão árabe, tanta coisa diferente.

Às vezes eu não entendo, Probo. Não sei direito porque você insistiu tanto para que eu viesse, mesmo com uma despesa tão alta como a que você está arcando. Você parece não ter muita paciência com as coisas que eu falo.

Não ligue para a minha rabugice, Irmão, pode falar. Estar ao seu lado é uma aula de cultura. - falei, tentando ser delicado. Também não sei ao certo por que o convidei, mas não vou dizer isso a ele. Prossegui, para desanuviar – A Fernanda disse ontem, no telefone, que essa busca pela arca é uma metáfora para a minha busca por mim mesmo.

Hum, - grunhiu o Frei. - A arca não é uma metáfora, é uma caixa de madeira revestida de ouro, na qual está depositada a lei de Deus, as tábuas recebidas por Moisés no Sinai. Para fazer uma busca metafórica de si mesmo a gente não precisa sair do quarto. Pode viver como viveu Kant, na mais rígida rotina pessoal, sem nunca sair da sua aldeia nem fazer nada diferente. Acho que você não está buscando algo que está em você mesmo, senão não teria viajado tão longe. Seria uma imbecilidade, não é mesmo?

Mas será que no fundo ela não tem alguma razão?

Probo, a gente hoje se acostumou a pensar que nós somos Deus, que Deus somos nós, por isso toda busca nos parece uma busca interior. Mas você não é Deus, querido, lamento dizer. É por isso que a sua busca está te levando tão longe, porque você está buscando algo que sabe que não tem.

Mas eu não estou buscando a arca, não sou uma espécie de Indiana Jones subdesenvolvido, talvez eu esteja buscando conhecer a minha mãe um pouco mais, compensar a convivência que não tive com ela na infância...

O que te leva para fora de si mesmo de qualquer modo. Não há como conhecer melhor a sua mãe sem fazer um movimento para o exterior. E esse é um movimento profundamente cristão.

Como assim, Frei? - agora ele me surpreendera de verdade.

Está disposto a falar um pouco de filosofia? Dom Serra ainda vai demorar um pouquinho para chegar.

Coloquei um pouco daquela pasta de grão de bico no pão árabe e consenti.

Se lembra o quanto nós comentávamos sobre a cristandade medieval, com sua filosofia realista e profundamente teísta? Para os medievais o fundamento da realidade estava fora deles mesmos, estava totalmente em Deus, que era o Ser por excelência. E esse Ser por excelência manifestara-se concretamente a eles em Jesus. No caso dos antigos judeus, a coisa era ainda mais material: Deus deixava manifestações palpáveis, como pedras gravadas numa caixa de madeira e ouro. Ninguém precisa buscar a si mesmo quando tem Deus tão perto. No entanto, e paradoxalmente, é muito mais fácil encontrar-se: sou um servo daquele que deixou seus rastros na caixa, era o que pensavam os judeus. Ou sou um filho daquele que encarnou, como pensavam os cristãos. Claro que os questionamentos profundos florescem nesses contextos. Pense, por exemplo, no Livro de Jó, ou nas Confissões de Santo Agostinho. Mas há pouco espaço, em culturas assim, para angústias existenciais profundamente desestabilizadoras como o ceticismo radical moderno ou a psicanálise mitológica freudiana. Mas o distanciamento temporal, a complexidade da vida européia, a Reforma e o iluminismo levaram o homem para muito longe de Deus, porque o levaram pra muito longe da realidade exterior.

Como assim? - Não era fácil seguir o raciocínio do Frei.

O que você acha mais fácil, acreditar que Deus existe ou acreditar que eu existo?

Claro que é acreditar que você existe.

Pois é, assim parece, uma vez que você está me vendo e me ouvindo. Mas podíamos ambos ser apenas personagens de um livro, e não saberíamos disso.

Ih, Frei, desculpe, mas agora você viajou na maionese. Já bebeu assim de manhã cedo?

O Frei deu um sorriso largo.

Meu querido, mesmo os ateus mais empedernidos acreditam em alguma força absoluta que condiciona a realidade tal como eles a conhecem. Portanto, acreditam em alguma divindade. Pode ser a força da matéria transformada pelo trabalho humano, como os marxistas, ou a força da história, como os hegelianos, ou a força do tesão, como os freudianos. Mas há sempre uma força primeva condicionando todo o resto. Nisso todo mundo acredita. O difícil não é acreditar nisso, é acreditar que esta mesa aqui existe fora da minha cabeça...

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