Eu não acredito que aqueles pensadores, principalmente juristas, que hoje estudam e escrevem seriamente em ataque à religião, ou (mais especificamente) ao monoteísmo, ou, ainda mais fortemente, ao cristianismo, ou mais especificamente à Igreja Católica Apostólica Romana ajam assim por má-fé, por desonestidade intelectual ou por arrogância. Creio que há dois fatores que levam tais intelectuais, tão preparados, cultos, inteligentes e raciocinando tão clara e logicamente, a atacar a fé, o monoteísmo, o cristianismo e a Igreja: uma sincera defesa de uma sociedade mais livre, tolerante e pacífica, por um lado, e a tendência natural de justificar intelectualmente a escolha de um bem aparente em prejuízo de um bem real.
Com relação a este conflito entre o bem aparente e o bem real, remeto a um texto existente aqui no blog, colocado em fevereiro deste ano, chamado “a liberdade, a tentação, o bem e o mal”. Eu acrescentaria apenas que quando o coração humano escolhe um bem aparente, ao invés de um bem real, tende a justificar a sua escolha, quer defendendo o bem aparente que escolheu como o mais elevado naquela circunstância, quer atacando o bem real para rebaixá-lo a um nível inferior ao do bem aparente escolhido, quer negando que se possa sequer falar na existência de um bem real. Assim, quem acha que parte da liberdade consiste, por exemplo, em obter o máximo de prazer sexual que quiser, ou entesourar o máximo de dinheiro que quiser, ou dominar o outro como quiser, tenderá a elencar estes três valores como elegíveis num universo em que não se poderia apontar nenhum valor ou bem como mais elevado do que eles, pela inexistência de um referencial que permitisse discernir, entre os bens, aquele mais elevado.
Assim, a pretensão católica à verdade parece intolerável e intolerante. Intolerável porque, se admitida, permite que o homem possa distinguir entre bens mais importantes e bens menos importantes, levando à presumível redução da liberdade de escolha indiferente entre os vários bens colocados à disposição do homem, ou mesmo entre o bem e o mal. Intolerante porque, uma vez de posse dessa régua, o ser humano tenderia a impor seu próprio compasso moral aos outros, o que leva às guerras, à perseguição e ao fanatismo.
Incomoda aos filósofos e pensadores autodeclarados ateus o fato de que “a religião católica proclama a verdade – inclusive a verdade 'racional' de sua fé. A ponto de, de fato, fora da 'verdade revelada', a pessoa ficar 'definitivamente fora da verdade pura e simples'.” (É a queixa de Paolo Flores D'Arcais no livro “Deus Existe?”, em que ele debate com o então Cardeal Ratzinger sobre a Igreja). D'Arcais queixa-se que a filosofia da modernidade já elaborou as objeções irrespondíveis a essa pretensão, através, por exemplo, de Hume, Freud ou, principalmente Kant, e a Igreja, não as tendo conseguido refutar, persiste teimosamente proclamando uma “verdade” pretensamente racional que a razão não a permite proclamar. Assim, a defesa da verdade revelada como racional seria fanática, e a revelação somente seria admissível, para a filosofia moderna, como “loucura”, na forma defendida por São Paulo na Carta aos Romanos, nunca como razoável ou racional. Vale dizer, somente a fé protestante, que empurrou de fato a revelação para o campo do irracional, do emocional, seria admissível para a modernidade iluminada.
Ocorre que a refutação de Kant às “vias” tomistas comprobatórias da existência de Deus foi feita por diversos autores. Recomendo, pessoalmente, Leonel Franca (seu excelente texto “Nas Origens do Agnosticismo Contemporâneo” está disponível na Internet), que mostra que, junto com a refutação das “vias” de prova da existência de Deus, Kant jogou fora a própria razão, aprisionando a inteligência humana num mundo de aparências autoprojetado. Minha mãe diria que Kant jogou o menino fora, junto com a água do banho. Para negar o acesso racional a Deus, Kant negou o acesso racional a qualquer realidade extramental. O preço foi muito alto...
