Olhando ontem as minhas coisas, encontrei o primeiro capítulo de um livro que nunca escrevi, um diálogo entre Probo e o Frei Tomás em pleno Getsêmani. Transcrevo aqui para vocês:
I
Eu estava bem cansado. O calor de outubro me atingira. Sentei-me no pequeno pátio da igreja da Agonia, de onde as pessoas saíam lentamente após a missa. Aos pés das oliveiras, onde dizem que Jesus suou sangue, eu contemplei a muralha de Jerusalém.
Talvez essas oliveiras sejam contemporâneas de Jesus, disse Frei Tomás. - Você sabe que as oliveiras não morrem, elas vão rachando e rebrotando internamente, de modo que estas podem muito bem ser as mesmas que assistiram Jesus rezar.
Desculpe, frei Tomás, tudo aqui parece meio falso, não acredito muito em nada por aqui. Duvido que essas muralhas tenham sido as mesmas que Jesus contemplou, tudo aqui já foi construído e reconstruído tantas vezes!
Não é impressionante mesmo assim? Imagine-se aqui, num final de tarde, olhando para essas mulharas imensas e todo o poder que elas encerram, sabendo que em pouco tempo você, sozinho, nu, desarmado e insone, estaria prestes a enfrentar um império religioso e um político, contando apenas consigo mesmo e com a verdade.
E o que é a verdade?
Não sei se você sabe, Probo, mas essa foi pergunta que Pôncio Pilatos fez a Jesus no Pretório, enquanto o interrogava.
E Jesus não respondeu nada, ficou calado.
Fitei, desafiante, o Frei. Lá vinha ele tentando me converter, de novo.
Não estou tentando te converter – ele protestou. Essas coisas aconteceram mesmo, bem aqui.
Frei querido, aconteceram mesmo, mas, salvo engano, Jesus se ferrou direitinho no fim da história.
- De fato – disse o Frei, pacientemente – Jesus ficou calado. Ele sabia que a maioria das pessoas não reconheceria a verdade mesmo que ela fosse uma pessoa em pé na sua frente.
- E você quer dizer que era esse o caso? Para mim, Jesus perdeu uma boa oportunidade de fazer um discurso memorável, de dizer palavras imortais, de usar toda a oratória do grande mestre que se acreditava que ele era. Mas ficou calado.
- Probo, nós tivemos muitos grandes mestres que usaram belas palavras. Jesus falou pouco. Preferiu agir.
Calei-me. De fato, contemplando aquelas muralhas dava pra sentir angústia. Imaginei-me atravessando aqueles muros e desafiando todas as autoridades públicas aos berros, reivindicando a condição de rei e de messias. Acho que hoje eu seria tido por louco. Comentei com Frei Tomás. Ele parou, pensou um pouco e depois me disse:
- Você precisaria passar pela porta Oriental.
Como?
- Para poder reivindicar a condição de rei e messias. Teria que entrar em Jerusalém pela porta Oriental.
Como assim? - perguntei.
- Está reparando aqueles dois arcos ali em frente? Bem no alto, no meio da muralha.
- Aquilo é uma porta? Mas está murada, fechada de pedras!
- Aquela é a porta Dourada, ou porta Formosa, ou porta da Compaixão, ou simplesmente a porta Oriental. A que estamos vendo agora foi construída provavelmente no século VI, por cima das ruínas da original. Ezequiel profetizou sobre essa porta, dizendo que a glória de Deus chegou ao Templo por ela. Ezequiel profetiza que a porta ficará fechada e que ninguém entrará por ela, porque somente o Messias passaria por ela.
- Mas Jesus não passou por ela. Foi por isso que os judeus não o reconheceram?
Na verdade, Probo, ele passou pela Porta Oriental, mas isso implicaria numa discussão muito longa. Não estou disposto a travá-la agora. Acho que você tinha me dito que o propósito da sua vinda aqui era a arca, e não Jesus.
- É verdade. Mas eu gosto de explorar a sua cultura.
- Cultura? Eu sou um pobre frei ignorante... Mas venha, vamos contemplar um pouco a rocha na qual Jesus rezou, naquela noite.
- Frei Tomás, me explique uma coisa, porque é que se discute tanto sobre a palavra “rezar”? Por que é que os protestantes só usam a palavra “orar”?
- Meu querido, vamos deixar essas discussões religiosas de lado.
- Não, eu te peço, me explique!
- Eu não sei, acho que eles associam “rezar” com “rezadeiras”, com magia, com superstições. Acham que “orar” é uma palavra isenta dessa dubiedade, talvez estejam implicitamente nos acusando, a nós católicos, de sermos supersticiosos, sei lá. Eles acham que não devemos nos dirigir a Deus com fórmulas, com “rezas prontas”, porque acham que Jesus proibiu. Acham que quando Jesus disse, no sermão da montanha, para que não usemos “vãs repetições” nas nossas orações, ou quanto ao “palavreado excessivo”, estava nos proibindo, por exemplo, de rezar o terço, no qual as orações são repetidas em fórmulas por diversas vezes.
- E ele estava, não estava? - perguntei, confuso. - Quer dizer, ele estava proibindo essas repetições, como no terço. Por que é, então, que os católicos rezam o terço?
- Na verdade – disse o Frei Tomás, puxando-me pelo braço em direção às velhas oliveiras do Getsêmani – neste mesmo trecho do Evangelho, logo em seguida, Jesus ensina uma fórmula de oração, o “Pai Nosso”. Não me parece, portanto, que ele estivesse proibindo o uso de fórmulas, ao contrário. A verdade, como diz São Paulo, é que nós não sabemos nem rezar como devemos, por isso o Espírito intercede por nós. Assim, quando usamos uma fórmula como o “Pai Nosso”, não devemos pronunciá-la apenas com os lábios, mantendo o coração longe de Deus. Devemos procurar conformar o nosso coração àquilo que está sendo dito. Quanto a repetir a mesma oração, o próprio Jesus fez isso. No relato que o evangelista Marcos fez, sobre o que ocorreu aqui no Getsêmani, isto está muito bem relatado.
- Como assim? - perguntei, mais uma vez admirado com a cultura do Frei.
- Marcos diz, acho que no capítulo 14, lá pelos versículos trinta e tantos, que Jesus prostrou-se para rezar e os discípulos dormiram. Ele os repreendeu, por terem dormido, e voltou para rezar de novo, dizendo as mesmas palavras. E assim ainda uma terceira vez Jesus voltou, acordou os discípulos dorminhocos, foi rezar novamente e repetiu as mesmas palavras, como se estivesse rezando um terço.
- Foi aqui? Foi naquela pedra que fica no meio da Igreja da Agonia, onde estávamos?
- Segundo a tradição, foi ali mesmo. Então você pode ver que Jesus também rezava usando palavras repetidas, é natural que se faça assim, principalmente nos momentos de muita angústia, quando as palavras espontâneas parecem nos faltar aos lábios. Na cruz, ele rezou o salmo 21 - aquele que começa com "meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste", e rezou o salmo 30, dizendo "Pai, em tuas mãos entrego meu espírito". São fórmulas bíblicas de oração. E se Jesus fez assim, quem somos nós para questioná-lo?
Caminhamos mais um pouco pelo Getsêmani, contemplando o pôr-do-sol. Mas uma coisa não me saía da cabeça. Era a questão da Porta Oriental.
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