segunda-feira, 5 de abril de 2010

O capítulo II

Mais um capítulo do livro que não escrevi...
Voltamos para o hotel, no meio de Jerusalém. Realmente, Jerusalém é uma cidade linda, como diz o salmo: “Jerusalém, cidade bem edificada, num conjunto harmonioso”. A van circulava por ruas estreitas, cheias de casas de pedras. Realmente não parecia uma cidade que fora destruída e reconstruída 18 vezes, como o Frei me dissera. Ele parecia distante. Aproveitei para contemplar a cidade, seu frenesi. Na verdade, essa viagem tinha começado por iniciativa minha, não do Frei. Eu estava pagando sua passagem e estadia. Mas eu o havia chamado. Na verdade, eu não lhe contara, mas estava realizando uma angústia de muito tempo: estava procurando minha mãe.

Quer dizer, eu sabia muito bem que minha mãe tinha morrido há mais de trinta e cinco anos, e que a minha querida tia Marlene (a quem eu dedicava amor filial) me criara desde então como verdadeiro filho. Mas das poucas coisas que a minha mãe me deixara, a que mais me intrigava era o seu diário. Ela tinha uma fixação com a Arca de Davi, e colecionava referências históricas e bíblicas a esse objeto, que para mim era apenas mítico. Tudo isso, é claro, muito antes que se ouvisse falar em “Indiana Jones” e outras besteiras do gênero. A minha velha mãe, de quem tenho apenas vagas lembranças, nunca saiu da nossa cidade, nem fazia, acredito, o gênero aventureiro. Sua busca não passava de anotações numa velha agenda, basicamente anotações de passagens bíblicas ou de referências bibliográficas.

A noite começava a cair sobre Jerusalém. O aspecto da Cúpula da Rocha era magnífico, seu dourado reluzente sob os pôr do sol. O Frei me havia dito que aquilo era ouro mesmo: que, em Jerusalém, tudo o que parecia ouro era, de fato, ouro. A van se dirigia ao Hotel Notre Dame de Jerusalém, onde estávamos hospedados. Esse hotel, de propriedade católica, erguia-se majestoso na parte antiga da cidade, bem próximo aos antigos muros. Quando nos aproximamos do hotel, o Frei ainda estava retirado nos seus pensamentos, com o livro de orações nas mãos. Agora, depois de conviver com ele mais um pouco, eu já estava mais acostumado com seus hábitos inflexíveis: sempre que acordava, ao meio dia e às seis ele interrompia o que estava fazendo para, puxando seu velho breviário, rezar a liturgia das horas. Também estava me habituando a ir à missa todos os dias com ele, embora esses velhos rituais significassem pouco para mim. Eu queria somente saber um pouco mais sobre a arca, porque queria sabem um pouco mais sobre a minha mãe. Como eu disse, as minhas lembranças não passavam de velhas recordações muito vagas. Na verdade, eu lembrava muito mais claramente da sensação de conforto e proteção que ela me proporcionava na infância do que propriamente de sua imagem. E essas sensações fugidias, essa percepção tranquila de estar protegido, era tudo que me restara da minha mãe, morta tão jovem. Isso e aquela velha agenda com anotações sobre a arca. E foi por isso que eu resolvi vir a Jerusalém, queria saber mais sobre a arca e, conseqüentemente, sobre a minha mãe. Queria que ela significasse mais para mim do que umas fotos velhas e umas sensações meio vagas. E a coisa mais pessoal que ela me deixara fora o seu caderninho.

Quando chegamos no hotel, o Frei fechou seu livro de orações. Descemos da van e ele apontou a imagem de Maria que dominava a fachada do majestoso hotel.

Veja que coisa linda!

É só uma velha estátua, Frei. Nem é muito bem feita.

Não, é uma oração em pedra. Repare na humildade de Maria, veja como ela, de cabeça baixa, eleva o menino Jesus acima de si própria. E veja como o menino abençoa a cidade que o rejeitou.

O menino se ergue, orgulhoso – comentei, só para ter o que dizer.

Orgulhoso? Como assim? Um Deus criança? Um Deus frágil e pobre, criança humilde de cidade pequena, nascida numa caverna? Onde já se viu coisa assim? Não, não há nenhum orgulho, aí. Só a verdadeira majestade dos humildes. Nascido numa caverna, morto numa cruz, ressuscitado num túmulo emprestado. Abençoando a cidade que o rejeitou.

Resolvi ficar calado, por não ter mais o que dizer. Mas o Frei tinha razão. A estátua de fato transparecia o que ele estava dizendo, toda a simplicidade de Maria, cabisbaixa, elevando seu Deus menino para abençoar a cidade inteira. Entramos no belo saguão do hotel.

Frei, você disse umas coisas sobre a porta Oriental que não me saíram da cabeça.

Vamos subir, tomar um banho e descemos para a missa das seis e meia. Depois da missa, durante o jantar, conversaremos.

Assisti a missa com a cabeça meio distante, esperando a hora do jantar. Mil perguntas passavam pela minha cabeça.

No belo restaurante do hotel, o frei pediu uma sopa, enquanto eu comia uma massa muito gostosa.

Não consigo me acostumar com isso de restaurantes e jantares, Probo. Tantos irmão de rua passando fome...

Meu querido Frei, pense que nem todos os carentes estão na rua. Não tenho como agradecer a sua companhia.

O Frei benzeu-se e rezou brevemente antes da refeição, deixando-me meio sem jeito. Não sabia se eu devia me persignar também, ou se aquilo pareceria falso, mera imitação por vergonha.

Vamos conversar agora, querido. - disse o Frei, enquanto tomava sua sopa. - A Fernanda ligou?

Ligou, Irmão. Ainda está bem azeda. Acho que meu casamento só não acabou desta vez porque o senhor aceitou vir a Jerusalém comigo.