Por outro lado, o próprio Hegel, idealista como é, desancou aquela história de Kant a respeito das “cem moedas imaginárias”. Eu lembrarei rapidinho: Kant dizia que a “via” ontológica de provar a existência de Deus – aquela de Santo Anselmo, que assegura que sendo Deus um ser perfeitíssimo, a existência deve estar necessariamente contida em si, porque um ser perfeito que existe é necessariamente mais perfeito do que um ser perfeito que não existe, seria furada. Para Kant, a existência não acrescenta perfeição ao ser. Cem moedas imaginárias, para ele, teriam o mesmo valor de cem moedas reais. Hegel já havia classificado esse raciocínio kantiano de “tosco”, no § 51 da Enciclopédia, proclamando que, no Absoluto, existência e conceito não podem ser pensados de forma excludente. Para o absoluto, existência e conceito identificam-se. Parece que o sr. Paolo Flores d'Arcais precisa ler melhor seus filósofos idealistas.
Mas voltemos aos pensadores ateus contemporâneos, e a sua convicção de que o seu niilismo – a rejeição de qualquer ideia de uma fonte última de verdade transcendente ao mundo, para além das diversas verdades objetivas que se pode reconhecer no próprio mundo, e da ideia de que essa verdade transcendente governa a realidade e estabelece o bem, o verdadeiro e o belo para todos nós aqui na imanência. Para eles – pelo menos até onde eu entendi – tal niilismo seria a condição intelectual mais pacífica e pluralística, exatamente por não assumir nenhum sistema de crenças que determine que há um único caminho correto a ser trilhado, que deveria ser imposto, portanto, mesmo a quem não creia nele. Assim, ser ateu seria livrar-se da subserviência a credos, à fantasia religiosa, ou a qualquer forma de absolutismo cultural ou moral, e estar liberado de qualquer desejo de controlar o semelhante.
O ateísmo seria, portanto, o sistema racional do futuro. Não se trata, portanto, de não acreditar em nada, mas de não considerar nenhuma crença como importante o suficiente para excluir nenhuma outra. Por isso, o primeiro alvo, para esses pensadores, é qualquer sistema de crenças que se declare como verdadeiro.
Assim, não existiria uma “busca pela verdade”, porque uma verdade última a ser buscada simplesmente não existe. Apenas “verdades” que conviveriam em paz, desde que nenhuma se proclame como transcendente ou superior às outras.
A questão que se impõe é: se o pacifismo e o pluralismo são o fundamento para a rejeição de qualquer busca a uma verdade transcendente, como estabelecer, num sistema assim, que o “pacifismo” e o “pluralismo” são valores a serem perseguidos prioritariamente? Uma vez derrubada a ideia de que há valores imponíveis por si mesmos, em razão de uma verdade transcendente, todos os valores ficam relativizados – incluídos, aí, o pacifismo e o pluralismo. Vale dizer, numa sociedade sem valores transcendentes, ninguém pode garantir, tampouco, o pacifismo e o pluralismo.
Neste ponto, acho que Nietszche era o mais honesto e coerente dos niilistas. Ele declarou expressamente as razões pelas quais não gostava do cristianismo: exatamente porque o seu discurso de “caridade” e “compaixão” impediam o sofrimento do homem mais forte – aquele sem clemência com o que ele via como fraqueza – uma sociedade pluralista, respeitosa com o mais fraco, tolerante com o diferente, e que ele apontava como amolecimento decorrente do cristianismo. Eliminado o cristianismo, para Nietszche, estaria aberto o caminho para o super-homem, aquele movido pela “vontade de poder”, que eliminaria o fraco e abriria caminho para um mundo da força, do poder e da majestade do homem autossuficiente. Coerente, esse tal Nietszche. De fato, alguns anos depois, houve a tentativa de se eliminar esses valores cristãos da sociedade e fazer surgir à força o tal super-homem, e a humanidade conheceu suas duas guerras mais sangrentas.
Mas, com o ateísmo “liberal” contemporâneo, ocorre algo diferente. Eles querem retirar a escada na qual a tolerância, a fraternidade e o pluralismo se sustentam – a existência de valores transcendentes estabelecidos na Verdade última sobre o homem e sobre Deus – e querem, a um só tempo, permanecer com tais valores, vale dizer, construir uma sociedade de irmãos matando, a um só tempo, o Pai. Não há irmãos sem um Pai comum. E se a única fraternidade possível, numa sociedade assim, é a fraternidade dos que se unem para matar o próprio Pai, então o resultado é previsível. Começamos matando o Pai, em seguida abortamos os nossos filhos, repudiamos as nossas esposas para “casar” com os próprios “irmãos” e, por fim, nos destruímos, porque nenhuma espécie sobrevive destruindo a prole e estabelecendo relações afetivas essencialmente estéreis. Pessoalmente, opto por Deus.
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