Ela ainda está resmungando por causa da sua viagem?

Está, ela falou alguma coisa sobre uma busca freudiana pela mãe, algo como complexo de édipo mal resolvido, disse que não sabe se vai ter paciência para esperar.

Ela está se sentindo diminuída, Probo, porque você não a trouxe conosco. Eu também não devia ter vindo, acho que me meti no meio de uma crise conjugal.

Não, frei, eu te agradeço demais ter aceitado vir. Eu viria de qualquer jeito, a Fernanda não viria de jeito nenhum. Ela não tem idéia do que é ter perdido a mãe na infância, ainda tem a mãe dela até hoje. Ela está carente e magoada com a minha viagem. Mas eu tinha que vir agora, enquanto tinha tempo e dinheiro, não podia perder esta licença do trabalho. Além disso, tenho de fato contas a acertar com o meu passado, preciso encontrar traços mais nítidos da minha mãe.

E você – disse o Frei, olhando-me nos olhos – tem tratado ela bem no telefone?

Não tanto como deveria – falei, com toda sinceridade, tentando fugir do olhar agudo do Irmão. - Mas não é isto que está me angustiando agora.

E que é que te está angustiando?

Especificamente aquilo que o senhor falou mais cedo, Frei, sobre a necessidade de passar pelo pórtico do Oriente para ser reconhecido como Rei e Messias. Jesus não passou por ali, passou? Como ele poderia ser reconhecido como tal?

Bom, é uma longa história. Mas parece que temos tempo, agora, para longas histórias. Tudo começa com a visão descrita em Ezequiel 44, 1 a 2. Ali, está descrito que este pórtico, que era o pórtico exterior oriental do antigo Templo, deveria ficar fechado. Que não se abriria e que ninguém deveria passar por ele, porque por ele teria entrado o Senhor Deus de Israel. Ali se sentaria o príncipe para comer pão. Por isso, sempre se esperou que o Messias entrasse por aí.

Mas ele não entrou, não é? Jesus nunca passou por este portal.

Não, pelo menos fisicamente. Bom, na verdade, o portal já foi construído e destruído, depois da profecia. O interessante é que um sultão otomano lacrou a porta na idade média, para evitar que o messias judaico entrasse por aí. Além disso, na crença de que o rei judeu não poderia passar por um cemitério sem tornar-se impuro, construíram um cemitério muçulmano em frente à porta, para atrasar ainda mais o messias, quando ele viesse comandar os judeus contra os muçulmanos, dando tempo aos muçulmanos para organizar o seu exército. Mas tudo isso ocorreu muito depois de Cristo, e por isso nos interessa pouco. Voltemos a Cristo.

É verdade, - disse eu, ainda encantado com as histórias do Frei. - voltemos a Cristo. Como ele poderia ser reconhecido como o verdadeiro Messias se ele não cumpriu a profecia de Ezequiel?

Na verdade ele cumpriu. O portão dourado, a porta oriental, para nós, não é uma construção. É uma pessoa.

Ih,- eu disse, meio impaciente. - Lá vem você com suas histórias de monge velho!

Querido, foi você quem perguntou. Quer saber ou não? - disse o Frei, com alguma impaciência.

Desculpe, não quis ser grosseiro. É claro que quero saber.

Vou te dar uma pista, está no Cântico dos Cânticos.

Nem vou tentar. Fala logo...

No ao capítulo 4 do Cântico dos Cânticos, temos a seguinte passagem maravilhosamente bela: “És jardim fechado, Minha irmã, noiva minha, és jardim fechado, uma fonte lacrada”. Quer dizer, Maria é a porta. Assim, se o jardim está fechado, se a fonte está lacrada, se na porta oriental, em que passou a Glória do Senhor, ninguém mais passará, é necessário reconhecer que Maria tem que ter permanecido virgem mesmo após o parto, para que as profecias se cumprissem. Assim, ela seria a porta fechada por onde passou a Glória de Deus. Este é, na verdade, o sentido pleno daquela passagem de Ezequiel.

Mas isso não ocorreu, não é? Mesmo admitindo que Maria tenha concebido virgem, ela não ficou virgem após o parto, ficou? A Bíblia não disse que ela teve outros filhos?

Bom, se você acredita nisso, então terá que admitir comigo que Jesus não era o messias, uma vez que a porta por onde ele passou não ficou fechada. Para que Jesus seja o messias, ele tem que cumprir todas as profecias, esta inclusive. Mas declarar que Maria não é sempre virgem é dizer que a porta oriental, onde passou o Messias, não permaneceu fechada. Então ela não era a porta oriental e, por conseguinte, Jesus não era o Messias.

É muita sutileza, não sei se eu entendo, acho que o vinho me pegou. Vou dormir, Frei, não quer ir também?

Vou já, acho que vou até a capela rezar as completas na frente do sacrário.

Qual o roteiro para amanhã?

Dom Serra vem nos pegar para irmos procurar Obed-Edom.

Quem? - perguntei, meio confuso.

Obed-Edom, o levita a quem Davi confiou a Arca, lembra? Não é possível que você não tenha feito as leituras bíblicas que eu indiquei.

Confesso que não fiz, pelo menos com a atenção que deveria. Mas quem é esse Dom Serra?

É aquele bispo pesquisador que eu te falei, arqueólogo e filólogo, especialista em arqueologia bíblica.

Brasileiro?

Sim, brasileiríssimo, um grande mestre internacional em idioma indo-europeu. Além de uma figura simpaticíssima. Pode ir dormir. Se tiver tempo, leia o primeiro livro de crônicas, capítulo 13, além do mesmo texto em 2 Samuel 6.

Dever de casa?

E atrasado. Deus o abençoe. Boa noite.

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